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O Banco da Inglaterra e a economia das moedas digitais

BN-EI129_bitcoi_G_20140829154139Fundado em 1694, o Banco da Inglaterra só não é mais antigo que o Sveriges Riksbank, o Banco Central da Suécia. Considerando sua experiência acumulada durante os últimos 320 anos, quando um banco central dessa estatura fala algo, é interessante escutar. Podemos até não concordar, mas é sempre válido ouvir atentamente ao que dizem.

Para nossa grata surpresa, em seu boletim trimestral do 3º trimestre de 2014, o banco dedicou um espaço nobre e considerável para tratar das moedas digitais em geral e do bitcoin em específico. Antes de tudo, é preciso reconhecer: a iniciativa é louvável. Não me lembro de ter visto nenhum banco central com tamanha relevância no sistema financeiro mundial se esforçando de forma genuína para compreender o intrigante fenômeno das criptomoedas e suas implicações na economia mundial.

Vale notar que o boletim do terceiro trimestre pode ser visto como uma continuação do primeiro boletim, publicado em 2014, que tratava da moeda na economia moderna e como a criação de dinheiro ocorre hoje em dia (“Money in the modern economy: an introduction” e “Money creation in the modern economy”) — ambas as leituras são fortemente recomendadas.

Dito isso, vamos ao que interessa: o que o Banco da Inglaterra tem a dizer sobre as moedas digitais?

Separando a análise em dois artigos próprios, o banco concentrou-se primeiramente em explicar o funcionamento das moedas digitais. Sob o título de “Inovações em tecnologias de pagamento e o surgimento de moedas digitais”, o texto procura contrastar a forma centralizada dos sistemas de pagamentos atuais que dependem de terceiros de confiança com a natureza descentralizada do sistema de pagamentos das criptomoedas.

Diferentemente das moedas tradicionais, conclui o artigo, o bitcoin é ao mesmo tempo uma moeda e um sistema de pagamentos.

O banco também reconhece que, apesar de o aspecto monetário ter atraído mais atenção até o momento, a grande inovação jaz na tecnologia do “registro contábil distribuído” (distributed ledger), que poderá ser aplicada não somente ao dinheiro, mas também aos mais diversos ativos e instrumentos financeiros do mundo moderno.

Mas a análise mais profunda e instigante está na segunda parte, intitulada “A economia das moedas digitais”. Nela os autores exploram as propriedades das moedas digitais sob a perspectiva das funções do dinheiro — reserva de valor, meio de troca e unidade de conta –, comparando-as com as moedas fiduciárias — a principal forma de dinheiro no mundo moderno.

Um fato desconhecido por muitos, mas perfeitamente destacado no primeiro boletim trimestral de 2014, é que a nossa moeda fiduciária nada mais é do que uma forma de dívida. Como a maior parte da massa monetária em circulação é criada pelo sistema bancário, os depósitos dos correntistas são uma obrigação do banco para com os clientes.

Na terminologia inglesa, depósitos são um IOU (“I owe you”, em português “eu lhe devo”) que os bancos emitem em favor dos clientes. E as cédulas de dinheiro emitidas pelo banco central são uma forma especial de obrigação não conversível, do banco perante o portador — passivo da autoridade monetária, ativo do portador.

Em suma, nosso dinheiro hoje em dia é baseado em dívida — contra os bancos e os bancos centrais. Essa é a natureza da moeda fiduciária. Para saber mais, recomendo este artigo sobre o sistema bancário.

Em total contraste — e como muito bem ressaltam os autores do boletim —, as criptomoedas são uma “espécie de commodity”. Mas, conclui o artigo, “ao contrário das commodities físicas como o ouro, elas são ativos intangíveis, ou commodities digitais“. Concordo plenamente. Inclusive dediquei um post especificamente àclassificação do bitcoin.

Entretanto, afirma o Banco da Inglaterra, o fato de “as moedas digitais não serem um passivo do banco central (ou do governo) não impede de serem usadas como dinheiro, embora marque uma diferença importante entre elas e as moedas nacionais”.

Portanto, seriam as moedas digitais dinheiro propriamente dito?

Segundo os autores, “atualmente, elas preenchem o papel de dinheiro apenas até certo ponto e para uma pequena porção de pessoas. E somente servem todas as três funções da moeda talvez para alguns milhares de indivíduos no mundo”.

Em outras palavras, e o que já escrevi algures, o bitcoin pode ser considerado dinheiro, sim, embora seja menos líquido do que as moedas fiduciárias tradicionais.

Mas e como as moedas digitais desempenham as funções clássicas do dinheiro? No quesito “reserva de valor” — conforme afirmo no meu livro, reserva de valor é meramente um aspecto temporal da função primordial de meio de troca —, apesar de a oferta ser autenticamente escassa, “as perspectivas da demanda futura são bastante incertas”.

Um dos motivos apontado pelos autores é a falta de qualquer “demanda intrínseca”, isto é, bitcoins, por exemplo, “não são usados como bens de produção nem são consumidos”. Esse argumento vai ao âmago da questão do valor do bitcoin: “para o quê mais serve o bitcoin além de ser dinheiro? Qual a sua utilidade?”. Embora esse tema mereça um artigo exclusivo, é preciso esclarecer alguns pontos.

Demanda intrínseca — ou valor intrínseco para alguns — simplesmente inexiste. Os consumidores demandam bens pelo valor que lhe atribuem subjetivamente, com a expectativa de que tais bens possam suprir-lhes alguma necessidade. Existem, no entanto, propriedades intrínsecas, o que não garante demanda ou valor algum a nenhuma mercadoria.

Outra forma de interpretar a “falta de demanda intrínseca” é que não há uma demanda mínima para o bitcoin. Ao contrário do ouro, que pode ser usado na indústria, e das moedas fiduciárias, que gozam do respaldo estatal que lhe asseguram uma demanda mínima, o bitcoin é desprovido de qualquer outro uso além de meio de troca. Segundo essa ótica, a demanda do bitcoin depende unicamente da expectativa de que outras pessoas irão aceitá-lo no futuro, as quais esperam que ainda outras pessoas o aceitarão, e assim por diante — por isso alguns analistas, erroneamente, enxergam no bitcoin uma espécie de pirâmide financeira.

Mas se entendemos que o bitcoin é ao mesmo tempo um sistema de transferência de fundos global rápido e barato e que somente unidades monetárias de bitcoins podem ser transferidas nessa plataforma, é possível que, no fim das contas, haja algum valor de fato nesse arranjo. E se entendemos que esse protocolo poderá ser usado para outros fins que nem possamos prever com exatidão neste momento, é possível que haja ainda mais utilidade no Bitcoin.

Quão intensa será essa demanda no futuro? Quanto valor os indivíduos atribuirão ao bitcoin em alguns anos? Não podemos precisar com acurácia. Mas prevejo que será em algum lugar muito acima de zero.

Com relação à função de meio de troca, os economistas do Banco da Inglaterra ressaltam que cada vez mais empresas estão aceitando a moeda digital como forma de pagamento. Ainda que seja uma fração da economia mundial, a tendência é sem dúvida de alta.

Entretanto, há poucos indícios de que o bitcoin ou outra moeda digital estejam sendo usados como unidade de conta — a terceira função do dinheiro. Não surpreende, pois realmente ainda falta algum tempo para o bitcoin atingir a maturidade e o estágio avançado de liquidez a ponto de ser usado para a precificação de bens e serviços em geral. É necessário muito menos volatilidade, e muito mais volume e liquidez, para que esse dia chegue.

Vale destacar uma das seções mais importantes do texto — sob o título de “Os problemas macroeconômicos de uma oferta monetária fixa: um experimento mental de moeda digital” —, em que os autores se lançam a uma análise hipotética das implicações para uma economia em que as transações ocorrem majoritariamente com uma moeda digital semelhante ao bitcoin. Imaginem uma economia em que o bitcoin seja a moeda corrente.

Para facilitar a crítica, destacarei alguns trechos do texto em vermelho.

Segundo o artigo, “a teoria econômica sugere que o bem-estar social seria menor em uma economia hipotética baseada em uma moeda digital do que em uma segunda economia hipotética baseada no sistema de moeda fiduciária”. Por quê?

“Uma vez que a maioria das moedas digitais apresenta uma oferta finita predeterminada, esse arranjo poderia contribuir para a deflação nos preços dos bens e serviços. A inabilidade da oferta monetária de variar em resposta à demanda provavelmente causaria uma volatilidade nos preços e na atividade econômica, reduzindo o bem-estar social.”

O argumento da deflação é uma das maiores falácias no campo da ciência econômica, a qual é derivada de um errôneo entendimento do fenômeno. No sentido correto do termo, deflação nada mais é do que uma contração da oferta monetária — o oposto de inflação. Mas o termo é usado normalmente para designar uma queda generalizada dos preços.

Preços em queda não são o problema. Uma economia pode desenvolver-se por um longo período e muito bem mesmo com preços em queda ano após ano. Isso significa apenas que a economia está mais produtiva e a oferta monetária é relativamente inelástica — mais bens e serviços para uma oferta monetária que cresce comedidamente.

A grande questão está em entender que há uma deflação boa e uma ruim. A boa é a que acabamos de explicar: uma quantidade de dinheiro inelástica em uma economia cada vez mais produtiva. A ruim é aquela gerada pela expansão monetária prévia, como a que ocorreu durante a Grande Depressão.

Compreender o fenômeno da expansão monetária e os ciclos econômicos é chave para identificar as relações de causa efeito entre o aumento da atividade econômica insustentável e seu eventual colapso. Quando este chega, ocorre uma forte contração monetária, isto é, a quantidade de moeda é reduzida intensamente devido aos empréstimos devolvidos aos bancos e também pela eliminação das dívidas não pagas do balanço. Essa contração monetária abrupta tem como resultado uma forte queda nos preços dos ativos e dos bens em geral.

Tal deflação é ruim porque é precedida por uma expansão monetária que contém as sementes da sua própria destruição — precisamente o que ocorreu na década de 1920, levando à quebra da Bolsa norte-americana e à Grande Depressão. Para entender com detalhes as etapas da expansão e contração monetária, veja o capítulo IVdo livro de Jesús Huerta de Soto sobre ciclos econômicos.

Mas, de acordo com o artigo, a deflação é perigosa porque, “Quando os preços dos bens e serviços estão caindo, as famílias têm um incentivo para postergar ou até mesmo abandonar os planos de gastos. A teoria econômica, portanto, prevê que tanto a demanda agregada quanto a produção potencial cairão e, se a deflação for indefinida, que a taxa de desemprego será permanentemente mais elevada”.

Surpreende-nos que esse raciocínio até hoje perdure sem uma análise mais rigorosa. Por mais que preços em queda possam desestimular um indivíduo a gastar imediatamente, ninguém posterga compras necessárias indefinidamente, muito menos as abandona por completo. Todos nós precisamos consumir um mínimo para fazer frente às necessidades mais básicas da espécie humana. E no caso de bens de capital ou produtos de maior valor agregado, cedo ou tarde acabaremos gastando e adquirindo o que se deseja ou necessita.

Agora, se deflação ilimitada significa que os preços caem ano após ano, isso em nada deve preocupar-nos. A indústria da computação “sofre” de deflação ilimitada há décadas, e, apesar dela, as empresas prosperam e os consumidores se esbanjam com a crescente quantidade e qualidade dos bens produzidos.

Mas deflação ilimitada no sentido a que normalmente se referem — uma queda de preços cada vez maior e sem fim — é uma quimera. Os economistas apegam-se a essa noção de deflação provavelmente por causa da Grande Depressão, quando houve uma forte contração monetária e uma queda vertiginosa nos preços dos ativos no período de 1929 a 1933.

Mas pensemos bem, mesmo quando há uma contração monetária, ela jamais será ilimitada. Mesmo que toda a oferta de dinheiro criada pelos bancos seja extinta, ainda sobrarão as cédulas e moedas emitidas pelo Banco Central. Nesse ponto cessará a contração monetária. Nesse ponto cessará a deflação, e os preços não mais cairão em uma espécie de “espiral deflacionária”. Ilimitada, somente a inflação pode ser; a deflação, jamais.

E para remediar o suposto problema de uma massa monetária fixa, os economistas do Banco da Inglaterra recomendam que seja adotada uma regra diferente para a provisão de moeda.

“Um segundo problema deriva da inabilidade da oferta predeterminda de responder à variação de demanda. A demanda agregada por moeda é volátil, por razões que podem ser sazonais (como as compras de Natal), cíclicas (como quando em recessões) ou estruturais (devido às melhorias tecnológicas). Se a oferta de moeda não pode responder a essas variações, volatilidade de preços será o resultado, causando volatilidade na atividade econômica e destruição do bem-estar social.”

Em primeiro lugar, não existe uma demanda agregada por moeda. Existe apenas a demanda de cada indivíduo por moeda, em que cada agente determina o quanto de dinheiro manter de encaixe.

A questão subjacente nesse trecho é a busca pela estabilidade de preços — independentemente de como esta é definida, se por um aumento de preços constante ao redor de 2% ou nenhum incremento —, algo que preocupa os economistas há pelo menos um século. A teoria por trás dessa política monetária deriva de um entendimento equivocado de que a estabilidade de preços é condição para evitar os ciclos econômicos.

Ludwig von Mises há muito refutou os economistas que defendiam uma política de estabilidade de poder de compra da moeda (para quem quiser se aprofundar no assunto, recomendo este livro), e não entediarei o leitor replicando todo o argumento neste espaço.

Mas é preciso fazer algumas considerações. Primeiro, um aumento na demanda por moeda, isto é, um aumento no nível de encaixe, tende a fazer com que o dinheiro ganhe poder de compra. Com menos dinheiro circulando, os bens e serviços tendem a custar menos. Uma política de estabilização de preços buscaria contrabalançar esse aumento da demanda por moeda provendo ao mercado mais dinheiro — usando o jargão atual, “injetando liquidez no sistema”.

O resultado dessa política são as arbitrariedades inevitáveis: em que setor da economia injetar liquidez? Por quanto tempo? Com qual intensidade? Qual indicador sinaliza a necessidade de prover mais moeda ao mercado? Como medir a perda do poder de compra da moeda com exatidão? Não existem respostas científicas a essas perguntas, existem apenas decisões políticas.

Em segundo lugar, uma injeção de moeda não é neutra na economia. Aumentar a oferta de moeda acarreta distorções graves na cadeia produtiva de um país, com efeitos nem sempre previsíveis, embora inexoráveis. Na tentativa de corrigir uma suposta falha, geram-se outros desajustes.

Estabilidade de preços não é garantia de estabilidade financeira. Estabilidade de preços não assegura a ausência de volatilidade da atividade econômica. Mas a expansão artificial de moeda para remediar essa falha imaginária causa, de fato, distorções e volatilidade na atividade econômica.

Como afirmou Mises em referência à estabilidade de preços durante o padrão-ouro: “A superioridade do padrão-ouro consiste no fato de que o valor do ouro se desenvolve independente de ações políticas. É claro que seu valor não é ‘estável’. Não há, nem jamais poderá haver, tal coisa como a estabilidade de valor”.

O mesmo pode-se afirmar com relação às moedas digitais: o grande mérito dessas novas formas de dinheiro está na independência política da provisão de moeda. Em uma economia hipotética baseada em uma moeda digital, a oferta fixa de moeda não impõe complicações do ponto de vista da teoria econômica. Um aumento na demanda por moeda ou uma maior produtividade da economia não precisam ser contrabalançadas por uma maior quantidade de dinheiro. Os ajustes ocorrerão via preço, de forma natural, prescindindo de qualquer intervenção estatal.

Essas ponderações podem nos levar à seguinte indagação: afinal, qual a quantidade ideal de moeda para uma economia? A resposta é simples: qualquer quantidade serve. Não importa se há um trilhão ou um bilhão de dólares. Importa apenas que não haja alterações abruptas e intensas na oferta de moeda.

Trazendo esse insight à realidade do bitcoin (ou outras moedas digitais), é irrelevante se o limite de emissão de unidades de bitcoin seja 21 milhões ou 57 bilhões ou qualquer outro numerário. É preciso apenas que a oferta de moeda não sofra surtos inflacionários ou deflacionários súbitos e intensos. Considerando que há uma perfeita divisibilidade do bitcoin — há um total de oito casas decimais para cada unidade, podendo ser aumentadas no futuro —, uma economia hipotética baseada em uma moeda digital com oferta monetária fixa não supõe problema algum.

Encerrando o tópico da provisão monetária e a discussão sobre uma economia hipotética baseada em criptomoedas, o boletim do Banco da Inglaterra aborda também as implicações das moedas digitais para a estabilidade monetária e financeira no mundo de hoje.

Em suma, não há riscos relevantes no momento porque o bitcoin e as demais criptomoedas constituem uma porção ínfima do sistema financeiro mundial, podendo ser negligenciadas até então sob a perspectiva de política monetária. Não discordaria dessa assertiva.

É interessante notar, também, o alerta do banco a um risco específico restrito às moedas digitais — o ataque dos 51% —, o qual constituiria uma espécie de “fraude generalizada do sistema”. Curiosamente, há quem alegue — incluindo este que vos escreve — que o nosso próprio sistema monetário atual é em si uma espécie de fraude generalizada. Para tirar suas próprias conclusões, recomendo assistir ao documentário abaixo sobre a crise de 2008 e o sistema bancário como um todo.

Ainda sob a perspectiva da estabilidade financeira, os autores também chamam a atenção ao risco do surgimento da prática das reservas fracionárias — embora ainda bastante improvável — com alguma moeda digital de forma não regulada (fractional reserve banking in an unregulated fashion).

Aqui, apenas um pequeno, mas fundamental, adendo. Reservas fracionárias, reguladas ou não, são o maior risco à estabilidade financeira de qualquer sistema. E diria mais, reservas fracionárias reguladas são um risco maior ainda, pois quando há o respaldo de um banco central e toda uma arquitetura bancária legal permitindo essa prática, a magnitude com que o sistema bancário é capaz de expandir a oferta de moeda é muito superior do que seria na ausência do amparo estatal.

Por fim, o maior risco hipotético à estabilidade monetária apontado pelo banco é o caso de uma economia ser “bitcoinizada”, isto é, uma economia em que a maior parte das pessoas adota uma moeda alternativa para realizar suas transações do cotidiano. Inegavelmente, a capacidade de qualquer banco central de influenciar a atividade econômica e o nível geral de preços nesse caso seria bastante reduzida ou até nula, uma vez que a demanda por moeda nacional seria parca em comparação com a demanda por bitcoins.

Mas, segundo os autores, “esse cenário é extremamente improvável por causa dos obstáculos a uma adoção difundida de uma moeda digital impostos pela própria concepção desses esquemas, sendo implausível, salvo no caso de um colapso severo da confiança na moeda fiduciária”.

Por “concepção” ou “desenho” das moedas digitais, entendemos a sua provisão de oferta monetária rígida predeterminada e, essencialmente, imutável. No entanto, do ponto de vista puramente teórico — e contrariando aquilo em que o Banco da Inglaterra acredita —, essas características das moedas digitais não são um empecilho a uma maior adoção.

A grande verdade é que a teoria econômica moderna é incapaz de compreender a ascensão do bitcoin porque até hoje ela não entendeu o surgimento do dinheiro em si. Segundo a teoria econômica mainstream, o bitcoin jamais teria sido valorado por qualquer indivíduo, jamais teria deixado o posto de mero experimento de computação fadado ao fracasso. Por isso as moedas digitais intrigam tanto.

Já ouvi dezenas de economistas prognosticando a morte do bitcoin, o que é curioso, uma vez que nenhum deles nem sequer entende como o bitcoin nasceu, pois, segundo suas teorias, jamais poderia ter nascido.

E isso diz muito sobre o atual estágio da ciência econômica. Pensa-se apenas em “agregados”, esquecendo-se, ou ignorando-se, que existe somente a ação humana, as ações de bilhões de indivíduos trabalhando, produzindo, vendendo e comprando, ofertando e demandando, formando os preços no mercado e a própria noção de “economia” como a entendemos.

Políticas públicas com embasamento científico em agregados econômicos estão condenadas a fracassar sempre. A “demanda agregada” não pode ser estimulada porque não passa de uma construção abstrata. Assim, a “demanda agregada por moeda” é uma noção ilusória e irreal, sem aplicação prática alguma.

As moedas digitais não precisam adotar regras “mais inteligentes”, conforme sugerido pelos economistas do Banco da Inglaterra, para lograr uma adoção mais ampla. Basta propiciar uma redução nos custos de transação, além de outras vantagens frente às moedas tradicionais.

A priori, podemos afirmar apenas que o ser humano prefere o melhor ao pior, mais a menos. Nesse sentido, tendemos a preferir uma moeda que se aprecia ou mantém o poder de compra a uma que é desvalorizada constantemente. Mas escassez relativa não é a única característica que faz uma moeda ser escolhida pelo mercado.

Antes da era digital, uma mercadoria com elevada escassez (diamantes, por exemplo) tinha poucas chances de preponderar no mercado como dinheiro, porque sua divisibilidade era limitada — seria impossível separar um diamante em microgramas, nanogramas, e assim por diante, até um yoctograma. Nesse sentido, uma moeda com escassez elevada, mas divisibilidade restrita, precisaria ver sua oferta aumentada para “suprir as necessidades de comércio” — o ajuste unicamente via preço não bastaria.

Com a introdução das moedas digitais, há uma perfeita divisibilidade, tornando a escassez elevada — no caso do bitcoin — irrelevante para fins de uso como moeda corrente.

Se moeda boa expulsa moeda ruim, entendo que os indivíduos de uma economia hipotética baseada em uma criptomoeda darão preferência a uma moeda que se aprecia mais que as restantes. Se verificarmos a história milenar do ouro como moeda corrente e levarmos em conta o pequeno crescimento anual da sua oferta — ao redor de 2% —, podemos intuir também empiricamente que uma massa monetária inelástica ou estática não seria um problema.

Depois de um século do mais puro socialismo aplicado ao âmbito monetário, os economistas modernos são incapazes de sequer pensar na possibilidade da ausência de inflação e de como uma economia com moeda forte poderia funcionar. Mas graças ao bitcoin, estão todos sendo obrigados a revisitar a teoria monetária.

Olhando por esse prisma, já considero o fenômeno das moedas digitais um enorme sucesso, porque, indiretamente, trouxe de volta ao centro do debate econômico o ideal de um dinheiro apolítico e os malefícios da política de inflação e do planejamento central da moeda.

Fernando Ulrich
Fernando Ulrich
Fernando Ulrich é mestre em Economia da Escola Austríaca, com experiência mundial na indústria de elevadores e nos mercados financeiro e imobiliário brasileiros. É conselheiro do Instituto Mises Brasil, estudioso de teoria monetária, entusiasta de moedas digitais, e mantém um blog no portal InfoMoney chamado 'Moeda na era digital'. Também é autor do livro 'Bitcoin - a moeda na era digital'.
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