Na primeira parte desta série sobre o projeto Bitcoin, descrevemos o nascimento da moeda digital e como ela em nada contraria a teoria da regressão de Ludwig Von Mises. Vamos agora aprofundar-nos um pouco mais na teoria e na prática procurando comparar o sistema monetário atual — seja ele baseado em papel-moeda, seja baseado em ouro — com um sistema baseado em bitcoins. É preciso ressaltar, sem embargo, que essa comparação se dá no campo conceitual, pois Bitcoin ainda não está no estágio avançado de vasta aceitação.
Melhor que ouro e papel-moeda?
Pelo bem da argumentação, assumamos que a infraestrutura do Bitcoin, bem como a inelasticidade de sua oferta (lembrem-se do limite de 21 milhões de bitcoins), são invioláveis e não impõem risco algum de fraude, roubo, etc., aos usuários — tratarei desse tema mais adiante.
Somente podemos entender Bitcoin e contestar a crítica de Gertchev utilizando-nos da abordagem austríaca sobre a origem catalática do dinheiro. Em outras palavras, é entendendo que a origem do dinheiro se dá no mercado por meio de trocas voluntárias que podemos compreender a essência do fenômeno Bitcoin. Nesse sentido, se faz necessário destacar que a introdução ou evolução do dinheiro reduz os custos dos intercâmbios. Isto é, ao resolver o problema da dupla coincidência de desejos (tenho uma vaca, quero pão e o padeiro quer um terno), o dinheiro vem a reduzir os custos envolvidos em uma simples troca de produtos. É o que os economistas chamam de “custos de transação”. Da mesma forma, em um entorno de competição, preponderará no mercado aquele dinheiro que mais reduz tais custos.
Em sua tese, Surda elenca três elementos principais que influenciam na escolha de uma moeda: liquidez, reserva de valor e custos de transação. No momento, liquidez é a maior desvantagem do Bitcoin em relação às demais moedas, por não ser amplamente utilizado — ainda que cada vez mais pessoas e empresas aceitam transacionar com a moeda.
No quesito reserva de valor, a sua escassez relativa, por sua vez derivada de sua oferta inelástica (atualmente em 11 milhões, com limite máximo de 21 milhões), lhe permite ser considerada uma ótima alternativa na manutenção (e possivelmente elevação) do poder de compra. Ademais, por ser um meio de troca eletrônico, a moeda pode ser preservada indefinidamente — sim, dependemos da internet e da eletricidade.
É na redução dos custos de transação, porém, que entendemos as enormes vantagens e superioridade do Bitcoin. Para começar, não há fronteiras políticas à moeda digital. Você pode enviar e receber bitcoins de qualquer lugar a qualquer pessoa, esteja ela onde estiver, sem ter que ligar ao gerente de banco, assinar qualquer papel, comparecer a alguma agência bancária ou ATM. Nem mesmo precisa usar a VISA, ou um PayPal qualquer. Você pode ter domicílio no Brasil, estar de férias em Xangai e enviar dinheiro a uma empresa na Islândia com a mesma facilidade com que envia um e-mail pelo seu iPhone. Ainda em Xangai, você pode receber em bitcoins o equivalente a quilos de prata (ou ouro, ou milhares de dólares), sem pesar um grama no seu bolso nem mesmo precisar contar as suas cédulas ou pesar o seu metal. Tampouco precisa se preocupar em guardá-lo em algum armazém ou banco. Mais ainda, nem precisa se preocupar se seu banco guardaria de fato 100% do seu dinheiro ou acabaria especulando-o em aventuras privadas.
Dessa forma, e de acordo com Surda, é plenamente possível que, com o passar do tempo, o Bitcoin venha a superar tanto moedas fiduciárias quanto ouro e prata como meio de troca, e finalmente tornar-se dinheiro (meio de troca universalmente aceito). A questão chave será a liquidez, que por sua vez depende da ampliação da aceitação da moeda. “Sem liquidez suficiente, Bitcoin enfrentará obstáculos significantes para evoluir a estágios mais maduros de meios de troca e, finalmente, dinheiro”, conclui Surda.
Explicado tudo isso, resta claro que a crítica de Gertchev carece de fundamento. Considerando o atual arranjo monetário de moedas fiduciárias de papel, mais de 90% da massa monetária são meros dígitos eletrônicos no ciberespaço; dígitos estes criados, controlados e monitorados pelo vasto sistema bancário sob a supervisão de um banco central. Dinheiro material ou físico é utilizado apenas em pequenas compras do dia a dia — eu, por exemplo, nem lembro a última compra que fiz usando papel-moeda. O cerne do nosso sistema monetário já é digital.
Sei que Gertchev não julga esse arranjo como desejável, afinal de contas não há lastro algum além dos PhDs que controlam a impressora de dinheiro. Mas mesmo em um sistema monetário lastreado 100% em um dinheiro material ou commodity, como o ouro, não escaparíamos do mundo virtual e eletrônico. Afinal de contas, carregar ouro (ou prata) por todo lugar não é nada eficiente, além de ser altamente perigoso em um país como o Brasil. Dessa forma, embora reconheça o mérito de um sistema monetário baseado no ouro — e efetivamente o considero como superior à desordem atual —, jamais poderíamos prescindir do sistema bancário digital no presente estado da divisão internacional do trabalho.
Mais ainda, Gertchev parece não perceber que não é somente o atual sistema monetário que depende das tecnologias digitais e da internet, mas na verdade toda a economia globalizada e interconectada que conhecemos hoje. Bitcoin nasce nesse entorno, nasce da revolução digital e, certamente, não poderia sobreviver na ausência das tecnologias que hoje dispomos. Tampouco poderia sobreviver a economia mundial, no estágio avançado em que se encontra, na ausência dessas mesmas tecnologias.
E não nos esqueçamos que ouro ou papel-moeda também são formas de dinheiro que dependem de outras tecnologias. Ouro não cai do céu. Você precisa minerá-lo, cunhá-lo e transportá-lo. Quanta tecnologia e capital são necessários para desempenhar essas funções? E o que dizer dos altos custos com fretes e seguros envolvidos na movimentação de ouro de país para país, de continente a continente? Que eu não seja mal compreendido, pois sou a favor do metal precioso, sem dúvida alguma. Mas julgo que a sua grande qualidade como meio de troca jaz na sua escassez relativa, na sua oferta inelástica. Ouro é excelente como reserva de valor, mas sem um sistema eletrônico de pagamentos, o metal seria muito pouco eficiente no quesito “transportabilidade”. A grande revolução do Bitcoin é capacidade de replicar a inerente escassez relativa do ouro, mas sem incorporar a grande desvantagem do metal no que tange ao manuseio e transporte, especialmente em longas distâncias.
Outra vantagem sem precedentes reside em uma tecnicalidade, à primeira vista trivial, mas de implicações extraordinárias. Primeiro, você não depende do sistema bancário no mundo dos bitcoins. Você é seu próprio banco. E isso não é tudo. Pela lógica e programação do sistema, é impossível duas pessoas gastarem a mesma moeda digital (double-spending). Isso quer dizer que somente uma pessoa detém o direito de propriedade de uma unidade monetária e somente essa pessoa a controla. E isso ainda não é tudo. No mundo atual de papel-moeda fiduciária, os dígitos da sua conta bancária são substitutos de dinheiro físico. O dinheiro mesmo é o papel-moeda. Ou melhor, uma fração dos seus depósitos é dinheiro físico.
No caso do Bitcoin, a unidade monetária (1 BTC) é o próprio equivalente ao dinheiro físico (no caso, virtual). E é nesse ponto que surge algo de consequências singulares. Substitutos de dinheiro emergem somente quando estes oferecem uma redução nos custos de transação. Isso quer dizer que os substitutos de dinheiro serão demandados quando proporcionarem ao usuário algo que o dinheiro próprio (dinheiro commodity) não é capaz de lhe oferecer. Pela sua natureza e propriedades digitais, os bitcoins já propiciam muitos dos serviços normalmente restritos aos substitutos de dinheiro. Seus custos de transação são suficientemente reduzidos, tornando altamente improvável o surgimento desses substitutos. Certamente, você já compreendeu as implicações. De uma só vez, o Bitcoin não só tem o potencial de tornar o sistema bancário em grande parte irrelevante e obsoleto, como também reduz substancialmente a probabilidade do aparecimento das reservas fracionárias e, portanto, a expansão artificial de crédito, evitando assim a formação de ciclos econômicos.
A grande sacada do Bitcoin, talvez uma de suas maiores vantagens, é que a moeda digital dispensa o middleman, o “terceiro” na transação. É um sistema peer-to-peer (de igual para igual, ou de par a par). Não é necessário confiar em um banco que guardará seu dinheiro. Você tampouco precisa assegurar-se de que uma empresa de liquidação de pagamentos processará corretamente o seu pedido. Acima de tudo, você não precisa rezar para que um banco central não deprecie a moeda. “Um ponto comum nos atributos avançados do Bitcoin é a reduzida necessidade de confiança no fator humano,” observa Surda; “a confiança é substituída por comprovação matemática”.
Ademais, o caráter dual do método de pagamentos pode ser visto como a combinação das características do dinheiro (commodity) com o sistema de liquidação (serviço). “Enquanto a commodity oferece uma oferta estável e controle físico, o serviço permite baixos custos de transação, serviços de liquidação e registros históricos”, conclui Surda; “antes do Bitcoin, essas duas funções estavam separadas”. Logicamente, ainda não estamos nesse estágio avançado do Bitcoin, porque sua liquidez ainda é baixa e ainda dependemos bastante das “casas de câmbio” — os pontos de contato entre a rede Bitcoin e o mundo de moedas fiduciárias (abordaremos essa questão nos próximos artigos). Mas o sistema permite que esse ideal seja alcançado.
Por todos esses motivos, pode-se dizer que o Bitcoin é o arranjo monetário que mais se aproxima daquele idealizado pelos economistas da Escola Austríaca. Como muito bem destaca Surda, “É, historicamente, a primeira oportunidade de se atingir a mudança e a manutenção de uma oferta monetária inelástica sem reformas legais e sem precisar endereçar as reservas fracionárias”.
Seria o Bitcoin o Santo Graal da ordem monetária? Conceitualmente, a resposta tende a essa direção. Mas não há consenso. No próximo artigo, discutiremos algumas das objeções filosóficas e práticas à moeda digital.
Leia aqui a terceira parte da série Bitcoin.
______________________________
Artigo originalmente publicado em O Ponto Base