Friday, November 22, 2024
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Sem o dinheiro, não há nem civilização e nem progresso

singapore4_2061875bEste artigo foi extraído do livro “O que o governo fez com o nosso dinheiro”, futuro lançamento do IMB

O surgimento do dinheiro

Como surgiu o dinheiro? É claro que Robinson Crusoé, sozinho em sua ilha, não necessitava de nenhum dinheiro. Ele não poderia comer moedas de ouro. Tampouco Crusoé e Sexta-Feira, ao trocarem entre si peixe por madeira, tinham de se preocupar com dinheiro. Porém, quando a sociedade se expande e passa a ser formada por várias famílias, o cenário se torna propício para o surgimento do dinheiro.

Para explicar a função do dinheiro, temos de retroceder no tempo e perguntar: por que, afinal, os homens fazem transações econômicas? Por que eles trocam bens entre si? A troca é a base essencial de nossa vida econômica. Sem trocas, não haveria uma economia real e, praticamente, não haveria sociedade. Quando uma troca é voluntária, ela claramente ocorre porque ambas as partes esperam se beneficiar dessa transação. Uma troca é um acordo entre A e B no qual A transfere seus bens ou seus serviços para B, e B por sua vez transfere seus bens ou seus serviços para A. Obviamente, ambos, por definição, esperam se beneficiar dessa troca, pois cada um valoriza mais aquilo que está recebendo do que aquilo do qual abriu mão. Não fosse assim, não haveria uma troca voluntária.

Quando, por exemplo, Robinson Crusoé troca um peixe por um pedaço de madeira, ele dá mais valor à madeira que está “comprando” do que ao peixe que está “vendendo”, ao passo que para Sexta-Feira, ao contrário, dá mais valor ao peixe do que à madeira. De Aristóteles a Marx, o homem erroneamente tem acreditado que uma troca denota algum tipo de igualdade de valor — que se um barril de peixes é trocado por dez toras de madeira, então há uma espécie de igualdade secreta entre tais coisas. A verdade, no entanto, é que a troca só ocorreu porque cada uma das partes valorou os dois produtos de maneira distinta.

Por que a propensão a transacionar é algo tão universal na humanidade? Fundamentalmente, por causa da grande variedade existente na natureza: a variedade que há nos homens e a variedade e a diversidade da localização dos recursos naturais. Cada homem possui um conjunto diferente de habilidades e aptidões específicas, e cada pedaço de terra possui suas características próprias, suas riquezas únicas. É desta variedade — um fato externo e natural — que surge a troca: o trigo produzido em uma localidade geográfica é trocado pelo ferro produzido em outra localidade geográfica; um indivíduo fornece seus serviços médicos em troca do prazer de ouvir uma música tocada em um violino por outro indivíduo.

A especialização permite que cada indivíduo aprimore suas melhores habilidades, e permite que cada região geográfica desenvolva seus próprios recursos particulares. Se ninguém pudesse transacionar, se cada indivíduo fosse forçado a ser totalmente autossuficiente, a maioria de nós obviamente morreria de fome, e o restante mal conseguiria se manter vivo. A troca é a força vital não só da economia, mas da própria civilização.

Escambo

No entanto, esse processo de troca direta de bens e serviços úteis dificilmente seria capaz de manter uma economia acima de seu nível mais primitivo. Tal troca direta — ou escambo — dificilmente é melhor do que a pura e simples autossuficiência. Por quê? Em primeiro lugar, está claro que tal arranjo permite somente uma quantidade muito pequena de produção. Se João contrata alguns trabalhadores para construir uma casa, com o que ele lhes pagará? Com partes da casa? Com os materiais de construção que não forem utilizados?

Os dois problemas básicos deste arranjo são a “indivisibilidade” e a ausência daquilo que chamamos de “coincidência de desejos”. Assim, se o senhor Silva tem um arado que ele gostaria de trocar por várias coisas diferentes — por exemplo, ovos, pães e uma muda de roupas —, como ela faria isso? Como ele dividiria seu arado e daria uma parte para um agricultor e a outra parte para um alfaiate? Mesmo para os casos em que os bens são divisíveis, é geralmente impossível que dois indivíduos dispostos a transacionar se encontrem no momento exato. Se A possui um suprimento de ovos para vender e B possui um par de sapatos, como ambos podem transacionar se A quer um terno? Imaginem, então, a penosa situação de um professor de economia: ele terá de encontrar um produtor de ovos que queira comprar algumas aulas de economia em troca de seus ovos!

Obviamente, é impossível haver qualquer tipo de economia civilizada sob um arranjo formado exclusivamente por trocas diretas.

Trocas indiretas

Felizmente, o homem descobriu, em seu infindável processo de tentativa e erro, um arranjo que permitiu que a economia crescesse de forma contínua: a troca indireta. Em uma troca indireta, você vende seu produto não em troca daquele bem que você realmente deseja, mas sim em troca de um outro bem que você, futuramente, poderá trocar pelo bem que você realmente deseja. À primeira vista parece uma operação canhestra e circular. Mas a realidade é que foi exatamente este maravilhoso arranjo o que permitiu — e que segue permitindo — o desenvolvimento da civilização.

Considere o caso de A, o agricultor, que quer comprar os sapatos feitos por B. Dado que B não quer ovos, A terá de descobrir o que B realmente quer — digamos que seja manteiga. O indivíduo A, então, troca seus ovos pela manteiga de C, e então vende a manteiga para B em troca dos sapatos. O indivíduo A irá comprar a manteiga não porque a deseja diretamente, mas sim porque isso o permitirá adquirir os sapatos. Similarmente, o senhor Silva, o dono do arado, venderá seu arado por uma mercadoria que ele possa com mais facilidade dividir e vender — por exemplo, manteiga. Ato contínuo, ele trocará partes de manteiga por ovos, pães, roupas etc.

Em ambos os casos, a superioridade da manteiga — razão pela qual existe uma demanda extra por ela, que vai além do seu mero consumo — está em sua maior comerciabilidade, ou seja, em sua maior facilidade de ser trocada, de ser vendida, de ser comercializada.

Se um bem é mais comerciável do que outro — se todos os indivíduos estão confiantes de que tal bem será vendido com mais facilidade —, então ele terá uma grande demanda, pois ele será usado como um meio de troca. Ele será o meio pelo qual um especialista poderá trocar seu produto pelos bens de outros especialistas.

Assim como há uma grande variedade de habilidades e recursos na natureza, também há uma grande variedade na comerciabilidade dos bens existentes. Alguns bens são mais demandados que outros, alguns são plenamente divisíveis em unidades menores sem que haja perda de valor, alguns são mais duráveis, e outros são mais transportáveis por longas distâncias. Todas essas vantagens aumentam a comerciabilidade de um bem. Sendo assim, em cada sociedade, os bens mais comerciáveis serão, com o tempo, escolhidos para representar a função de meio de troca. À medida que sua utilização como meio de troca vai se tornando mais ampla, a demanda por eles aumenta, e, consequentemente, eles se tornam cada vez mais comerciáveis. O resultado é uma espiral que se auto-reforça: mais comerciabilidade amplia o uso do bem como meio de troca, o que por sua vez aumenta ainda mais sua comerciabilidade, reiniciando o ciclo. No final, apenas uma ou duas mercadorias serão utilizadas como meios gerais de troca — em praticamente todas as trocas. Tais mercadorias são chamadas de dinheiro.

Ao longo da história, diferentes bens foram utilizados como meios de troca: tabaco, na Virgínia colonial; açúcar, nas Índias Ocidentais; sal, na Etiópia (na época, Abissínia); gado, na Grécia antiga; pregos, na Escócia; cobre, no Antigo Egito; além de grãos, rosários, chá, conchas e anzóis. Ao longo dos séculos, duas mercadorias, o ouro e a prata, foram espontaneamente escolhidas como dinheiro na livre concorrência do mercado, desalojando todas as outras mercadorias desta função. Tanto o ouro quanto a prata são altamente comerciáveis, são muito demandados como ornamento, e se sobressaem em todas as outras qualidades necessárias. Em épocas recentes, a prata, por ser relativamente mais abundante que o ouro, se mostrou mais útil para trocas de menor valor, ao passo que o ouro foi mais utilizado para transações de maior valor. De qualquer maneira, o importante é que, independentemente do motivo, o livre mercado escolheu o ouro e a prata como a mais eficiente forma de dinheiro.

Este processo — a evolução cumulativa de um meio de troca no livre mercado — é a única maneira pela qual o dinheiro pode surgir e ser estabelecido. O dinheiro não pode se originar de nenhuma outra maneira: mesmo que as pessoas repentinamente decidam criar dinheiro utilizando materiais inúteis, ou o governo decrete que determinados pedaços de papel agora são “dinheiro”, nada disso pode funcionar se o bem estipulado não possuir um histórico como meio de troca.

Toda e qualquer demanda por dinheiro ocorre porque as pessoas podem utilizar aquele bem para calcular preços. Incorporado na demanda pelo dinheiro está o conhecimento dos preços do passado imediato. Ao contrário dos bens diretamente utilizados pelos consumidores e pelos empreendedores, a mercadoria a ser utilizada como dinheiro tem de apresentar um histórico de expressão de valores na forma de preços. Antes de tal produto ser definido como dinheiro, ele tem de possuir um passado no qual ele foi utilizado como definidor de preços. É sobre este histórico que a demanda será baseada.

Porém, a única maneira pela qual isso pode acontecer é começando por uma mercadoria que foi utilizada quando a economia ainda operava sob escambo. Ato contínuo, a essa demanda anterior pelo seu uso direto (por exemplo, no caso do ouro, para ornamentos), é acrescentada a demanda para ele passar a ser utilizado como um meio de troca.[1]

Portanto, o governo é completamente impotente para criar um dinheiro do nada, utilizando um material sem passado algum como meio de troca; o dinheiro só pode surgir e evoluir pelo processo de livre mercado.

O que nos leva, então, à verdade mais importante de toda essa nossa argumentação a respeito do dinheiro: o dinheiro é uma mercadoria. Aprender essa simples lição é uma das tarefas mais importantes do mundo. Com enorme frequência, as pessoas falam de dinheiro como se fosse algo muito acima ou muito abaixo dessa realidade. O dinheiro não é uma abstrata unidade de conta, perfeitamente separável de um bem concreto; não é um objeto inútil que só presta para trocas; não é um “título de reivindicação” sobre os bens produzidos pela sociedade; não é uma garantia de um nível fixo de preços. O dinheiro é simplesmente uma mercadoria.

O dinheiro difere das demais mercadorias por ser demandado majoritariamente como um meio de troca. Mas, excetuando-se isso, o dinheiro é uma mercadoria — e, como todas as mercadorias, ele possui um estoque real e é demandado por pessoas que querem comprá-lo, que querem portá-lo etc. Como todas as mercadorias, seu “preço” — em termos de outros bens — é determinado pela interação entre sua oferta total, ou estoque, e sua demanda total por pessoas que querem comprá-lo e guardá-lo. (As pessoas “compram” dinheiro ao venderem seus bens e serviços, e “vendem” dinheiro ao comprarem bens e serviços).

Os benefícios do dinheiro

O surgimento do dinheiro foi uma grande dádiva para a humanidade. Sem o dinheiro — sem um meio geral de troca — seria impossível haver uma genuína especialização, uma genuína divisão do trabalho. Consequentemente, seria impossível a economia avançar para além de seu nível mais simples e primitivo. Com o dinheiro, todos os problemas de indivisibilidade e da “coincidência de desejos”, que atormentavam a sociedade baseada no escambo, são eliminados. Agora, João pode contratar trabalhadores e pagá-los em… dinheiro. O senhor Silva pode vender seu arado por unidades de… dinheiro.

O dinheiro-mercadoria é divisível em pequenas unidades, e é aceito generalizadamente por todos. Sendo assim, todos os bens e serviços são vendidos por dinheiro, e esse dinheiro é então utilizado para comprar outros bens e serviços que as pessoas desejam. Por causa do dinheiro, é possível se criar uma complexa “estrutura de produção” formada por fatores de produção como bens de capital, mão-de-obra e terra. Todos estes fatores são combinados de modo a aprimorar o processo produtivo em cada estágio da cadeia de produção. E todos estes fatores são pagos em dinheiro.

A criação do dinheiro traz outro grande benefício. Uma vez que todas as trocas são feitas em dinheiro, todas as ‘taxas de câmbio’ ou ‘razões de troca’ são expressos em valores monetários, de modo que as pessoas agora podem comparar o valor de mercado de cada bem em relação aos demais. Se um aparelho de televisão é trocável por três onças de ouro, e um automóvel é trocável por sessenta onças de ouro, então nota-se que um automóvel “vale”, no mercado, vinte aparelhos de televisão. Tais ‘taxas de câmbio’ ou ‘razões de troca’ são os preços, e o dinheiro-mercadoria serve como um denominador comum para todos os preços.

É o estabelecimento de preços monetários no mercado o que permite o desenvolvimento de uma economia civilizada, pois somente os preços permitem ao empreendedor fazer o cálculo econômico. Podendo fazer o cálculo econômico, os empreendedores podem avaliar o quão corretamente estão satisfazendo as demandas dos consumidores; eles podem avaliar como os preços de venda de seus produtos se comportam em relação aos preços que têm de pagar pelos fatores de produção (seus “custos”). Dado que todos esses preços são expressos em termos monetários, os empreendedores podem determinar se estão auferindo lucros ou sofrendo prejuízos. São esses cálculos que guiam os empreendedores, os trabalhadores e os proprietários de terra e de bens de capital em sua busca pela renda monetária no mercado. Somente esses cálculos permitem que recursos escassos sejam alocados para seu uso mais produtivo — para aqueles investimentos que irão satisfazer da melhor forma possível a demanda dos consumidores.

Praticamente todos os manuais de economia dizem que o dinheiro possui várias funções: ser um meio de troca, ser uma unidade de conta (ou um “mensurador de valores”), ser uma “reserva de valor” etc. No entanto, já deve estar claro que todas essas funções são simplesmente corolários da única grande função do dinheiro: ser um meio de troca. Por sempre ter sido um meio geral de troca, o ouro é a mercadoria mais comerciável. Ele pode ser estocado para servir como meio de troca tanto no futuro quanto no presente, e historicamente todos os preços sempre foram expressos em termos de ouro.[2] Por sempre ter sido uma mercadoria utilizada como meio para todas as trocas, o ouro sempre serviu como unidade de conta tanto para os preços do presente quanto para os preços esperados no futuro.

É importante entender que o dinheiro só pode ser visto como uma unidade de conta ou como um título de reivindicação sobre bens a partir do momento em que ele passa a servir como um meio de troca. É de sua função como meio de troca que derivam todas as outras suas características, como ser unidade de conta e reserva de valor.

Civilizações só existem e o mundo só se desenvolve quando existe o dinheiro.
[1] Sobre a origem do dinheiro, cf. Carl Menger, Principles of Economics, Glencoe: Free Press, 1950, p. 257-71; Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, New Haven: Yale University Press, 1951, p. 97-123.

[2] O dinheiro não “mensura” preços ou valores. O dinheiro é um denominador comum para a expressão de preços e valores. Em suma, os preços são expressos em dinheiro, mas são por ele mensurados.

Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
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