Um banco central efetua três funções significativas para o sistema bancário e para o governo:
1) ele serve de emprestador de última instância, o que significa, na prática, a garantia de que ele sempre irá imprimir dinheiro para socorrer as grandes instituições financeiras;
2) ele coordena, em conjunto com os bancos, o processo de inflação da oferta monetária, estabelecendo uma taxa uniforme à qual os bancos devem expandir o crédito, desta forma fazendo com que o sistema bancário de reservas fracionárias seja menos instável e mais lucrativo do que seria sem um banco central — o que explica, diga-se de passagem, por que os próprios bancos sempre clamaram por um banco central; e
3) ele permite, por meio de sua criação de dinheiro, que o governo possa financiar suas operações de maneira muito mais barata e sorrateira do que poderia caso não existisse um banco central.
Nenhum governo jamais disse: “Queremos gastar mais, portanto temos de abolir o banco central”, ou “Queremos gastar mais, portanto temos de acabar com a inflação e com o papel-moeda fiduciário de curso forçado”. Essa postura, por si só, já é um bom indicativo de toda a restrição que uma moeda sólida impõe sobre os governos. Metais preciosos não podem ser criados do nada, e é por isso que governos e os intelectuais governistas se exasperam à simples menção de um sistema monetário baseado neles.
O governo pode aumentar suas receitas de três maneiras. A tributação é o meio mais visível e, por isso mesmo, o mais limitado. Não se pode aumentar impostos indefinidamente, sob o risco de incitar um levante popular. O governo também pode tomar emprestado o dinheiro de que necessita, mas tal medida também acaba se tornando muito visível para o público, pois leva a taxas de juros maiores — à medida que o governo passa a competir por uma quantia limitada de crédito disponível, este vai se tornando mais escasso para os outros tomadores de empréstimo; consequentemente, os juros sobem.
Criar dinheiro do nada, a terceira opção, é o método preferível dos governos, uma vez que o processo por meio do qual a classe política desvia recursos da sociedade através da inflação é bem menos direto e óbvio do que nos casos da tributação e da tomada de empréstimos. Antigamente, os reis cortavam as bordas das moedas metálicas (medida essa chamada de “clipagem” da moeda) e utilizavam esses refugos para fundir novas moedas, provocando assim um aumento da oferta monetária. Tão logo descobriram esse truque, os governos passaram a guardar ciosamente o poder de manipular a moeda. Mises certa vez disse que, se o Banco da Inglaterra — criado em 1694 — já existisse e estivesse à disposição do Rei Charles I durante a Guerra Civil inglesa da década de 1640, ele poderia ter esmagado as forças parlamentares ordenadas contra ele, e a história inglesa teria sido bem diferente.
Juan de Mariana, o jesuíta espanhol que escreveu tratados no final do século XVI e início do século XVII, é mais bem conhecido no campo da filosofia política por ter defendido o regicídio em sua obra de 1599, De rege et regis institutione (Sobre o rei e a instituição real). Estudiosos frequentemente pressupõem que foi em decorrência desta afirmação provocativa que o governo espanhol o aprisionou por um tempo. Mas a verdade é que foi o seu Tratado Sobre a Alteração da Moeda, o qual condenava a inflação monetária como sendo algo imoral e maléfico, que lhe trouxe problemas.
Apenas pense nisso. Dizer que a população tem o direito de matar o rei era uma coisa relativamente aceitável. Agora, atacar diretamente a inflação, a força vital do regime? Isso já considerado ir longe demais.
Naquela época, se o governo incorresse em gastos adicionais e decidisse financiá-los parcialmente pela manipulação da moeda, o processo era direto e não muito difícil de entender. Atualmente, a sequência de eventos é um pouco mais complicada, porém não fundamentalmente diferente. Hoje, se um governo necessita de mais dinheiro, ele não irá simplesmente imprimir dinheiro e utilizá-lo para cobrir essa diferença. O processo não é tão grosseiro desta forma. Porém, se o examinarmos mais detidamente, veremos que se trata essencialmente da mesma coisa.
Os bancos centrais, criados por todos os governos ao redor do mundo, permitem que os governos possam gastar mais do que arrecadam em impostos. Tomar empréstimos permite aos governos gastarem mais do que coletam em impostos, mas tal medida, por si só, levaria a um inevitável aumento dos juros, o que por sua vez provocaria um perigoso desconforto no público. Sendo assim, o esquema atual de inflação é bem mais engenhoso. Em vez de dar o dinheiro diretamente para o governo, o Banco Central cria dinheiro eletrônico e o injeta no sistema bancário, provocando assim uma redução nos juros. Ato contínuo, os bancos utilizam este dinheiro recém-criado para comprar títulos do Tesouro. Desta forma, os juros não sobem e, consequentemente, os efeitos dos empréstimos governamentais sobre os juros são ocultados.
Logo, os bancos centrais servem aos propósitos dos governos ao criarem dinheiro, injetá-lo no sistema bancário e, com isso, afetarem os juros. Portanto, essencialmente, o Banco Central imprime dinheiro e o entrega ao governo, mas a maneira como ele faz isso não é tão direta e óbvia.
Como explicado, o governo federal vende seus títulos para o sistema bancário a preços artificialmente altos (o que correspondentemente significa juros baixos) porque os compradores de sua dívida sabem que poderão revender estes títulos ao Banco Central — é assim, comprando os títulos do Tesouro em posse dos bancos, que o Banco Central injeta dinheiro no sistema bancário. É verdade que o governo federal tem de pagar juros sobre estes títulos que agora estão em posse do Banco Central, mas o que ocorre é que no final do ano o Banco Central remete este dinheiro de volta para o Tesouro, retendo apenas o suficiente para cobrir suas despesas. É isso que ocorre com o dinheiro dos juros. E caso você esteja pensando que o governo federal ao menos tem de pagar o principal da dívida em posse do Banco Central, a verdade é que não. O governo pode rolar sua dívida pendente quando ela estiver vencendo, e ele faz isso emitindo um título novo para pagar o principal do título antigo.
Por meio deste processo convoluto — não coincidentemente, um processo que o público em geral quase nada sabe a respeito —, o governo federal se torna capaz de fazer o equivalente a imprimir dinheiro e gastá-lo. Ao passo que todas as pessoas e empresas têm de adquirir recursos gastando dinheiro que ganharam em atividades produtivas — em outras palavras, elas primeiro têm de produzir algo para a sociedade para só então poderem consumir —, o governo pode adquirir recursos sem antes ter produzido absolutamente nada. A criação de dinheiro por meio do monopólio estatal se torna, desta forma, apenas mais um mecanismo por meio do qual a relação de exploração do governo sobre a população se perpetua.
E como o Banco Central possibilita ao governo federal ocultar os reais custos de todos os seus gastos, a realidade é que o Banco Central fornece um incentivo para que o governo incorra em gastos adicionais em absolutamente todas as áreas, criando infinitos ministérios, programas, subsídios, regulamentações e agências reguladoras, sem que o público sinta diretamente e imediatamente os custos destes programas.
A expansão monetária é especialmente útil para um governo que quer gastar mais com programas eleitoreiros mas não quer aumentar impostos e nem tolerar um aumento de juros decorrente de seu maior volume de empréstimos para financiar essa gastança. É por isso que toda e qualquer conversa sobre banco central independente não passa de espuma. É racionalmente impossível imaginar um banco central mantendo uma postura monetária rígida e austera quando todo o regime — bem como toda a academia e toda a mídia — está demandando estímulos e juros baixos.
Por outro lado, embora seja verdade que um padrão-ouro restrinja a ação dos governos, também é verdade que os governos nunca tiveram nenhuma dificuldade em arrumar desculpas e pretextos para sair do padrão-ouro. Exatamente por essa razão, o padrão-ouro por si só não representa uma restrição suficiente sobre as ambições de nenhum governo.
E exatamente por isso, ao olharmos para o futuro, temos de abandonar toda e qualquer timidez em nossas propostas para uma reforma monetária. Não queremos um padrão ouro-câmbio, como aquele que existiu sob o sistema de Bretton Woods. Também não queremos um arranjo monetário em que o preço do ouro seja utilizado como um instrumento de calibragem para auxiliar a autoridade monetária em suas decisões sobre a quantidade de dinheiro que ela deve criar. Nem sequer desejamos a restauração do padrão-ouro clássico, por maiores que sejam seus méritos.
No século XIX, os teóricos monetários defensores da moeda sólida cunharam a maravilhosa frase “separação entre sistema bancário e estado”. Isso sem dúvida seria um bom começo. Mas queremos mais. O que necessitamos hoje é de uma total separação entre moeda e estado.
Há algumas características que tornam o dinheiro um bem singular dentre todos os bens de uma economia. Em primeiro lugar, o dinheiro é valorado não por suas características intrínsecas, mas por seu uso nos processos de troca indireta. Segundo, ao contrário de todos os outros bens, o dinheiro não é consumido, mas sim passado adiante de uma pessoa para outra — o que significa que o dinheiro não é nem um bem de consumo e nem um bem de produção. Finalmente, todos os outros bens e serviços da economia possuem seus preços expressados em termos deste bem.
No entanto, apesar destas características singulares, não há absolutamente nada em relação ao dinheiro — aliás, nem em relação a qualquer outro bem ou serviço — que possa nos fazer crer que sua produção deva ser efetuada pelo governo e somente por ele. O dinheiro constitui a metade de toda e qualquer transação de mercado. As pessoas que dizem acreditar na economia de mercado, mas que ainda assim estão dispostas a conceder ao estado a custódia deste bem crucial, deveriam repensar esta postura inexplicável e incoerente.
Intervencionistas frequentemente alegam que, se um determinado bem é muito importante, então sua produção não pode ser deixada a cargo das forças do livre mercado. A réplica dos defensores do livre mercado vira esse argumento do avesso: quanto mais importante um bem, mais essencial é que o governo fique o mais distante possível dele, deixando sua produção inteiramente a serviço da livre concorrência.
Em nenhuma outra área esta afirmação é tão crucial e verdadeira quanto na questão do dinheiro. Como Ludwig von Mises certa vez disse, a história do dinheiro é a história dos esforços governamentais para desvalorizar o dinheiro. O controle estatal sobre a moeda logrou apenas inflação monetária, empobrecimento da sociedade em relação ao estado, ciclos econômicos devastadores, bolhas financeiras, consumo de capital (dado que a inflação falsifica a contabilidade de lucros e prejuízos), risco moral e, acima de tudo, a expropriação da população de maneiras que ela é incapaz de entender. É esta expropriação silenciosa via inflação monetária que possibilita o contínuo agigantamento dos estados e de sua tirania ao redor do mundo, e são todas estas agressões combinadas que constituem um convincente sumário popular contra o atual sistema monetário e a favor de um substituto monetário gerido pelas forças da livre concorrência.
A expansão dos poderes do estado e a máquina de criar dinheiro, em suma, sempre estiveram intimamente relacionadas. É em vão denunciar o agigantamento do estado e suas distorções morais sem ao mesmo tempo atacar o indispensável mecanismo que possibilita toda essa expansão. Se realmente queremos nos opor ao estado e a todas as suas manifestações — sua gastança, seu endividamento, sua crescente tirania, sua burocracia, suas regulamentações, sua rede de proteção aos poderosos com boas conexões políticas, seus subsídios que distorcem o livre mercado etc. —, temos de apontar o dedo para a fonte que possibilita tudo isso, o Banco Central, a instituição que o estado, a mídia dócil e os economistas irão defender enquanto respirarem.
O estado conseguiu persuadir a humanidade de que seus próprios interesses são idênticos aos interesses dela. Ele conseguiu convencer a humanidade de que ele busca promover o seu bem-estar, que ele é o seu grande benfeitor e que todos nós devemos estar contentes em nosso papel de súditos submissos.
Mas a nossa visão é diferente. A relação entre o estado e a população não é benigna; não se trata de uma relação entre um generoso doador e um agradecido receptor. A relação é exploradora, por meio da qual um grupo de aristocratas que se autoperpetuam no poder e que nada produzem vivem à custa da maioria que trabalha exaustivamente. Seus programas, suas burocracias e suas regulamentações não protegem o público; eles os espoliam. Seus subsídios e seus protecionismos não promovem o chamado bem público; eles o solapam. Por que deveríamos esperar que o monopólio estatal da produção de dinheiro seria uma exceção a este padrão?
Como disse F.A. Hayek, não é sensato crer que o estado tenha qualquer interesse em nos fornecer um “dinheiro bom”. O que o estado realmente quer é o monopólio da produção do dinheiro, de modo que ele possa distribuir favores e benesses para seus grupos de eleitores favoritos. Não podemos ser obsequiosos em relação a essa postura.
O estado não faz concessões e nem cede a contemporizações; temos de fazer o mesmo. Na luta pela liberdade contra o poder, são poucos aqueles que irão se opor ao estado e à sabedoria convencional que ele nos adestrou a adotar. Vários intelectuais que antes se declaravam libertários irão se vender. Menos ainda serão aqueles que irão rejeitar por completo o estado e seus programas. O charme exercido pelo poder é irresistível demais para os mais fracos. Temos, portanto, de ser aqueles poucos que irão labutar divulgando ideias e se esforçando ao máximo para construir aquele futuro em que os poucos de hoje serão a maioria.
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