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Por que o euro é um sistema monetário autodestrutivo

O artigo a seguir foi extraído do capítulo 8 do livro A Tragédia do Euro.

Quando, em um determinado sistema monetário, os direitos de propriedade sobre o dinheiro são definidos de maneira obscura, há a ocorrência de vários efeitos externos negativos.  O arranjo institucional do euro, com seus direitos de propriedade debilmente definidos, levou o sistema para perto do colapso, e pode ser chamado de uma tragédia dos comuns.

Dinheiro de papel e custos externos

Custos e benefícios externos são o resultado de direitos de propriedade mal definidos ou mal defendidos.  O proprietário não assume todas as vantagens ou todas as desvantagens do uso de uma propriedade.  E dado que o agente não é totalmente responsável pelos efeitos de suas ações, ele não irá levar em consideração todas as consequências de suas ações.

O agente que não tira proveito de alguns dos benefícios de suas ações não irá levar em conta todos os efeitos positivos dela.  Um exemplo desses benefícios (externos) positivos pode ser o do dono de uma macieira cujos direitos de propriedade sobre as maçãs que crescem na árvore não estão garantidos.  As pessoas que caminham pela rua e passam sob a árvore podem simplesmente pegar as maçãs que estiverem ao seu alcance.  Esse comportamento é permitido pelo governo.  O dono da macieira provavelmente agiria diferente caso ele fosse o único patrono da árvore.  No atual arranjo, ele pode não querer proteger a árvore contra insetos, ou pode até mesmo derrubar a árvore para queimar a madeira.

Similarmente, o proprietário de algo pode gerar alguns custos externos.  Custos externos resultam da ausência de direitos de propriedade.  Custos externos são um ônus não para o proprietário, mas para terceiros.  O proprietário irá empreender alguns projetos que ele não empreenderia caso tivesse de assumir todos os custos.  Um exemplo de custos externos seria o proprietário de uma fábrica que despeja lixo em um lago público.  Este lago pode ser propriedade privada de terceiros, mas o governo não vai defender os direitos de propriedade dos donos do lago porque considera a fábrica extremamente essencial para o crescimento econômico.  Neste cenário, o proprietário da fábrica não tem de assumir todos os custos da produção, pois pode externalizar uma parte dos custos ao jogar sobre terceiros o lixo produzido.  Se o proprietário da fábrica tivesse de pagar pelo descarte do lixo, ele provavelmente agiria diferente.  Ele poderia produzir menos, ou operar de forma mais econômica, de modo a produzir menos resíduos.  Uma vez que os direitos de propriedade do lago não são bem defendidos ou nem sequer são definidos (como no caso de o lago ser propriedade pública), o dono da fábrica está liberado da responsabilidade de alguns dos custos incorridos.  Como consequência, haverá mais poluição do que haveria caso os direitos de propriedade fossem bem definidos.

O nosso atual sistema monetário possui vários níveis, e em cada um desses níveis os direitos de propriedade não são claramente definidos e defendidos.  No primeiro nível, os direitos de propriedade estão ausentes no campo da produção da base monetária — também chamado de dinheiro padrão, composto pelo dinheiro que existe fisicamente (cédulas, moedas metálicas e reservas bancárias que os bancos mantêm depositadas junto ao banco central).  O dinheiro oriundo de produção privada, o ouro, foi nacionalizado no século XX, e a produção privada de moeda-commodity pertence ao passado.

Assim, os governos, ao absorveram e monopolizaram a produção do dinheiro no século XX, fizeram com que o ouro — cuja produção era privada e cujos direitos de propriedade eram claramente definidos — fosse substituído pela moeda de papel de curso forçado, criada pelo governo.

Esse monopólio estatal sobre o dinheiro implica uma violação dos direitos de propriedade.  Somente os bancos centrais passaram a poder produzir a base monetária.  Os direitos de propriedade também são infringidos pelo fato de o papel-moeda ser de curso forçado.  Todos são obrigados a aceitar o dinheiro estatal para o pagamento de dívidas e o governo aceita somente esse dinheiro para o pagamento de impostos.

Ao conceder ao dinheiro de papel uma posição privilegiada e ao monopolizar sua produção, o governo faz com que os direitos de propriedade sobre o dinheiro não sejam defendidos e os custos da produção do dinheiro sejam parcialmente arcados por terceiros.  Caso ninguém fosse obrigado a aceitar esse dinheiro estatal e todos pudessem produzir o seu próprio dinheiro, não haveria nenhum custo externo.  As pessoas poderiam simplesmente decidir não aceitar dinheiro de papel ou decidir produzi-lo elas próprias.

No atual arranjo, os benefícios da produção de dinheiro são retidos pelo seu produtor — no caso, os bancos centrais e seus controladores (os governos).  Custos externos na forma de elevação de preços e, na maioria dos casos, um dinheiro de menor qualidade, são arcados por todos os usuários desse dinheiro de curso forçado.  Unidades adicionais de dinheiro não apenas tendem a elevar os preços, como também fazem com que a qualidade do dinheiro caia.  A qualidade média dos ativos lastreando o dinheiro é normalmente reduzida pela produção de papel-moeda.

Devido à violação dos direitos de propriedade na produção da base monetária, os governos podem lucrar com a produção de dinheiro e externalizar alguns custos.  Os benefícios para o governo são claros.  Eles podem financiar seus gastos com esse novo dinheiro recém-criado pelo banco central.  Os custos são deslocados para a população na forma de um dinheiro de menor qualidade e com menor poder de compra.

A tragédia dos comuns e o sistema bancário

Outro nível do sistema monetário em que os direitos de propriedade são mal definidos é o sistema bancário, no qual ocorre aquilo que economistas chamam de ‘tragédia dos comuns’.  A ‘tragédia dos comuns‘, expressão cunhada pelo ecologista Garret Hardin, é um caso especial do problema dos custos externos.  Como explicado acima, custos externos geralmente ocorrem quando direitos de propriedade não são bem definidos ou defendidos, e quando um proprietário privilegiado pode externalizar seus custos sobre terceiros.  É o caso do proprietário da fábrica que despeja impunemente seu lixo no lago privado ou o caso do banco central que produz dinheiro de curso forçado com o monopólio garantido pelo estado.  Em uma tragédia dos comuns, uma característica específica é adicionada ao problema dos custos externos.  Não apenas um, mas vários agentes que exploram uma propriedade podem externalizar seus custos sobre terceiros.  Não apenas um, mas vários donos de fábricas podem despejar lixo no lago privado.  Da mesma maneira, mais de um banco pode produzir meios fiduciários.

Os exemplos tradicionalmente utilizados para ilustrar uma tragédia dos comuns são os de propriedades comunais, como praias públicas ou cardumes no oceano.  Eles são explorados sem levar em consideração as desvantagens que podem ser parcialmente externalizadas.  Os benefícios são obtidos por vários usuários, mas alguns dos custos são externalizados.  Vejamos os incentivos para um determinado pescador.  Ao pescar o cardume, o pescador obtém os benefícios na forma de peixes; entretanto, os custos de um cardume agora reduzido são arcados por todos.

Se houvesse direitos de propriedade privada sobre o cardume, o proprietário desse cardume iria assumir totalmente os custos da redução de seu tamanho.  O proprietário teria um interesse em sua preservação de longo prazo.  Ele seria dono não apenas do uso presente (peixes capturados), mas também do valor capital do cardume.  O proprietário saberia que cada peixe que ele pescasse poderia implicar a redução do número de peixes para o futuro.  Ele compara os custos e benefícios da pesca e consequentemente decide sobre o número de peixe que ele quer pescar.  Ele tem interesse no valor capital ou na preservação de longo prazo do cardume.

A situação se altera radicalmente quando o cardume é propriedade pública.  Há aí um incentivo para a pesca predatória (isto é, pescar excessivamente causando a queda ou aniquilação da pesca na área), pois os benefícios são internalizados e os custos, parcialmente externalizados.  Todos os benefícios vão para o pescador, ao passo que os estragos decorridos da redução do cardume são arcados por todo o grupo de pescadores.  Com efeito, há o incentivo para se pescar o mais rápido possível, pois cada pescador sabe que seus colegas pensam da mesma forma.  Se eu não pescar logo, outros irão, e colherão os benefícios para si próprios, enquanto eu arcarei com os custos de um cardume reduzido.  Em uma tragédia dos comuns “pura”, não há limites para a exploração excessiva — e, como resultado, os recursos desaparecem.

O conceito de tragédia dos comuns pode ser exitosamente aplicado também em outras áreas, como, por exemplo, o sistema político.  Hans-Hermann Hoppe aplicou o conceito à democracia.  Em uma democracia, a entrada para o aparato governamental é pública.  Uma vez no governo, o indivíduo ganha acesso à propriedade de todas as pessoas do país utilizando o aparato coercivo do estado.  Os benefícios dessa apropriação da propriedade privada são internalizados, ao passo que os custos são arcados por toda a população.  Após um mandato, outras pessoas podem ganhar acesso ao aparato de coerção.  Assim, o incentivo é explorar ao máximo possível todos os limites do privilégio enquanto se estiver no poder.

Outra proveitosa aplicação da tragédia dos comuns ocorre no campo monetário.  Em nosso atual sistema bancário, em que os direitos de propriedade não são claramente definidos e defendidos, qualquer banco pode expandir o crédito produzindo meios fiduciários — isto é, conceder empréstimos criando depósitos à vista sem qualquer lastro.  No nível da base monetária, quando um único banco central pode criar dinheiro, não há uma tragédia dos comuns.  Entretanto, no nível do sistema bancário, uma tragédia dos comuns ocorre precisamente porque qualquer banco pode produzir meios fiduciários.

No sistema bancário, os princípios jurídicos tradicionais dos contratos de depósitos não são respeitados.  O sistema não deixa claro se os correntistas estão na realidade emprestando dinheiro ao banco ou se estão fazendo depósitos genuínos.  Depósitos genuínos requerem que o depositante tenha plena disponibilidade sobre todo o dinheiro que ele depositou.  Com efeito, essa total disponibilidade pode ser o motivo por que a maioria das pessoas mantém depósitos à vista.  Entretanto, o governo concede aos bancos o privilégio legal de utilizar o dinheiro que os correntistas depositaram neles.  Assim, os direitos de propriedade sobre o dinheiro depositado tornam-se nebulosos.

Bancos que fazem uso desse privilégio legal e dessa nebulosa definição dos direitos de propriedade sobre depósitos à vista podem obter lucros extraordinários.  Eles podem criar depósitos literalmente do nada, utilizá-los para conceder empréstimos e ainda cobrar juros.  Assim, a tentação de expandir o crédito é praticamente irresistível.  Ademais, os bancos irão tentar expandir o crédito e criar meios fiduciários o máximo possível e o mais rápido que puderem.  Essa expansão do crédito gera aquele fenômeno típico encontrado na tragédia dos comuns — os custos externos.  Nesse caso, todos os indivíduos da sociedade são prejudicados pelos aumentos nos preços trazidos pela emissão de meios fiduciários.

Existem, entretanto, várias diferenças entre um sistema bancário de reservas fracionárias e uma tragédia dos comuns (como um cardume sem dono).  Na análise do ecologista Hardin, virtualmente não há limites para a exploração das propriedades “sem dono definido”.  A exploração contínua dos recursos públicos será interrompida somente quando os custos se tornarem maiores que os benefícios, ou seja, quando o cardume for tão pequeno que o esforço de busca pelos peixes remanescentes deixa de ser vantajoso.  Também para os bancos que praticarem reservas fracionárias em um livre mercado, haverá limites importantes para a emissão de meios fiduciários à custa dos clientes.  Esse limite será determinado pelo comportamento dos outros bancos e de seus clientes.  Mais especificamente, a expansão do crédito será limitada, uma vez que os bancos, por meio do sistema de compensação de cheques (ou cartão de débito), podem levar uns aos outros à falência.

Imagine dois bancos: o banco A e o banco B.  O banco A expande o crédito; o banco B, não.  Os certificados de depósito emitidos pelo banco A são trocados entre os clientes do banco A e os clientes do banco B.  Em algum momento, os clientes do banco B ou o próprio banco B irão demandar do banco A a restituição em dinheiro destes certificados de depósito.  Consequentemente, o banco A irá perder parte de suas reservas em dinheiro.  Assim como todo banco que pratica reservas fracionárias, o banco A está inerentemente insolvente; ele não pode restituir em dinheiro todos os certificados de depósito que emitiu.  Se o banco B e seus clientes demandarem que o banco A restitua em dinheiro os certificados de depósito que emitiu em um volume incapaz de ser honrado, o banco A terá de declarar falência.

Assim, o sistema de compensação e os clientes dos outros bancos demandando restituição em dinheiro determinam limites estreitos para a criação de meios fiduciários.  Os bancos passam a ter um incentivo para restringir a expansão de meios fiduciários, expandindo menos do que os bancos rivais, com o objetivo final de levar esses seus concorrentes à falência.  Em outras palavras, é verdade que esses bancos naturalmente irão querer explorar as grandes oportunidades de lucro oferecidas pelos direitos de propriedade mal definidos, porém eles poderão expandir o crédito somente até determinado ponto; um ponto em que o risco de falência ainda pode ser evitado.  A concorrência os obriga a restringir sua expansão do crédito.

A questão agora passa a ser como os bancos podem elevar seus lucros por meio da expansão do crédito ao mesmo tempo em que mantêm sob controle o risco de falência.  A solução, obviamente, é fazer acordos entre si com o intuito de evitar as consequências negativas de uma expansão creditícia independente e não coordenada.  Sendo assim, os bancos estabelecem uma política comum de expansão creditícia simultânea.  Essas políticas permitem que eles se mantenham solventes, mantenham suas reservas de dinheiro inalteradas entre si, e colham altos lucros.

Portanto, a tragédia dos comuns não apenas prognostica a exploração excessiva e os custos externos de recursos cujos direitos de propriedade são mal definidos, como também explica por que, em um sistema bancário livre, haverá pressão para a formação de acordos, fusões e cartéis.  Entretanto, mesmo com a formação de cartéis, a ameaça de insolvência permanece.  Em outras palavras, o incentivo para levar os concorrentes à falência ainda continua em vigor, o que resulta na instabilidade dos cartéis.

Para os bancos que praticam reservas fracionárias, haverá uma grande demanda para a criação de um banco central que coordene a expansão creditícia do sistema bancário.  Aquela diferença entre a tragédia dos comuns aplicada ao meio ambiente e a tragédia dos comuns aplicada ao sistema bancário livre — os limites sobre a exploração excessiva — é agora removida pela introdução do banco central.  Assim, como explicou Jésus Huerta de Soto, uma genuína situação de tragédia dos comuns ocorre somente quando existe um banco central coordenando o sistema bancário.  Os bancos podem agora explorar sem restrições a propriedade mal definida (o dinheiro).

Mesmo no mais confortável dos cenários para os bancos — isto é, com a criação de um banco central e com papel-moeda de curso forçado —, ainda restam outros limites.  O banco central pode tentar regular os empréstimos bancários, desta forma controlando e limitando a expansão de crédito até um determinado grau.  A restrição suprema à expansão de crédito — o risco de hiperinflação — também se mantém.  Em outras palavras, mesmo com a criação de um banco central, ainda continua existindo um freio sobre a exploração da propriedade privada.  Em uma situação ideal de “tragédia dos comuns”, a tendência é explorar as propriedades mal definidas o mais rápido possível e, ao mesmo tempo, impedir que outros agentes façam o mesmo.  Porém, mesmo com a existência de um banco central que garanta sua solvência, não é do interesse dos bancos que praticam reservas fracionárias criar meios fiduciários o mais rápido possível.  Fazer isso poderia levar a uma hiperinflação descontrolada.  A exploração dos comuns deve, portanto, ser prolongada e implementada cuidadosamente.

A exploração excessiva da propriedade pública pode ser restringida de várias maneiras.  A mais simples é a privatização da propriedade pública.  Direitos de propriedade privada seriam finalmente definidos e defendidos.  Outra solução é a persuasão moral e a educação dos agentes que exploram os comuns.  Por exemplo, pescadores podem voluntariamente restringir a exploração do cardume.  Ainda outra opção é a regulamentação dos comuns para restringir a exploração excessiva.  Hardin rotula essa regulamentação de “comuns administrados”.  O governo limitaria a exploração.

Um exemplo seria a introdução de quotas de pescaria, as quais dariam a cada pescador uma determinada quota de pesca por ano.  Cada pescador receberia um direito de monopólio que ele tentaria explorar em sua totalidade.  A exploração excessiva seria, portanto, reduzida e administrada.

No caso do sistema bancário atual, temos uma situação de “comuns administrados”.  Os bancos centrais e a regulação do sistema bancário coordenam e limitam a expansão creditícia feita pelos bancos.  Ao exigir depósitos compulsórios, ao gerenciar a quantidade de reservas bancárias e ao determinar as taxas de juros, os bancos centrais podem limitar a expansão do crédito e os custos externos do reduzido poder de compra do dinheiro.

O euro e a tragédia dos comuns

Embora os efeitos externos gerador por um produtor de dinheiro monopolista e por um sistema bancário de reservas fracionárias regulado por um banco central sejam comuns no mundo ocidental, o estabelecimento do euro implica um terceiro e singular nível de efeitos externos.  O arranjo institucional do Eurossistema na União Monetária Europeia (UME) foi feito de tal forma que todos os governos podem utilizar o Banco Central Europeu(BCE) para financiar seus déficits.

(Seria mais correto falar “Eurossistema” em vez de “Banco Central Europeu”.  O Eurossistema é formado pelos bancos centrais dos países-membros mais o BCE.  Entretanto, dado que os bancos centrais dos países-membros se limitam apenas a receber ordens do BCE dentro de seus respectivos países, normalmente simplifica-se utilizando apenas o termo “BCE”.)

Um banco central pode financiar os déficits de um governo comprando os títulos da dívida deste governo.  No caso, o sistema bancário compra estes títulos para, em seguida, trocá-los por novo dinheiro criado pelo banco central.  Ou o sistema bancário, em caso de dificuldade, pode também utilizar estes títulos como garantia (colateral) para receber empréstimos temporários do banco central.

Na zona do euro, criou-se um novo arranjo: vários governos podem financiar seus déficits por meio de um único banco central — o BCE.

Quando os governos da UME incorrem em déficits orçamentários, eles emitem títulos para conseguir financiamento.  Uma parte substancial desses títulos é comprada pelo sistema bancário (a parte restante é comprada por companhias de seguro, fundos de investimento, fundos monetários, governos e bancos estrangeiros).  O sistema bancário compra prazerosamente esses títulos porque sabe que eles serão aceitos pelo BCE nas operações de mercado aberto (que é quando o BCE cria dinheiro para dar aos bancos em troca de títulos públicos).  Isso significa que é essencial e lucrativo para os bancos possuírem títulos governamentais em suas carteiras.  Ao apresentar esses títulos ao BCE, os bancos recebem dinheiro criado do nada pelo BCE.

O mecanismo funciona da seguinte maneira: os bancos criam dinheiro eletrônico (meios fiduciários) ao expandirem o crédito para seus clientes.  Em outros casos, eles criam dinheiro apenas para comprar títulos públicos.  Nesse caso, eles compram os títulos públicos e os utilizam em operações junto ao BCE.  Nessas operações, o BCE cria dinheiro (eletrônico ou físico) e compra os títulos públicos com esse dinheiro criado do nada.  Esse dinheiro vai parar nas reservas dos bancos.  Os bancos podem agora utilizar esse novo dinheiro para criar ainda mais meios fiduciários.

O resultado final é que os governos financiam seus déficits com dinheiro criado do nada (meios fiduciários) pelo sistema bancário, o qual compra títulos públicos do governo e os utiliza em operações junto ao BCE, nas quais eles, os bancos, conseguem mais dinheiro criado pelo BCE.  Esse dinheiro novo será utilizado pelo sistema bancário para novas expansões monetárias e concessões de crédito.

O incentivo de todo esse arranjo é claro: redistribuição.  Os primeiros usuários desse dinheiro recém-criado são os beneficiados.  Governos e bancos ficam com mais dinheiro à sua disposição; eles lucram com isso porque agora podem comprar bens e serviços a preços ainda inalterados — os preços ainda não aumentaram em decorrência da criação desse dinheiro.  Quando os governos começam a gastar esse dinheiro, os preços começam a subir.  A renda nominal de todos aumenta.  Quanto mais altos são os déficits, mais os governos emitem títulos, mais os preços e as rendas nominais sobem.  (Essa é a ilusão de riqueza propiciada pelos déficits governamentais.)

Quando os preços e a renda nominal aumentam no país cujo orçamento governamental é deficitário, esse novo dinheiro começa a fluir para fora do país, onde o efeito sobre os preços ainda não se manifestou.  Bens e serviços são comprados e importados dos outros países da UME, onde os preços ainda não subiram.  O novo dinheiro vai se propagando por toda a união monetária.

Na UME, os países deficitários que utilizam esse dinheiro recém-criado antes dos outros se beneficiam.  Naturalmente, há também um lado perdedor nessa redistribuição monetária.  Os países deficitários se beneficiam à custa daqueles que recebem por último este dinheiro recém-criado.  Os últimos recipientes desse dinheiro são principalmente os cidadãos dos países-membros cujos governos não incorrem em déficits muito altos.  Esses últimos recipientes perdem porque suas rendas começam a aumentar somente após os preços subirem.  Portanto, sua renda real diminui.

Na UME, os benefícios do aumento na oferta monetária vão para os primeiros usuários desse dinheiro recém-criado, ao passo que os estragos no poder de compra da unidade monetária é compartilhado por todos os usuários da moeda.  Não somente o poder de compra do dinheiro na UE cai em decorrência de déficits excessivos, como também as taxas de juros tendem a aumentar devido à demanda excessiva vinda de governos excessivamente endividados.  Países que são mais fiscalmente responsáveis acabam tendo de pagar juros maiores sobre suas dívidas por causa da extravagância de outros governos.  A consequência é uma tragédia dos comuns.  Qualquer governo que incorra em déficits pode lucrar à custa de outros governos que seguem políticas fiscais mais disciplinadas.

(Um problema adicional de risco moral surge quando os bancos que possuem títulos da dívida de governos são “socorridos” pela expansão monetária do banco central.  Quando os bancos sabem que terão essa ajuda do banco central, o qual comprará os títulos da dívida em sua posse, eles tendem a se comportar de modo mais imprudente, continuando assim a financiar governos irresponsáveis).

Imagine, por exemplo, que vários indivíduos possuam uma máquina que imprime o mesmo dinheiro de papel.  Esses indivíduos têm todos os incentivos para imprimir dinheiro e gastá-lo, elevando os preços.  Os benefícios, na forma de maior renda, ficam todos com os donos das impressoras, ao passo que os custos dessa ação, na forma de um menor poder de compra do dinheiro, são arcados por todos os usuários da moeda.  Consequentemente, o incentivo é imprimir dinheiro o mais rápido possível.  O dono de uma impressora que não imprimir dinheiro para si próprio verá os preços subirem em decorrência das impressões feitas por outros.  Esses outros usuários irão utilizar a impressora a fim de se beneficiar da perda no poder de compra que afeta aqueles donos de impressora que não a utilizam com a mesma voracidade.  O usuário que imprimir mais rápido obterá os maiores ganhos à custa dos usuários que imprimirem devagar.  Estamos lidando aqui com uma tragédia dos comuns “pura”.  Não há limites para a exploração do recurso.  Como no caso de recursos públicos naturais, há uma exploração excessiva que termina com a destruição do recurso.  Nesse caso, a moeda é aniquilada por uma hiperinflação seguida de um colapso.

Embora o exemplo de várias impressoras criando a mesma moeda nos ajude a entender a situação de forma visual, ele não se aplica exatamente à UME.  Mas as diferenças entre os dois arranjos nos ajudam a explicar por que não há uma tragédia dos comuns pura no Eurossistema e por que o euro ainda não desapareceu.  A diferença mais óbvia é que os países deficitários não podem imprimir euros diretamente.  Os governos podem apenas emitir seus próprios títulos.  Não há nenhuma garantia de que os bancos irão comprar esses títulos e utilizá-los como garantia (colateral) para novas operações junto ao BCE.

Na realidade, há várias razões pela qual o esquema pode não funcionar.

1. Os bancos podem não comprar títulos governamentais e utilizá-los como colateral caso a operação não seja atraente.  A taxa de juros oferecida pelos títulos governamentais pode não ser alta o bastante em relação às taxas de juros cobradas pelo BCE em suas operações junto ao sistema bancário [boa parte da política monetária do BCE se dá por meio de operações de empréstimo, nas quais o BCE adquire títulos públicos em posse dos bancos (por exemplo, imprimindo 1.000 euros e emprestando aos bancos) e estes pagam juros sobre estes empréstimos (por exemplo, 10 euros por ano), juros estes sempre renováveis, dado que o principal é continuamente rolado].  Os governos terão então de oferecer juros maiores para atrair os bancos.

2. O risco de calote sobre esses títulos governamentais pode afugentar os bancos.  Na UME, esse risco de calote sempre foi reduzido por causa da garantia implícita de socorro dada desde o início.  Dava-se como certo que, uma vez que um país havia sido admitido dentro da Eurozona, ele jamais sairia da UME.  O euro é visto, muito corretamente, como um projeto político e um passo rumo à integração política.

O calote de um país-membro e sua consequente saída desse arranjo não apenas seria visto como um fracasso do euro, mas também como um fracasso da versão socialista da União Europeia.  Politicamente, um calote é visto como algo quase que impossível.  A maioria sempre acreditou que, no pior dos casos, os países-membros mais poderosos iriam socorrer os mais fracos.  Antes de darem algum calote, países como a Alemanha garantiriam os títulos das nações do Mediterrâneo.  Tais garantias reduziram consideravelmente o risco de calote dos empréstimos para os governos dos países-membros.

Garantias implícitas agora se tornaram explícitas.  Em maio de 2010, a Eurozona e o Fundo Monetário Internacional (FMI) concederam à Grécia um pacote de resgate de 110 bilhões de euros.  Além disso, 750 bilhões de euros já foram prometidos para futuros socorros a outros países-membros.

3. O BCE poderia se recusar a aceitar determinados títulos governamentais como colateral.  O BCE exige que determinados títulos tenham uma classificação de risco mínima para que eles possam ser aceitos como colateral.  Antes da crise financeira de 2008, a classificação mínima era A-.  Durante a crise financeira, esse mínimo foi reduzido para BBB-.  Se a classificação dos títulos governamentais cair abaixo da classificação mínima admitida, esses títulos não serão aceitos como colateral.  Esse risco, entretanto, é muito baixo.  O BCE provavelmente não irá deixar a classificação de um país cair no futuro, e ele já vem fazendo concessões a essa regra.  A redução da classificação mínima para BBB- estava programada para expirar após um ano.  Quando se tornou aparente que a Grécia não seria capaz de manter pelo menos um A-, tal concessão foi estendida por mais um ano.  Finalmente, o BCE, em contraposição aos seus declarados princípios de não aplicar regras especiais a um determinado país, anunciou que iria aceitar todos os títulos da dívida grega, mesmo que fossem classificados como podres.

4. Os bancos que utilizam títulos governamentais como colateral para obter empréstimos junto ao BCE podem ficar temerosos com o risco de liquidez desses títulos, o que restringiria suas operações junto ao BCE.  Os títulos governamentais são tradicionalmente de prazos mais longos do que os empréstimos concedidos pelo BCE [veja o item 1].  As operações de empréstimo do BCE normalmente variam de uma semana a três meses.  Durante a crise, o prazo máximo foi ampliado para um ano.  Todavia, a maioria dos títulos governamentais ainda possui prazo de maturação maior do que as operações de empréstimo do BCE, às vezes chegando a 30 anos.  Consequentemente, o perigo é que a classificação de risco dos títulos seja reduzida ao longo desse prazo, fazendo com que o BCE pare de aceitá-los como colateral.  Nesse cenário, o BCE iria parar de rolar um empréstimo que utilizasse títulos governamentais como colateral, gerando problemas de liquidez para os bancos.

O risco de problemas de rolagem é relativamente pequeno; as classificações de risco são mantidas pela garantia implícita de socorro de outros governos e pela disposição política de salvar o projeto do euro, como foi demonstrado pela crise da dívida soberana.  Um outro lado do risco de liquidez é que as taxas de juros cobrados pelo BCE podem aumentar ao longo do tempo.  No extremo, elas poderiam se tornar maiores que a taxa de juros de um título governamental de prazo mais longo, a qual é fixa.  Esse risco é reduzido ao se adotar um spread suficientemente alto entre o rendimento do título do governo e as taxas de juros cobradas pelo BCE.

5. Um banco que ofereça ao BCE títulos governamentais no valor de um milhão de euros como colateral não recebe um empréstimo de um milhão de euros do BCE, mas sim uma quantia menor.  Essa redução depende do desconto que o BCE vai aplicar ao colateral.  O BCE diferencia cinco categorias diferentes de colateral, aos quais aplica diferentes descontos.  Os descontos para os títulos governamentais são os menores.  O BCE, portanto, subsidia o uso de títulos governamentais como colateral vis-à-vis outros instrumentos de dívida, desta forma apoiando o endividamento dos governos.

6. O BCE pode não acomodar todas as demandas por novos empréstimos.  Os bancos podem oferecer mais títulos como colateral do que o BCE está disposto a ofertar em empréstimos.  Caso decida aplicar uma política monetária mais restritiva, nem todos os bancos oferecendo títulos governamentais como colateral irão receber um empréstimo.  Entretanto, por razões políticas — especialmente a determinação de manter o projeto do euro —, pode-se esperar que o BCE irá acomodar tais demandas, principalmente se alguns governos estiverem com problemas.  Com efeito, o BCE começou a ofertar liquidez ilimitada para os mercados durante a crise financeira.  Toda e qualquer demanda por empréstimo foi saciada — contanto que colateral suficiente fosse ofertado.

Mesmo que ainda não tenhamos visto uma pura tragédia dos comuns no Eurossistema, chegamos perto.  Com a atual crise, estamos na realidade chegando ainda mais perto, pois o BCE começou a comprar diretamente os títulos das dívidas dos governos — o BCE anunciou, em maio de 2010, que iria começar a comprar títulos diretamente dos governos, tudo para salvar o projeto do euro.  Normalmente, se um governo incorre em déficits, ele emite títulos que são comprados pelos bancos, os quais os revendem ao BCE.  Com esse novo método, não há mais esse “desvio” pelo sistema bancário.  O BCE compra os títulos diretamente dos governos.  Essa inovação elimina a maioria dos riscos acima mencionados para o sistema bancário.

A tragédia do euro é o fato de que o sistema incentiva os governos a incorrerem em déficits mais altos, emitir títulos para financiar esses déficits e, com isso, fazer com que todos os países do bloco do euro arquem com os custos de políticas irresponsáveis — na forma de um menor poder de compra do euro.  Nesse arranjo, existem duas fontes de risco moral.  Uma advém do próprio funcionamento do Eurossistema e da garantia implícita de socorro dada pelo BCE; a outra advém da garantia implícita de socorro dada pelos outros governos do bloco.  Os efeitos disso tudo são um maior risco moral e uma excessiva emissão de títulos governamentais.

Com tais incentivos, os políticos tendem a elevar os déficits.  Por que financiar gastos mais altos elevando impostos, algo impopular?  Por que não apenas emitir títulos que serão comprados pela simples criação de dinheiro do BCE, mesmo que isso acabe por elevar os preços em toda a União Europeia?  Por que não externalizar os custos do gasto governamental?

A tragédia do euro é agravada pela miopia típica que acomete os governantes nas democracias: políticos tendem a se preocupar apenas com a próxima eleição, e não com os efeitos de longo prazo de suas políticas.  Eles utilizam o gasto público — e ampliam favores para determinados eleitorados — com o intuito de vencer a próxima eleição.  Aumentar os déficits posterga os problemas para o futuro e também os joga para todo o resto da União Europeia.

O líderes da UME sabem como externalizar os custos do gasto governamental em duas dimensões: geograficamente e temporariamente.  Geograficamente, alguns dos custos são arcados por toda a zona do euro na forma de preços mais altos.  Temporariamente, os problemas resultantes dos déficits mais altos serão possivelmente arcados por outros políticos, e somente no futuro remoto.  Os problemas da dívida soberana causados pelos déficits podem exigir cortes de gastos impostos pela UME, mas isso afetará apenas governos futuros.

Os incentivos para incorrer em déficits altos na UME são praticamente irresistíveis.  Como mostrado no nosso exemplo da impressora, apenas se um país praticar déficits mais altos que os outros, poderá ele se beneficiar.  Você tem de girar a impressora mais rapidamente que seus concorrentes para poder lucrar com a resultante redistribuição.  A renda nominal terá de subir em um ritmo mais rápido do que a queda do poder de compra da moeda.

Os trágicos incentivos advêm desse arranjo institucional singular da UME: um banco central para vários países.  Tais incentivos não eram ignorados quando a UME foi planejada.  O Tratado de Maastricht (Tratado da Comunidade Econômica), com efeito, adotou uma cláusula proibindo pacotes de socorro (Artigo 104b), a qual declara que não haverá resgates em caso de crise fiscal dos países-membros.  Junto com essa cláusula, veio a independência do Banco Central Europeu.  Isso foi feito para garantir que o Banco Central não seria utilizado para financiar pacotes de socorro.

Porém, os interesses políticos e a disposição de manter o projeto do euro se comprovaram mais fortes do que o papel em que tal cláusula estava escrita.  Além do mais, a independência do BCE não garante que ele não irá auxiliar em um resgate.  De fato, e como vimos, o BCE está sustentando continuamente todos os governos ao aceitar seus títulos em operações de empréstimo e de mercado aberto.  Não importa que seja vetado ao BCE comprar títulos diretamente dos governos; mesmo com o mecanismo de aceitar títulos como colateral, o BCE pode igualmente financiar os governos da mesma maneira que financiaria comprando títulos diretamente deles.

Houve outra tentativa de coibir os incentivos perversos de se incorrer em déficits excessivos.  Políticos introduziram regulamentações de estilo “comuns administrados”, com a intenção de reduzir os efeitos externos da tragédia dos comuns.  O pacto de estabilidade e crescimento (PEC) foi criado em 1997 em resposta às pressões da Alemanha para limitar a tragédia.  O pacto permite determinadas “quotas”, algo similar às quotas de pescaria, para a exploração do Banco Central.  A quota determina limites para a exploração: os déficits não podem ultrapassar 3% do PIB e a dívida total do governo não pode exceder 60% do PIB.  Mesmo que estes limites tivessem sido realmente aplicados, ainda haveria incentivos para sempre se estar no máximo permitido — 3% dos déficits financiados indiretamente pelo BCE.  Países com um déficit de 3% iriam externalizar parcialmente seus custos sobre aqueles países que apresentassem déficits mais baixos.

Entretanto, a regulação dos comuns fracassou.  O principal problema é que o PEC era apenas um acordo entre países independentes, sem imposição crível.  Quotas de pescaria podem ser fiscalizadas por um país em particular, mas quotas de inflação e de déficits de países independentes são mais difíceis de terem seu cumprimento impingido.  Sanções automáticas, como proposto inicialmente pelo governo alemão, não foram incluídas no PEC.  Vários países violaram os limites e muitas advertências foram emitidas, porém jamais foram aplicadas.  Países politicamente influentes, como a França e a Alemanha, que podiam ter defendido o PEC, infringiram suas provisões ao incorrerem continuamente em déficits maiores do que 3% de 2003 em diante.  Donos de um maior número de votos, França, Alemanha e outros países conseguiram impedir a imposição de penalidades.  Consequentemente, o PEC foi um fracasso total.  Não mais era possível fechar a caixa de Pandora de uma tragédia dos comuns.

Em 2010, nenhum país respeitou o limite máximo de 3% dos déficits.  A razão dívida/PIB da Europa como um todo é de 88%.

A tragédia do euro e o caso da Grécia

Os eventos fiscais na Grécia são exemplares da tragédia do euro e seus incentivos perversos.  Quando a Grécia entrou na União Monetária Europeia, três fatores se combinaram para gerar déficits excessivos no orçamento do país.  Primeiro, a Grécia foi admitida a uma taxa de câmbio muito alta.  Com essa taxa e com os salários vigentes, muitos trabalhadores se tornaram pouco competitivos em relação aos trabalhadores dos países do norte, muito mais capitalizados.  Para aliviar esse problema, as alternativas eram (1) reduzir os salários para aumentar a produtividade, (2) aumentar os gastos governamentais para subsidiar os desempregados (com seguro-desemprego ou esquemas de aposentadoria prematura), ou (3) empregar esses trabalhadores pouco competitivos diretamente no setor público.

Por causa dos poderosos sindicatos, a primeira alternativa foi deixada de lado.  Os políticos optaram pela segunda e terceira alternativas, as quais geraram altos déficits orçamentários.

Segundo, por ter entrado na União Monetária Europeia, o governo grego podia agora contar com uma garantia implícita de socorro do Banco Central Europeu e dos outros países-membros da UME.  As taxas de juros sobre os títulos da dívida do governo grego caíram para níveis próximos dos da Alemanha.  Consequentemente, os custos marginais de se incorrer em déficits foram reduzidos para o governo grego.  As taxas de juros estavam agora artificialmente baixas.  A Grécia era um país que já tinha dado vários calotes ao longo do século XX e que estava acostumado a altas taxas de inflação e a altos déficits, bem como a um crônico déficit na balança comercial.  Apesar disto tudo, o país passou a poder se endividar pagando praticamente as mesmas taxas de juros da Alemanha, um país com um histórico fiscal conservador e com um impressionante saldo na balança comercial.

Terceiro, a tragédia dos comuns entra em cena.  Os efeitos deste temerário comportamento fiscal do governo grego podia ser parcialmente externalizado para os outros membros da UME, uma vez que o Banco Central Europeu passou a aceitar títulos da dívida do governo grego como colateral para suas operações junto ao sistema bancário.  Os bancos europeus passaram a comprar títulos do governo grego (os quais pagavam um bônus em relação aos títulos do governo alemão) e a utilizar esses títulos para receber empréstimos do BCE a juros baixos (atualmente a juros de 1%, um negócio altamente lucrativo).

Os bancos compraram títulos gregos porque sabiam que o BCE iria aceitar esses títulos como colateral para conceder novos empréstimos.  Havia demanda por esses títulos gregos porque os juros que os bancos pagavam para o BCE eram menores do que os juros que os bancos recebiam do governo grego.  Caso o BCE não aceitasse os títulos gregos como colateral para seus empréstimos, a Grécia teria de pagar juros muito maiores sobre sua dívida.  Com efeito, o governo grego tem sido de certa forma socorrido ou sustentado pelo resto da UME por um longo tempo, em um perfeito exemplo da tragédia dos comuns.

Os custos dos déficits gregos foram parcialmente jogados para outros países da UME.  O BCE criou novos euros ao aceitar os títulos do governo grego como colateral.  As dívidas gregas foram assim monetizadas.  Com o dinheiro que recebeu com a venda de seus títulos, o governo grego elevou os gastos para ganhar apoio e popularidade junto à população grega.  Quando os preços começaram a subir na Grécia, o dinheiro fluiu para os outros países, elevando os preços no resto da UME.  Nos outros países-membros, as pessoas começaram a sentir os preços de suas compras subindo mais rapidamente do que suas rendas.  Esse mecanismo significou uma redistribuição de renda a favor da Grécia.  O governo grego estava sendo socorrido e auxiliado pelo resto da UME em uma constante transferência de poder de compra.

Philipp Bagus
Philipp Bagus
Philipp Bagus é professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri. É o autor do livro A Tragédia do Euro. Veja seu website.
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