N. do T.: O texto a seguir foi extraído do capítulo 12 do livro Memoirs (1940), uma pequena autobiografia escrita por Mises.
A impossibilidade do cálculo econômico em uma economia socialista é a teoria que está no cerne do meu pequeno livro publicado em 1920, o qual foi incorporado a uma obra mais expandida, Socialism (Gemeinwirtschaft), cuja primeira edição apareceu em 1922. Socialism,Liberalismo (Liberalismus) — publicado em 1927 —, e a compilação de artigos publicada em 1929 sob o título de Uma Crítica ao Intervencionismo(Kritik des Interventionismus) representam conjuntamente uma completa e detalhada análise dos problemas da cooperação social.
Nestes volumes, fiz uma investigação completa de todos os possíveis sistemas de cooperação e examinei suas respectivas viabilidades. Tais estudos foram compilados metodicamente e concluídos em meu livro lançado em 1940, Nationalökonomie [precursor alemão de Ação Humana]. Minha intenção era incluir mais um ensaio na coleção Uma Crítica ao Intervencionismo, chamado A estatização do crédito [Die Verstaatlichung des Kredits], o qual havia sido publicado no Zeitschrift für Nationalökonomie [jornal acadêmico alemão] em 1929. Os editores do Zeitschrift, no entanto, sumiram com o ensaio e só o encontraram após a coletânea já ter ido para o prelo.
Acredito firmemente que as teorias apresentadas nestes volumes são irrefutáveis. Neles, introduzi uma nova perspectiva para a abordagem destes problemas, a única perspectiva que tornou possível uma discussão científica sobre questões políticas. Fiz uma investigação sobre a utilidade das medidas propostas por cada um deles, isto é, sobre se o objetivo contemplado por tais medidas poderia de fato ser atingido através dos meios recomendados e empregados. Demonstrei que o exame dos vários sistemas de cooperação social é inútil quando conduzido por pontos de vista arbitrariamente escolhidos.
Declarar que a evolução do sistema de propriedade privada dos meios de produção inevitavelmente leva ao socialismo ou ao intervencionismo é algo inteiramente incabível do ponto de visto teórico. Mesmo que tal declaração se comprovasse verdadeira, isso não invalidaria minhas afirmações. Nem o socialismo e nem o intervencionismo adquirem algum significado ou propósito ao simplesmente se afirmar que a história inevitavelmente nos conduz a eles. Se o “retorno ao capitalismo” é hoje uma opção rejeitada, como geralmente se diz, então o destino de nossa civilização já foi selado. No entanto, o fato é que demonstrei ser insustentável a teoria de que o socialismo e o intervencionismo são inevitáveis. O capitalismo não se destrói a si próprio. As pessoas querem aboli-lo porque é no socialismo ou no intervencionismo que julgam estar sua salvação.
De tempos em tempos, cogitei a esperança de que meus escritos renderiam frutos práticos e positivos, e apontariam as políticas econômicas para a direção correta. Sempre procurei por alguma evidência de que estaria havendo alguma mudança na ideologia. No entanto, a verdade é que eu nunca me deixei iludir; minhas teorias explicam, mas não podem impedir, ou nem mesmo desacelerar, o declínio de uma grande civilização. Planejei ser um reformador, mas acabei sendo apenas o historiador do nosso declínio.
Em meus trabalhos sobre cooperação social, despendi muito tempo e esforço contestando socialistas e intervencionistas de todas as variedades e tendências. O tema em questão — a rejeição a reformas contrárias a seus propósitos — fez com que meu esforço fosse necessário.
Fui acusado de não ter considerado o aspecto psicológico do problema da cooperação. Afinal, o homem tem uma alma. E esta alma, dizem, se torna inquieta e apreensiva em um sistema capitalista, e estaria disposta a sofrer uma redução em seu padrão de vida em troca de uma sociedade que tenha uma estrutura de trabalho e emprego mais satisfatória.
Em primeiro lugar, é importante estabelecer que este argumento (vamos chamá-lo de argumento emocional) não é compatível com o que chamamos de argumento racional, que é o argumento original dos socialistas e intervencionistas, e que é aquele ao qual eles se mantêm apegados até hoje. O argumento racional justifica os programas socialistas ao asseverar que o capitalismo obstrui o pleno desenvolvimento das capacidades produtivas. Os métodos socialistas iriam, portanto, elevar incomensuravelmente a produção, desta forma criando as condições que tornariam possível uma ampla oferta de bens para todos. O marxismo está inteiramente fundamentado no argumento racional. Antes de Lênin, os marxistas jamais haviam afirmado que a transição para o socialismo geraria uma redução no padrão de vida durante o período de transição. Eles afirmaram que haveria um imediato aprimoramento da situação material das massas, tomando o cuidado de acrescentar, aqui e ali, que a totalidade das bênçãos dos métodos socialistas de produção só se manifestaria no longo prazo. Em decorrência de todas as críticas levantadas contra os programas socialistas, os socialistas foram obrigados a se apegar ao argumento emocional para continuarem lutando por sua causa.
Ao julgar o argumento emocional, é claro, é de decisiva importância analisar o grau de redução no bem-estar econômico gerado por um sistema de produção socialista. Dado que isso não pode ser determinado objetivamente e nem mensurado precisamente, diz-se que o debate entre os defensores do socialismo e seus oponentes é cientificamente insolúvel; a ciência econômica não pode resolver o conflito.
Para lidar com esse problema, adotei uma abordagem que não permite a aplicação do argumento emocional. Dado que um sistema socialista inevitavelmente leva ao caos econômico, pois se trata de um sistema no qual o cálculo econômico é impossível, e se o intervencionismo não pode alcançar os objetivos desejados por seus proponentes, então utilizar o argumento emocional para tentar auxiliar na defesa destes sistemas ilógicos é uma atitude, além de ineficaz, irrelevante.
Jamais neguei que fatores emocionais explicassem a popularidade de políticas anticapitalistas. Porém, propostas desaconselháveis e medidas inadequadas não podem magicamente se transformar em aconselháveis e adequadas só por causa da manifestação de tais emoções. Se as pessoas não podem tolerar o capitalismo “psicologicamente”, então será impossível firmar uma cultura que propicie a sobrevivência do capitalismo; consequentemente, o capitalismo irá fracassar.
Fui muito acusado de ter superestimado os papeis desempenhados pela lógica e pela razão em nossa vida. Em teoria, não há um “ou isto ou aquilo”. A vida, foi-me dito, consiste de concessões e contemporizações. Aquilo que parece ser incompatível com a análise científica pode adquirir um formato viável na prática; a política irá encontrar uma maneira de fundir princípios contraditórios e aparentemente incompatíveis. A solução pode até ser considerada ilógica, irracional e insensata, mas pode ser proveitosa. E isso, apenas isso, é o que importa.
Mas os críticos estão enganados. As pessoas desejam seguir um determinado curso de ação que consideram mais conveniente. Nada é mais remoto para elas do que um desejo realizado pela metade. É verdade que aquelas religiões que preconizam a rejeição às questões mundanas têm prosperado bastante neste mundo. Porém, os rigorosos ensinamentos do cristianismo e do budismo jamais conseguiram domar os espíritos. Os severos ensinamentos destas duas religiões que conseguiram penetrar a fé popular não obstaculizaram as atividades da vida secular. Aquiescência aos mandamentos e às autoridades religiosas ficou reservada aos monges. Mesmo durante a Idade Média, os príncipes da Igreja não permitiram que suas atividades fossem influenciadas pela consideração aos ensinamentos do Sermão da Montanha e a outras lições evangélicas. O pequeno grupo daqueles que de fato levou o cristianismo e o budismo a sério se retirou das questões seculares. Já todos aqueles que decidiram permanecer em nosso mundo não podem ser caracterizados meramente como pessoas que optaram por uma contemporização; elas simplesmente não podem ser consideradas genuinamente cristãs e nem budistas.
Atualmente, enfrentamos um problema de natureza distinta. As massas tendem ao socialismo ou ao intervencionismo; em ambos os casos, elas são anticapitalistas. Mas o individualista não busca proteger sua alma em relação a este mundo; o que ele quer é remodelar e modernizar o mundo. Ele irá perseverar e assistir a todos os acontecimentos até o fim. Já as massas são implacáveis em sua consistência: elas prefeririam destruir o mundo a ver uma ínfima fatia de seus planos políticos ser abolida.
Não há nenhum consolo em relembrar o fato de que sempre houve intervencionismo na era pré-capitalista. Pouquíssimas pessoas viviam na superfície da terra naquela época, e as massas estavam satisfeitas com condições de vida que hoje considerariam intoleráveis. Não se pode simplesmente decidir abandonar o capitalismo e retornar a um século que já acabou. Isso seria intolerável para todos.