Quando as placas tectônicas sob a sociedade se deslocam, a confusão toma conta. E junto com a confusão vêm as ilusões e os pensamentos fantasiosos.
Tudo indica que os mercados financeiros, mais uma vez, conseguiram se deixar levar para um estado de expectativas irrealistas. A ideia agora é que oencontro de líderes europeus ocorrido no domingo, 23 de outubro, e sua sequência, na próxima quarta-feira, supostamente criará um “plano abrangente” para resolver a crise da dívida europeia. Mas é claro que nada disso irá ocorrer, e por uma razão muito simples: é impossível. Aqueles que acalentem tais esperanças fantasiosas são ingênuos e fatalmente se desapontarão.
Recuemos um pouco e analisemos o problema, o qual, bem resumidamente, é este: o modelo social dominante da segunda metade do século XX — o estado social-democrata com seus altos níveis de tributação, de regulamentação e de sufocantes intervenções no mercado, algo que, por conseguinte, o torna crescentemente dependente de uma constante expansão da oferta de papel-moeda fiduciário e do crédito artificialmente barato — está rapidamente se aproximando de seu lógico e inevitável ponto final, e não só na Europa. Ao redor do mundo, uma excessiva e ingovernável pilha de dívida vai se amontoando, a fragilidade financeira vai se tornando sistêmica e o crescimento econômico segue debilitado.
Para muitos, inclusive para alguns daqueles que estão protestando sob o estandarte ‘Ocupar Wall Street’, toda essa bagunça merece o rótulo de “crise do capitalismo”. Que isso seja uma besteira e um contrassenso é algo que já expliquei aqui. O que realmente estamos testemunhando não é a crise do capitalismo, mas sim o fracasso do estatismo. O atual sistema, certamente o sistema financeiro, pouco tem a ver com um genuíno capitalismo; e se os mercados financeiros estão agora sendo demonizados pelo seu fracasso de não mais estar conseguindo financiar esquemas Ponzi, então isso significa que se está querendo matar o mensageiro ao invés de atacar — ou até mesmo de entender — as causas básicas da doença. Como disse, estamos também vivenciando uma época de grande confusão.
Fracasso do estatismo
A loucura monetária das últimas décadas foi possível somente por causa da gradual transição ocorrida no sistema: foi-se abandonando a apolítica e inflexível moeda-commodity (o dinheiro escolhido pelo livre mercado) em prol da ilimitada e totalmente discricionária moeda fiduciária (dinheiro estatal). Essa mudança foi completada no dia 15 de agosto de 1971, quando tal sistema tornou-se global. Em termos puramente lógicos, o que este sistema monetário inevitavelmente gera?
Em um sistema completamente baseado no dinheiro de papel, bancos não podem ser considerados empresas capitalistas privadas; eles necessariamente se tornam meras extensões do estado, pois o estado detém o monopólio da irrestrita criação de dinheiro. O setor bancário torna-se um cartel comandado e coordenado pelo banco central estatal (processo esse descrito aqui). Para operar um banco, você precisa ter uma licença estatal que requer que você tenha uma conta junto ao banco central.
Em tal sistema, o banco central pode criar reservas bancárias literalmente do nada e sem qualquer limite, além de possuir total controle sobre o nível e o custo destas reservas. O banco central, portanto, detém o controle supremo do financiamento dos bancos e da disponibilidade de crédito na economia — disponibilidade essa que, sob esse arranjo, foi supostamente libertada de sua limitação natural sob o capitalismo: a poupança voluntária.
Neste sistema, geralmente se supõe que o estado não pode ir à falência, pois ele sempre poderá imprimir mais dinheiro para se financiar. Da mesma maneira, supõe-se que os bancos não apenas não podem quebrar, como também não precisam sequer encolher, ao menos coletivamente, pois uma quantidade infinita de reservas bancários sempre pode ser injetada no sistema para socorrê-los. E isso de fato se tornou uma regra geral no mundo atual.
Logo, não é de se surpreender que aqueles que estão no comando dos bancos e aqueles que estão no comando das finanças estatais venham se comportando há décadas como se o genuíno Grande Regulador da vida econômica — isto é, a ameaça de falência — não lhes inquietasse o mínimo. Mas agora que o sistema finalmente está sofrendo as consequências de sua overdose de crédito farto e barato, e que os quarenta anos de farra alimentada pelo dinheiro de papel acabou, a realidade já está se impondo vigorosamente. E ela vem causando choque.
Há muita conversa sobre um ‘retorno à normalidade’. O mercado, é claro, possui uma maneira de retornar à normalidade, a qual envolve liquidar os excessos, limpar os desequilíbrios e desarranjos, declarar moratória sobre aquilo que não pode e não será quitado, e deflacionar os preços que não refletem a demanda real. Liquidação, calote e deflação, entretanto, são resoluções politicamente inaceitáveis, pois elas atacam exatamente o cerne do nosso sistema de ‘capitalismo’ administrado pelo estado: a noção de que o estado está acima das leis da ciência econômica, e que ele pode conferir similar imunidade aos seus protetorados, sendo os mais importantes os bancos.
Qual o problema de 2 trilhões de euros entre amigos?
Voltemos à realidade alternativa do debate político na Europa. A esperança de vários agentes do mercado financeiro parece ser a de que o encontro de líderes europeus irá revelar 1) quais serão as medidas tomadas pela Alemanha e pela França para erigir uma muralha em volta da Grécia, caso ela declare moratória, 2) que os bancos serão ‘recapitalizados’, e 3) novas medidas decisivas rumo a uma maior ‘integração fiscal’. O desejo aqui é evidente: o Paizão irá finalmente dar um passo adiante, riscar uma linha na areia e dizer: “Todo acaba aqui. Hora de sair dessa crise.”
Há apenas um problema: ninguém tem o dinheiro para fazer isso tudo.
Na quarta-feira passada, o jornal britânico The Guardian especulou que a Alemanha e a França haviam concordado em criar um fundo de socorro de 2 trilhões de euros. Como consequência, os mercados de ações ao redor do mundo vivenciaram uma breve e forte reação. Finalmente a grande bazuca havia sido disparada.
Eu realmente fico imaginando se ninguém nunca ouviu falar de Brian Cowen. Ele era o desafortunado camarada irlandês que, em 2008, resolveu brincar de Paizão implementando uma proteção oficial do governo para os bancos irlandeses. A consequência foi a bancarrota geral de seu país.
Se Merkel e Sarkozy fossem realmente imbecis a ponto de lançar um fundo de socorro de 2 trilhões de euros, certamente valeria muito a pena ficar imediatamente vendido em títulos públicos franceses e alemães. Alemanha e França não têm dinheiro para socorrer ninguém. Tudo o que eles podem fazer é empilhar ainda mais dívida sobre uma já colossal e cada vez maior pilha de dívida própria. O mercado não levaria tanto tempo, como ocorreu em 2008 no caso da Irlanda, para perceber qual seria o fim da aventura. [E, de fato, a insanidade foicancelada ontem].
Ademais, todos os envolvidos já devem ter percebido que o garotinho perdido na multidão já gritou que o imperador Sarkozy e a imperatriz Merkel estão nus. O spread dos juros dos títulos públicos franceses já explodiu, e a Moody’s já alertou que a classificação AAA da França (hein? Três As?) pode ser submetida a uma revisão. Os spreads dos CDS [Credit Default Swap, uma espécie de seguro contra um eventual calote de uma instituição qualquer] dos títulos alemães estão crescendo, e o custo de se fazer um seguro contra a falência da Alemanha só tem uma direção a seguir: para o alto. Já mencionei que ficar vendido em títulos alemães e em títulos do Tesouro americano é a estratégia do século?
Toda a noção de ‘cercar’ a Grécia é, obviamente, absurda. É como se a Grécia tivesse contraído alguma rara doença contagiosa da qual nações mais saudáveis, como Itália ou Espanha, tivessem de se proteger. No entanto, a contínua e infindável deterioração fiscal não é um vírus, mas sim uma ferida fatal e autoinfligida, que todas as nações europeias — e, com efeito, quase todos os modernos estados social-democráticos — estão se impondo a si próprias. A diferença entre a Grécia e a Alemanha é de grau e não de princípio.
Por essas razões, a ideia de que uma forma de ‘integração fiscal’ poderia ser a solução é igualmente absurda e sem sentido. É como se juntar as finanças dos já-falidos com a dos quase-falidos fosse de alguma forma gerar uma comunidade de fiscalmente sólidos; é como se você pudesse melhorar a situação fiscal de uma comunidade na qual alguns habitantes estouraram seus cartões de crédito, e outros ainda estão um pouco abaixo do seu limite, dando a todos eles uma conta bancária conjunta.
Mas então isso significa que todas as opções políticas se exauriram? Isso então significa que o calote, a liquidação e a deflação são agora inevitáveis?
Ainda vai piorar
Calma. Ainda restam algumas opções para os governos. Nenhuma delas irá solucionar o problema; todas elas irão piorar a crise; todas elas são assustadoramente feias e destrutivas. Obviamente, creio que todas elas serão rapidamente adotadas pelos governos.
Sempre há a probabilidade de novas regulamentações e de mais intervenções no mercado. Sempre se pode recorrer a controles de capital e à proibição da venda á descoberto de títulos do governo. Creio que tudo isso será implementado em algum ponto de um futuro não muito distante. Como todas as intervenções governamentais, elas irão piorar as coisas e acelerar o falecimento do sistema.
Porém, o maior de todos os erros já está sendo cometido, e nem de longe está prestes a acabar: a impressão, cada vez mais rápida, de quantidades cada vez maiores de dinheiro.
O Banco Central Europeu será solicitado/convencido/forçado a prover suporte ao mercado de títulos da dívida de um número cada vez maior de governos de países europeus. E a uma intensidade crescente. Bancos centrais e moedas fiduciárias não são criações do livre mercado, mas sim de políticos. Sua função sempre foi a definanciar o estado. Já chegamos ao ponto em que todos os principais bancos centrais do mundo são os principais compradores — frequentemente, os maiores compradores marginais — da dívida de seus governos. O Federal Reserve já é o maior detentor de títulos do Tesouro americano; e quando a recém-anunciada segunda rodada de “afrouxamento quantitativo” for completada na Grã-Bretanha, o Bank of England será o detentor de quase um quarto de todos os títulos públicos britânicos (os Gilts).
Financiar o estado diretamente com a impressora de dinheiro é o penúltimo estágio lógico da morte do atual sistema de moeda fiduciária, e todas as economias estão se aproximando velozmente desse ponto. A zona do euro não será exceção. O estágio final é a perda de confiança no papel-moeda e o consequente colapso inflacionário.
Se há uma consequência a ser esperada desse encontro de líderes europeus é a de que eles darão mais um passo crucial para acelerar a já avançada degradação do papel-moeda.