Thursday, November 21, 2024
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O cartel dos advogados

oabNo século XIX, a advocacia era uma profissão aberta para o mercado.  Não havia decretos estipulando o tipo ou mesmo a duração da formação que um indivíduo deveria possuir para exercer a advocacia.  Nenhuma lei restringia nenhuma pessoa de ofertar seus serviços nesta área.  Os únicos que reclamavam eram aqueles advogados que queriam forçar “padrões mais elevados” sobre o mercado.

[No Brasil, o Instituto dos Advogados do Brasil foi criado em 1843.  O IAB exigia a formação acadêmica, mas não tinha poderes para fiscalizar e não obrigava os formandos a se cartelizar para poder exercer sua profissão.  Em 1930, Getulio Vargas, por meio do Decreto n.º 19.408, de 18 de novembro de 1930, institui a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entidade que passaria a ser quem efetivamente daria o aval para que a pessoa pudesse ou não exercer a profissão advocatícia.

Entretanto, até a década de 1970, ainda era possível exercer a advocacia sem se possuir formação acadêmica, sendo esse profissional pejorativamente chamado de Rábula.  Foi a partir dos anos 1970 que a OAB começou a endurecer, culminando com uma lei de 1994, decretada pelo governo federal, declarando que a advocacia seria prerrogativa exclusiva dos bacharéis em Direito aprovados no exame de ordem da OAB.  Ou seja, o advogado é o único profissional que, ao terminar a sua graduação, deve obrigatoriamente se submeter a um teste para poder exercer sua profissão.  Criou-se assim a mais poderosa guilda do Brasil; uma reserva de mercado extremamente eficiente para restringir a oferta de serviços e, com isso, encarecer os preços ao mesmo tempo em que derruba a qualidade, pois a concorrência é extremamente restrita.

Tão poderosa é essa guilda, que ela se tornou a única entidade corporativista citada em um texto constitucional.  Como bem disse Roberto Campos: “A OAB conseguiu a façanha de ser mencionada três vezes na ‘Constituição besteirol’ de 1988.  É talvez o único caso no mundo em que um clube de profissionais conseguiu sacralização no texto constitucional.”]

Atualmente, a advocacia é uma área restrita exclusivamente àqueles que podem bancar as amplamente inúteis e altamente custosas etapas exigidas para se obter uma licença, tudo graças ao lobby dessa associação de advogados.  Você não pode “advogar” — um conceito extremamente vago — a menos que possua uma licença concedida pela guilda que opera sob a proteção do estado.  E você não consegue obter uma licença sem passar pela tortura extremamente dispendiosa das faculdades de direito e, principalmente, pelo próprio exame da Ordem.  A “prática não autorizada da advocacia” (uma regra jurídica) protege da concorrência esse cartel legitimado pelo estado (todo cartel só funciona quando sancionado pelo estado).

Ao elevar artificialmente o custo de entrada no mercado, a Ordem reduz sobremaneira a quantidade de concorrentes.  Aqueles que conseguem entrar nesse mercado altamente cartelizado estão livres para cobrar preços muito mais altos, sem temor de concorrência.  Nos EUA, ocorreu uma situação cômica: a própria American Bar Association (a OAB americana) publicou vários estudos que concluíram que um grande número de cidadãos americanos não conseguia bancar os honorários de advogados, o que significava que havia uma grande parcela de cidadãos que simplesmente não tinha condições de contratar um bom advogado para nada.  Porém, ao invés de seguir a lógica e defender um livre mercado para a advocacia, a ABA passou a fazer lobby para que o governo americano começasse a subsidiar os pobres para que estes pudessem bancar os caríssimos honorários dos advogados.  Ou seja, na prática, não satisfeita com seu cartel chancelado pelo estado, a ABA queria também receber dinheiro diretamente do governo.

Em 1987, o presidente da Legal Services Corporation (entidade privada e sem fins lucrativos que busca garantir acesso igualitário à justiça para todos os americanos que não podem bancar advogados), W. Clark Durant, fez um discurso na sede da ABA pedindo a abolição de sua própria agência e de todas barreiras à concorrência, pedindo um livre mercado para a advocacia.  No dia seguinte, o presidente da ABA pediu que Durant fosse demitido.

A Ordem é extremamente vigilante e ciosa de seu mercado restrito, sempre intimidando e processando advogados “não-autorizados”.  Quando instada a defender suas medidas, ela apenas diz que está tentando “proteger” os consumidores contra ‘provisionados‘ destreinados e incompetentes.  Porém, tal justificativa não faz sentido.  Consumidores que porventura fossem prejudicados por um advogado sem formação poderiam facilmente processá-lo, e sem dúvida contariam com os ávidos e entusiásticos préstimos de um advogado formado.

Outro exemplo americano muito ilustrativo vem da cidade de Portland, no estado do Oregon.  Robin Smith havia trabalhado como técnica jurídica em um grande escritório de advocacia por vários anos, mas estava enojada com o fato de que os advogados de seu escritório cobravam altos honorários de seus clientes por um trabalho que era todo feito por ela, e honorários que a maioria das pessoas mal podia pagar.  Sendo assim, ela se demitiu e abriu um negócio próprio, a People’s Paralegal, Inc (algo como Assistência Jurídica do Povo).  Durante vários anos, seu empreendimento se expandiu continuamente, oferecendo a baixo custo serviços que eram amplamente demandados, tal como esboço de testamentos e papelada para divórcios.  Ela sabia que tinha de fornecer serviços de alta qualidade para poder ser aprovada pelo teste que realmente importa, o teste do mercado — e assim, ela se esforçou para fazer um bom trabalho, um trabalho que satisfizesse seus clientes.  E ela de fato se saiu muito bem.

Porém, o sucesso é perigoso e a guilda é furiosa e temerosa da concorrência trazida pelo livre mercado.  A Ordem dos Advogados do Oregon entrou com um processo contra Smith por violação do estatuto da “prática não autorizada da advocacia” e o veredito foi aquele totalmente previsto para um cartel legalizado.  Não apenas aPeople’s Paralegal foi coagida a jamais “violar a lei” novamente, como também Smith foi obrigada a ressarcir à Ordem todos os custos que a mesma incorreu na ação judicial contra Smith!  Os cidadãos do Oregon perderam uma fonte alternativa e de baixo custo para assistência jurídica e Robin Smith e seus empregados perderam a liberdade de servir pessoas que voluntariamente procuravam seus serviços.

A guilda não vai atrás apenas daqueles indivíduos que têm a audácia de concorrer contra ela no mercado; ela também vai atrás de qualquer pessoa que ouse publicar livros que forneçam informações para aqueles que queiram lidar sozinhos com seus próprios problemas jurídicos.  Nos EUA, ficou famoso o caso da Ordem dos Advogados de Nova York agitando contra Norman Dacey, autor do livro “How To Avoid Probate!” (Como Evitar a Inventariação!).  Porém, a Corte de Apelação de Nova York se recusou a atender aos pedidos da Ordem de proibir a comercialização do livro.

No Texas, a Ordem do estado intimidou e “investigou” a editora Nolo Press, de Berkeley, Califórnia, por publicar livros de auto-ajuda jurídica.  A Ordem avisou à Nolo que ela deveria comparecer em juízo e responder à acusação de que, ao vender livros e softwares que permitiam que indivíduos fizessem seu próprio trabalho jurídico, a empresa era culpada de “praticar advocacia” sem ter licença.  A Nolo reagiu e disse que tal investigação era o início de uma ampla censura estatal.  A Associação Americana de Biblioteconomia Jurídica e a Associação Bibliotecária do Texas apoiaram a Nola.  No final, a legislatura do Texas aprovou a lei HR 1507, que expressamente eximia livros e websites da acusação de praticar advocacia sem ter licença, desde que eles “declarassem de forma clara e conspícua que tais produtos não são substitutos para os conselhos de um advogado“.

Estes e milhares de outros casos de “prática não autorizada da advocacia” mostram por que essa abordagem regulatória da “proteção” ao consumidor é um engodo.  O cartel legitimado ataca todo e qualquer tipo de liberdade de contrato e de ocupação, privando desta forma inúmeras pessoas dos benefícios do mercado.  A Ordem serve apenas para restringir escolhas que seriam benéficas para todas as partes envolvidas.

Licenciamentos fornecidos por cartéis não são nem necessários e nem suficientes para garantir competência.  Vários advogados incompetentes se formam em faculdades de direito e são aprovados no exame da Ordem.  O que estimula profissionais a fazer um bom trabalho, licenciados ou não, é o poderoso incentivo gerado pelo livre mercado, que necessariamente obriga a prestação de bons serviços e a satisfação de seus clientes.  Não há substituto para isso.

No estado de Maryland, um cidadão chamado Paul Kurtz, que não era membro da Ordem e que nem sequer havia estudado em uma faculdade de direito, conseguiu representar mais de 100 clientes em questões legais, inclusive processos judiciais.  Vários juízes, ignorantes deste fato, simplesmente supuseram que ele era um advogado “de verdade”, pois sua atuação era completamente profissional.  O The New York Times citou um advogado que havia dito que Kurtz havia “atuado admiravelmente ao apresentar um dossiê jurídico e vários argumentos em uma audiência.”

Kurtz conseguiu aprender — de maneira autodidata — tudo o que precisava saber sobre direito para fazer um bom trabalho, e sem ter passado por todo o castigo imposto pela guilda: faculdades de direito e o exame da Ordem.  Kurtz foi preso, acusado de violar o estatuto da “prática não autorizada da advocacia” de Maryland.  Como os advogados gostam de dizer, res ipsa loquitor: a coisa fala por si própria.

Se os advogados realmente quiserem fazer algo que melhore sua imagem e reduza o número de piadas maldosas sobre sua profissão, eles deveriam começar por demolir todas as barreiras impeditivas e exclusivistas que eles construíram ao redor do mercado de serviços jurídicos.

Leitura indispensável: A obrigatoriedade do diploma – ou, por que a liberdade assusta tanto?

George C. Leef
George C. Leef
George C. Leef é formado em direito pela Duke University, é acadêmico do Mackinac Center for Public Policy e um dos editores da revista The Freeman.
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