Friday, November 22, 2024
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Liberdade e legislação

liberdade_e_leiO estado de direito, no sentido clássico da expressão, não pode ser mantido sem realmente assegurar a efetividade da lei, concebida como a possibilidade de planejamento de longo prazo, por parte dos indivíduos, no tocante a seu comportamento na vida privada e nos negócios.  Além do mais, não podemos basear o estado de direito na legislação, a não ser que recorramos a dispositivos drásticos e quase absurdos, como os criados pelos atenienses na época dos nomotetai. 

É típica de nossos tempos a tendência, nos países do Ocidente, de se aumentar os poderes que os funcionários públicos adquiriram e ainda estão adquirindo a cada dia, sobre seus concidadãos, não obstante o fato de que esses poderes devem, supostamente, ser limitados pela legislação.[1]   Um autor contemporâneo, E. N. Gladden, resume essa situação como um dilema que formula no título de seu livroBureaucracy or civil service.  Os burocratas entram em cena logo que os servidores civis parecem estar acima da lei da terra, independentemente da natureza dessa lei.  Há casos em que funcionários deliberadamente substituem dispositivos da lei por sua própria vontade, na crença de que estão aprimorando a lei e atingindo, de alguma forma não declarada na própria lei, os fins que acreditam que esta destinava-se a atingir.  Em geral, não há dúvida acerca da boa vontade e da sinceridade dos funcionários, nesses casos.

Permitam-me mencionar um exemplo tirado de certas práticas burocráticas, em meu próprio país, nos dias de hoje.  Temos regulamentações legais que tratam do tráfego de veículos.  Elas estipulam uma série de penalidades por ofensas cometidas por condutores de veículos.  As penalidades são, em geral, multas, ainda que, em casos excepcionais, os transgressores possam ser julgados e presos.  Além disso, em alguns casos especialmente determinados por outras regulamentações legais, o transgressor pode ser privado de sua carteira de motorista — quando, por exemplo, sua infração dos regulamentos de trânsito causar lesões corporais ou danos graves a outras pessoas, ou quando dirigir embriagado.

Como o tráfego de veículos motorizados de todos os tipos está em constante crescimento, em meu país, os acidentes estão se tomando cada vez mais frequentes.  As autoridades estão convencidas de que uma disciplina mais rígida, imposta aos motoristas pelas próprias autoridades de trânsito, ainda é o melhor meio, mesmo não sendo uma panaceia, para reduzir o número de acidentes de trânsito em todo o território que controlam.  Membros do Executivo, como o ministro do Interior e outros funcionários do estado que dependem de suas diretrizes, os “prefects” ou chefes de polícia, os agentes da polícia federal de todo o país, os oficiais da polícia local nas cidades, e assim por diante, tentam aplicar essa teoria, ao lidarem com as infrações de trânsito.

Mas alguns deles, frequentemente, vão mais além.  Parecem estar convencidos de que a lei da terra, em relação a isso — ou seja, os regulamentos legais que concernem a penalidades a serem impostas, pelos juízes, aos infratores, e o procedimento a ser seguido para tanto —, é muito suave e muito lenta para satisfazer as novas exigências das condições de tráfego modernas.  Alguns funcionários, em meu país, tentam “aprimorar” o procedimento existente a ser seguido de acordo com as leis da terra, nesses casos.

Um dos funcionários explicou-me tudo isso quando tentei intervir em nome de alguns clientes meus, contra o que considerei ser uma prática ilegal, por parte das autoridades.  A polícia registrou que um homem teria ultrapassado um veículo de uma forma que infringia os regulamentos do trânsito.  Imediata e inesperadamente, foi privado de sua carteira de motorista, pelo “prefect”.   Em consequência, não podia mais dirigir seu caminhão, o que significava que estava praticamente sem emprego, até as autoridades consentirem em devolver sua carteira.

De acordo com nossos regulamentos escritos, em uma série de casos o “prefect” pode privar um infrator de sua carteira de motorista, mas ultrapassar um veículo de forma contrária aos regulamentos do trânsito sem causar qualquer acidente não é um deles.  Quando chamei a atenção do funcionário encarregado para este fato, ele concordou comigo que talvez, de acordo com uma interpretação correta das atuais regras, meu cliente não tivesse realmente cometido uma infração digna da punição de ter sua carteira de motorista recolhida.  O funcionário também me explicou, educadamente, que em vários outros casos, talvez em 70 por cento deles, os infratores estavam sendo privados, agora, de suas carteiras, pelas autoridades, sem realmente terem cometido uma infração que merecesse essa punição, segundo a lei.

“Mas o senhor entende”, disse ele, “se não fazemos isso, as pessoas neste país — às vezes os funcionários parecem se considerar naturais de outro país — não tomam o cuidado suficiente, pois não dão a mínima para as multas de umas poucas mil liras, como as que são impostas pela nossa lei.  Por outro lado, se lhes tiramos a carteira por um tempo, os infratores sentem mais a pena e terão muito mais cuidado no futuro”.

Disse, também, com uma veia um tanto filosófica, que achava que a injustiça, para com um número relativamente pequeno de cidadãos, podia ser justificada pelo resultado geral alcançável, de acordo com a opinião das autoridades, na melhoria do tráfego, no interesse público.

Um exemplo ainda mais marcante a esse respeito me foi relatado por um colega.  Ele tinha ido protestar contra a emissão, por um promotor do distrito, de uma ordem de prisão contra um motorista que atropelara e matara alguém na rua.  Segundo nossa lei, homicídios acidentais podem ser punidos com sentença de prisão.  Por outro lado, os promotores distritais só estão autorizados a emitir ordens de prisão, antes do julgamento, em casos especiais prescritos por nossas regras processuais criminais, sempre que consideram que a prisão é recomendável diante das circunstâncias.

Deveria ser óbvio que a prisão antes do julgamento não é uma punição, mas uma medida de segurança, destinada a evitar, por exemplo, que um acusado de cometer um crime escape antes de ser julgado, ou até mesmo que cometa outros crimes nesse intervalo de tempo.  Na medida em que isso, obviamente, não era verdade no caso do homem antes mencionado, meu colega perguntou ao promotor por que ele havia emitido uma ordem de prisão, nessas circunstâncias.

A resposta do promotor foi que, em vista do crescente número de acidentes de automóvel, era legítimo e adequado, de sua parte, tentar prevenir que os infratores causassem mais inconvenientes, colocando-os na prisão.  E que, além disso, os juízes comuns em geral não são muito severos com as pessoas indiciadas por homicídios acidentais; assim, um gostinho de prisão antes do julgamento seria uma experiência saudável para os infratores.  O funcionário em questão admitiu candidamente que estava se portando dessa maneira para “aprimorar” a lei e considerava perfeitamente justificável empregar meios como o aprisionamento, ainda que não estivesse assim prescrito pela lei, para esse caso, para atingir o fim desejado de reduzir os acidentes de trânsito.

Esse é um caso típico da atitude de funcionários que substituem a lei por eles próprios, esticando os termos dos códigos para aplicarem regras de sua autoria, sob o pretexto de que a lei seria insuficiente, se fosse mais escrupulosamente interpretada e aplicada, para atingir os fins, em uma dada circunstância.  Coincidentemente, esse também é um caso de comportamento ilegal, ou seja, de comportamento, por parte de funcionários públicos, em contravenção à lei, e não deve ser confundido com o comportamento arbitrário, como o eventualmente permitido a funcionários britânicos, no presente, em vista da falta de um conjunto definido de regras administrativas.

Como um bom exemplo de comportamento arbitrário por parte da administração britânica, poderia ser mencionado o famoso e complicado caso de Crichel Down, que suscitou tão fortes protestos na Inglaterra, há alguns anos.  Funcionários públicos que legalmente haviam requisitado certas propriedades privadas, durante a guerra, para utilizá-las como área de bombardeio, tentaram dispor das mesmas propriedades, após a guerra, para propósitos completamente diferentes, como conduzir experimentos agrícolas e coisas semelhantes.

Em casos desse tipo, a existência de certos regulamentos, no sentido de estatutos escritos precisamente enunciados, pode ser muito útil, se não para evitar que funcionários violem a lei, pelo menos para mantê-los legalmente responsáveis por seu comportamento perante tribunais comuns, ou perante tribunais administrativos, como o conseil d’état francês.

Contudo, indo ao ponto importante de meu argumento: a liberdade individual, em todos os países do Ocidente, vem sendo gradualmente reduzida, nos últimos cem anos, não só ou não principalmente por causa de intromissões e usurpações, por parte dos funcionários que agem contra a lei, mas também devido ao fato de que a lei, a saber, o direito estatutário, autorizava funcionários a se comportarem de formas que, segundo a lei anterior, teriam sido julgadas como usurpação de poder e intromissões à liberdade individual do cidadão.[2]

Isso é patente, por exemplo, na história do chamado “direito administrativo” inglês, que pode ser resumido como uma sucessão de delegações estatutárias de poderes legislativos e judiciários a funcionários executivos.  A sorte da liberdade individual no Ocidente depende sobretudo desse processo “administrativo”.  Mas não podemos esquecer que o próprio processo, sem considerar casos de absoluta usurpação — que provavelmente não são tão importantes ou tão numerosos como imaginamos —, foi produzido pela legislação.

Concordo totalmente com alguns acadêmicos contemporâneos, como o professor Hayek, que suspeitam dos funcionários do Executivo; acredito, porém, que as pessoas que prezam a liberdade individual devem suspeitar mais ainda dos legisladores, na medida em que é precisamente através da legislação que o aumento nos poderes — inclusive os poderes vastos — dos funcionários foi e continua sendo alcançado.  Os juízes também podem ter contribuído, ao menos de forma negativa, para esse resultado, nos últimos tempos.

Eminentes acadêmicos, como o anteriormente citado sir Carleton Kemp Allen, contaram-nos que os tribunais judiciais, na Inglaterra, poderiam ter entrado em contenda com o Executivo, como estavam inclinados a fazer no passado, para assegurar — e mesmo estender — sua autoridade em relação a uma concepção alterada do relacionamento entre o indivíduo e o estado.  Nos últimos anos, entretanto, de acordo com sir Carleton, eles têm feito “exatamente o oposto”, na medida em que “têm estado cada vez mais inclinados a manterem suas mãos fora do ‘puramente administrativo’ e absterem-se de qualquer interferência na política do Executivo”.

Por outro lado, um magistrado tão distinto como sir Alfred Denning, atualmente um dos lordes da Corte de Apelação de Sua Majestade da Inglaterra, em seu livro The changing law, publicado pela primeira vez em 1953, dá-nos um apanhado convincente de várias ações, por parte dos tribunais britânicos, nos últimos anos, destinadas a manter o estado de direito, conservando sob o controle do judiciário comum os departamentos do governo — particularmente depois dos Crown Proceeding Acts, de 1947 — ou algumas entidades estranhas, como indústrias nacionalizadas, tribunais departamentais — contra um dos quais a Bancada da Corte do Rei emitiu um edital de certiorari, no famoso caso Northumberland, em 1951 —, tribunais privados — como os estabelecidos pelas regras de organizações como os sindicatos —, e assim por diante.  É difícil decidir se sir Carleton está certo em culpar os tribunais ordinários de indiferença pelos novos poderes do Executivo, ou se sir Alfred Denning é quem tem razão, ao chamar a atenção para a diligência dos mesmos a esse respeito.

Muito poder tem sido conferido aos funcionários públicos, na Inglaterra bem como em outros países, através da aprovação de estatutos, por parte da legislatura.  Seria suficiente simplesmente examinar, por exemplo, a história da delegação de poderes na Inglaterra, nos últimos tempos, para se ficar convencido disso.

Uma das crenças políticas profundamente enraizadas de nossa época ainda é a de que, por ser a legislação aprovada pelos parlamentos, e sendo os parlamentos eleitos pelo povo, as pessoas são a fonte do processo legislativo, bem como a de que a vontade do povo ou pelo menos da parte do povo identificável com o eleitorado prevalecerá conclusivamente em todos os assuntos a serem determinados pelo governo, como diria Dicey.

Não sei até que ponto essa doutrina tem qualquer validade, se a submetemos a críticas como as sugeridas por meus concidadãos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, no início deste século, em suas famosas teorias da significância da liderança das minorias, ou elites, como teria dito Pareto, ainda frequentemente citadas por sociólogos e cientistas políticos, nos Estados Unidos.  Independentemente de qualquer conclusão a que possamos chegar sobre essas teorias, o “povo” ou “eleitorado” são conceitos não facilmente redutíveis — ou mesmo compatíveis com — ao conceito individual, enquanto cidadão que age de acordo com sua própria vontade e, por isso, “livre” de coerção no sentido que admitimos aqui.

Liberdade e democracia têm sido ideais concomitantes para os países ocidentais, desde os tempos da Atenas antiga.  Mas tem sido destacado por vários pensadores no passado, como De Tocqueville e lorde Acton, que a liberdade individual e a democracia podem se tornar incompatíveis, sempre que as maiorias são intolerantes ou as minorias, rebeldes, e, em geral, sempre que há, dentro de uma sociedade política, o que Lawrence Lowellteria chamado de “irreconciliáveis”.  Rousseau tinha consciência disso, quando destacou que todos os sistemas majoritários devem ser baseados na unanimidade, pelo menos no que diz respeito à aceitação da regra majoritária, se pretendem refletir o “desejo comum”.

Se essa unanimidade não é meramente uma ficção de filósofos políticos, mas também possui significado verdadeiro na vida política, temos de admitir que, sempre que uma decisão tomada por uma maioria não é livremente aceita, mas apenas suportada por uma minoria, da mesma forma como indivíduos podem sofrer atos coercitivos, para evitarem o pior por parte de outras pessoas, como ladrões ou chantagistas, a liberdade individual, no sentido da ausência de coerção exercida por outras pessoas, não é compatível com a democracia, concebida como o poder hegemônico da maioria.

Se consideramos que nenhum processo legislativo acontece, em uma sociedade democrática, sem depender do poder da maioria, devemos concluir que esse processo tende a ser incompatível com a liberdade individual, em muitos casos.

Estudos recentes na chamada ciência da política e a natureza das decisões de grupo tenderam a confirmar esse ponto de uma forma bastante convincente.[3]

As tentativas feitas por alguns acadêmicos, nos últimos tempos, de comparar diferentes formas de comportamento, como a de um comprador ou a de um vendedor, no mercado, e, digamos, a de um eleitor, em uma eleição política, com o objetivo de descobrir algum fator comum entre elas, pareceram-me estimulantes, não só por causa das questões metodológicas envolvidas, relativas às ciências econômica e política, respectivamente, mas também pelo fato de a questão de haver ou não diferença entre a posição econômica e a posição política — ou legal —, respectivamente, dos indivíduos dentro de uma mesma sociedade, ser uma das principais questões em debate entre liberais e socialistas durante os últimos cem ou 120 anos.

Esse debate pode nos interessar em mais de um aspecto, na medida em que estamos tentando evidenciar um conceito de liberdade como a ausência de coerção exercida por outras pessoas, inclusive as autoridades, que implica liberdade nos negócios e em qualquer outra esfera da vida privada.  As doutrinas socialistas defendem que, sob um sistema político e jurídico que outorga direitos iguais para todos, nenhuma vantagem na igualdade de direitos toca àquelas pessoas a quem faltam meios suficientes para se beneficiarem de muitos desses direitos.  As doutrinas liberais, ao contrário, sustentam que todas as tentativas de “integrar” a “liberdade” política à “liberdade de desejo”, por parte dos “não tenho”, como sugerido ou imposto pelos socialistas, levam a contradições dentro do sistema, como a de não poder atribuir “liberdade”, concebida como ausência de desejo, a todos, sem suprimir a liberdade política e legal, concebida como ausência de coerção exercida por outras pessoas.

Mas as doutrinas liberais acrescentam algo mais.  Defendem, também, que nenhuma “liberdade de desejo” pode ser realmente alcançada por decreto ou através da direção do processo econômico pelas autoridades, como poderia ser conseguido nas bases de um mercado livre.

Agora, o que pode ser considerado como um pressuposto comum a socialistas e liberais, é que existe uma diferença entre a liberdade legal e política do indivíduo, concebida como ausência de coerção, e liberdade “econômica” ou “natural” do indivíduo, se aceitamos a palavra “liberdade” também no sentido de “ausência de vontade”.  Essa diferença é considerada sob pontos de vista opostos, por liberais e socialistas, mas, em última análise, ambos reconhecem que a “liberdade” pode ter significados diferentes, senão incompatíveis, para indivíduos pertencentes à mesma sociedade.

Não há qualquer dúvida de que introduzir “liberdade de vontade”, em um sistema político ou legal, implica uma alteração necessária do conceito de “liberdade”, entendida como liberdade contra coerção, garantida por aquele sistema.  Isso acontece, como destacam os liberais, por causa de certas cláusulas especiais dos estatutos e decretos de inspiração socialista, incompatíveis com a liberdade nos negócios.  Mas isso acontece também, e acima de tudo, porque a própria tentativa de se introduzir a “liberdade de querer” tem de ser feita — como admitem todos os socialistas, pelo menos na medida em que querem lidar com sociedades historicamente pré-existentes e não limitar seus esforços de promoverem sociedades de voluntários, em alguma parte remota do mundo — primeiro através de legislação e, portanto, por meio de decisões baseadas na maioria, sem levar em conta se as legislaturas são eleitas, como em quase todos os atuais sistemas políticos, ou se são a expressão direta do povo, como o eram na Roma antiga ou nas velhas cidades gregas e como o são nas atuaisLandsgemeinde suíças.

Nenhum sistema de livre comércio pode funcionar realmente, se não está enraizado em um sistema legal e político que ajude os cidadãos a neutralizarem as interferências, por parte de outras pessoas — inclusive as autoridades —, em seus negócios.  Mas um aspecto característico dos sistemas de livre comércio parece também ser o fato de que são compatíveis — e provavelmente compatíveis apenas com — com sistemas políticos e legais de pouco ou nenhum recurso à legislação, pelo menos no que concerne à vida privada e aos negócios.  Por outro lado, os sistemas socialistas não podem continuar a existir sem a ajuda da legislação.  Nenhuma evidência histórica, ao que sei, apoia a suposição de que a “liberdade de querer”, socialista, para todos os indivíduos, é compatível com instituições como o sistema do direito consuetudinário ou o sistema romano, onde o processo de formulação de leis é desempenhado diretamente por cada um dos cidadãos, com ajuda apenas ocasional de juízes e especialistas como os juristas romanos e sem recorrer, em geral, à legislação.

Somente os chamados “utopistas” que tentaram criar colônias especiais de voluntários para formarem sociedades socialistas, imaginavam que podiam fazê-lo sem legislação.  Mas eles também, na verdade, conseguiram passar sem ela apenas curtos períodos de tempo, até que suas associações voluntárias se transformaram em amálgamas caóticos de velhos voluntários, ex-voluntários e novos adeptos sem crenças especiais em qualquer forma de socialismo.

O socialismo e a legislação devem estar inevitavelmente ligados para que as sociedades socialistas se mantenham vivas.  Essa é, provavelmente, a principal razão do crescente peso atribuído, em sistemas de direito consuetudinário como o inglês e o americano, não só aos estatutos e decretos mas também à própria ideia de que um sistema legal é, acima de tudo, um sistema legislativo, e de que a “certeza” é a efetividade de curto prazo da lei escrita.

A razão pela qual socialismo e legislação estão inevitavelmente ligados é que, enquanto o mercado livre implica um ajuste espontâneo da oferta e da demanda com base nas escalas de preferência dos indivíduos, esse ajuste não pode acontecer, se a demanda não é do tipo a ser satisfeita pela oferta, nas mesmas bases, isto é, se as escalas de preferência daqueles que entram no mercado não são, na realidade, complementares.  Isso pode acontecer, por exemplo, em todos os casos em que os compradores achem que os preços pedidos pelos vendedores sejam altos demais, ou quando os vendedores achem que os preços oferecidos pelos compradores sejam baixos demais.  Vendedores que não estão em posição de satisfazer os compradores, ou compradores que não estão em posição de satisfazer os vendedores, não podem constituir um mercado, a não ser que vendedores ou compradores tenham algum meio, a sua disposição, de coibir sua contraparte, no mercado, a atender suas exigências.

De acordo com os socialistas, os pobres são “privados” pelos ricos daquilo de que precisam.  Essa forma de colocar as coisas é simplesmente um abuso de linguagem, pois não está provado que os “tenho” e os “não tenho” tinham o direito à posse comum de todas as coisas.  É certo que evidências históricas apoiam o ponto de vista socialista, em alguns casos, como invasões e conquistas, e geralmente em casos de roubo, pirataria, chantagem e assim por diante.  Mas isso nunca ocorre no livre mercado, quer dizer, em um sistema que permite a compradores e vendedores individuais reagirem à coerção exercida por outras pessoas.

Vimos também, em relação a isso, que muito poucos economistas levam em consideração essas atividades “desprodutivas”, uma vez que são, em geral, encaradas como completamente à margem do mercado e, por isso, indignas de investigação econômica.  Se ninguém pode ser coagido, sem a possibilidade de se defender, a pagar por bens e serviços mais do que pagaria sem coerção, as atividades desprodutivas não podem acontecer, já que, nesses casos, nenhum suprimento correspondente de bens e serviços se adequará à demanda, e nenhum ajuste, entre compradores e vendedores, será obtido.

A legislação pode conseguir o que um ajuste espontâneo jamais poderia.  A demanda pode ser obrigada a atender a oferta, Ou a oferta pode ser obrigada a satisfazer a demanda, de acordo com certos regulamentos aprovados por corpos legislativos, que possivelmente decidem, como acontece atualmente, baseados em artifícios de procedimentos como a regra da maioria.

O fato sobre a legislação que é imediatamente percebido pelos teóricos não menos do que pelas pessoas comuns, é que os regulamentos são impostos a todos, mesmo àqueles que nunca participaram de seu processo de formulação e que nunca tinham tomado conhecimento dele.  Esse fato distingue um estatuto de uma decisão expressa por um juiz em um caso trazido a ele pelas partes.  A decisão pode ser imposta, mas não o é de forma automática, ou seja, sem a colaboração das partes envolvidas, ou pelo menos de uma delas.  De qualquer forma, não é diretamente aplicável a outras pessoas que não tinham parte na disputa ou que não estavam representadas pelas partes no caso.

Assim, os teóricos geralmente relacionam legislação com imposição, enquanto que essa ligação não é diretamente enfatizada e, em qualquer caso, é aplicada em menor dimensão nas decisões dos tribunais judiciais.  Muito poucas pessoas, pelo contrário, atentaram para o fato de que a imposição está ligada à legislação, não só como resultado do processo legislativo, mas no caso do processo em si.  Aqueles que fazem parte desse processo estão eles próprios sujeitos à imposição de regras processuais, e esse fato dá um caráter coercitivo a toda a atividade da legislação desempenhada por um grupo de pessoas de acordo com um procedimento previamente estabelecido.  O mesmo se aplica às atividades dos eleitorados, cuja tarefa pode ser definida como a de chegar a uma decisão de grupo sobre as pessoas a serem eleitas, de acordo com as regras processuais previamente estabelecidas para todos aqueles que participam na formação da própria decisão.

A existência de um procedimento coercitivo no processo de tomada de decisão, sempre que as pessoas têm de decidir, não como indivíduos, mas como membros de grupos, é exatamente o que torna possível distinguir o processo de tomada de decisão por parte dos indivíduos e o mesmo processo por parte dos grupos.

Essa diferença tem sido ignorada pelos teóricos que, como o economista inglês Duncan Black, tentaram elaborar uma teoria das decisões de grupo que incluiria tanto as decisões econômicas dos indivíduos, no mercado, quanto as decisões de grupo, no âmbito político.  Segundo o professor Black, que acaba de publicar um novo livro sobre esse assunto, não há diferença substancial entre esses dois tipos de decisão.  Compradores e vendedores, no mercado, podem ser comparados, se tomados como um todo, aos membros de um comitê cujas decisões são resultado das inter-relações de suas escalas de preferência, de acordo com a lei de oferta e procura.  Por outro lado, os indivíduos do cenário político, pelos menos nos países onde as decisões políticas são tomadas em grupo, podem ser considerados como membros de comitês, independentemente das funções especiais de cada comitê.  O eleitorado poderia ser considerado um desses “comitês”, tanto quanto uma assembleia legislativa ou um conselho de ministros.

Em todos esses casos, segundo o professor Black, as escalas de preferência de todos os membros do comitê são confrontadas com as escalas de preferência de cada um dos outros membros do mesmo comitê.  A única diferença — mas é uma diferença menor, segundo o professor Black — é que, enquanto no mercado as preferências se confrontam umas com as outras de acordo com a lei da oferta e da procura, nas preferências políticas a seleção de algumas delas, em detrimento de outras, acontece de acordo com um procedimento definido.  Se conhecemos esse procedimento, defende o professor Black, e, mais ainda, se sabemos quais preferências políticas devem se confrontar, podemos calcular de antemão quais as preferências que irão emergir na decisão do grupo, assim como estamos em posição de calcular de antemão, contanto que conheçamos as preferências em jogo no mercado, quais entre elas irão emergir de acordo com a lei da oferta e da procura.

Como assume o professor Black, poder-se-ia falar de uma tendência ao equilíbrio de escalas de preferência, no âmbito político, da mesma forma como se fala de um equilíbrio ao qual tendem as escalas de preferência, no mercado.

Em suma, devemos considerar, segundo Black, ambas as ciências, econômica e política, como duas ramificações da mesma ciência, uma vez que as duas têm em comum a função de calcular quais as preferências que irão emergir de um mercado ou de um cenário político, dados um conjunto de escalas de preferências e uma lei definida governando esse confronto.

Não pretendo negar que existe algo correto nessa conclusão.  Todavia, o que faço questão de salientar é que, ao se colocar as decisões políticas e as econômicas no mesmo nível e considerá-las comparáveis, ignoramos deliberadamente as diferenças que existem entre a lei da oferta e da procura, no mercado, e qualquer lei processual que governe o processo de confrontação entre as preferências políticas — e a subsequente emergência das preferências a serem aceitas pelo grupo, em sua decisão —, como, por exemplo, a regra de maioria.

A lei da oferta e da procura é apenas uma descrição da forma como um ajuste espontâneo se processa, dadas certas circunstâncias, entre várias escalas de preferência.  Uma lei processual é completamente diferente, não obstante o fato de também ser chamada de “lei” em todas as línguas europeias, exatamente como a língua grega — pelo menos desde o século IV A.C.  — usava a mesma palavra, nomos, para significar tanto uma lei natural quanto uma lei criada pelo homem, como um estatuto.  É claro, poderíamos dizer que a lei da oferta e da procura é igualmente uma lei “processual”; porém, mais uma vez estaríamos confundindo, com a mesma palavra, dois significados diferentes.

A principal diferença entre as decisões individuais, no mercado, e contribuições individuais às decisões de grupo, no âmbito político, é que no mercado, pelo menos em virtude da divisibilidade dos bens e serviços disponíveis, o indivíduo não só pode antever exatamente qual será o resultado de suas decisões — por exemplo, que tipo e quantidade de galinha irá comprar com certa quantia de dinheiro — como também pode colocar em uma relação definida as coisas correspondentes que pode adquirir com cada dólar que gasta.

As decisões de grupo, ao contrário, são do tipo tudo ou nada: se você está do lado perdedor, perde seu voto.  Não há alternativa, assim como não haveria se você fosse ao mercado e não encontrasse nem bens, nem serviços, e nem mesmo uma parte deles que pudesse ser comprada com o dinheiro de que pode dispor.

Como salientou um destacado economista americano, o professor James Buchanan, referentemente a isso,

As alternativas de escolha no mercado normalmente conflitam apenas no sentido em que a lei de retornos decrescentes está em operação.  (…) Se um indivíduo deseja mais de uma mercadoria ou serviço específicos, o mercado normalmente exige apenas que ele leve menos de uma outra mercadoria ou serviço”.[4]   

Em contraste, “as alternativas de escolha por votos são “mais exclusivas, isto é, a seleção de uma impede a seleção de outra”.

As escolhas de grupo, até onde dizem respeito aos indivíduos que dele fazem parte, tendem a ser “mutuamente exclusivas, pela própria natureza da alternativa”.  Esse é o resultado não só da pobreza dos esquemas normalmente adotados e adotáveis para a distribuição da força de voto, mas também do fato — como destaca Buchanan — de que muitas alternativas que geralmente chamamos de “políticas”, não permitem essas “combinações” ou “soluções compostas” que tornam as escolhas de mercado tão flexíveis, se comparadas às escolhas políticas.

Uma consequência importante, já ilustrada por Mises, é que no mercado o voto do dólar nunca é derrubado: “O indivíduo jamais é colocado em posição de membro de uma minoria dissidente”, pelo menos no que se refere às alternativas existentes e às alternativas potenciais do mercado.  Para colocar as coisas de uma forma oposta, em uma votação existe uma coerção possível que não ocorre no mercado.

O eleitor escolhe apenas entre alternativas potenciais; pode ser voto vencido e ser compelido a aceitar um resultado contrário a sua preferência expressa, ao passo que um tipo semelhante de coerção nunca se apresenta na escolha de mercado, pelo menos no pressuposto da divisibilidade da produção.  O cenário político, que concebemos pelo menos provisoriamente como o locus dos processos de votação, é comparável a um mercado no qual fosse exigido do indivíduo que gastasse todo seu salário em uma única mercadoria ou todo seu trabalho e recursos na produção de uma única mercadoria ou serviço.

Em outras palavras, o votante fica limitado por alguns procedimentos coercitivos, na utilização de seu poder de ação.  É claro que podemos aprovar ou desaprovar essa coerção e podemos, ocasionalmente, discriminar entre diferentes hipóteses, para aprová-las ou desaprová-las.  Mas o ponto é que o processo de votação implica uma forma de coerção, e as decisões políticas são tomadas através de um procedimento que implica coerção.  O eleitor que perde, faz uma escolha, inicialmente, mas eventualmente tem de aceitar outra que antes rejeitara; seu processo de tomada de decisão foi derrubado.

Essa é certamente a principal — embora não a única — diferença entre as decisões individuais no mercado e as decisões de grupo que ocorrem no cenário político.

No mercado, o indivíduo pode prever, com absoluta certeza, os resultados diretos ou imediatos de sua escolha.  “O ato de escolher”, diz Buchanan,

e as consequências da escolha estão em idêntica correspondência.  Por outro lado, o eleitor, mesmo se estiver totalmente onisciente, em sua previsão, das consequências de cada uma das decisões coletivas possíveis, jamais poderá prever com certeza qual das alternativas apresentadas será escolhida.

Essa incerteza, do tipo “knightiano” — ou seja, a impossibilidade de prescrever qualquer número à probabilidade de um evento —, deve, em algum grau, influenciar o comportamento do votante, e não há qualquer teoria aceitável do comportamento de um tomador de decisão em condições de incerteza.

Além do mais, as condições sob as quais as decisões de grupo ocorrem parecem tornar difícil o emprego da noção de equilíbrio da mesma maneira como é empregada na economia.  Nesta, o equilíbrio é definido como igualdade de oferta e de procura, uma igualdade compreensível quando o que escolhe individualmente pode articular sua escolha de forma que cada um de seus dólares vote com sucesso.  Mas que tipo de igualdade pode existir entre, por exemplo, oferta e procura por leis e ordens nas decisões de grupo, quando existe a possibilidade de um indivíduo pedir um pão e receber uma pedra? É claro que, se os membros dos grupos são livres para aderir às maiorias variáveis e podem tomar parte nas revisões de decisões anteriores, essa possibilidade pode ser concebida como uma espécie de remediação para a falta de equilíbrio, nas decisões de grupo, pois oferece a cada indivíduo do grupo, pelo menos em princípio, a possibilidade de que a decisão de grupo vez ou outra coincida com sua escolha pessoal.  Mas isso não é “equilíbrio”.

A liberdade para fazer parte das maiorias variáveis é um aspecto típico das democracias, como tradicionalmente compreendida nos países do Ocidente, e esta é, casualmente, a razão por que muitos autores acreditam que podem definir “democracia política” como algo semelhante à “democracia econômica” — o sistema de mercado.  De fato, a democracia parece ser, como vimos, apenas um substituto da democracia econômica, ainda que provavelmente seja seu melhor substituto em muitos casos.

Assim, chegamos à conclusão de que a legislação — pelo menos nos sistemas contemporâneos —, sendo sempre produto de decisões de grupo, deve inevitavelmente implicar não só certo grau de coerção sobre os que têm de obedecer às regras legislativas, mas também um grau correspondente de coerção daqueles que participam diretamente no processo de formulação das próprias regras.  Essa inconveniência não pode ser evitada por qualquer sistema político em que devam acontecer decisões de grupo, inclusive a democracia, apesar de esta, pelo menos como é concebida nos países ocidentais, dar a cada membro do corpo legislativo uma chance de, mais cedo ou mais tarde, fazer parte das maiorias vencedoras e, assim, evitar a coerção, fazendo com que as regras coincidam com sua escolha pessoal.

A coerção não é, entretanto, a única característica da legislação comparativamente aos processos de formulação de leis, como os do direito romano ou do direito consuetudinário.  Vimos que a incerteza demonstrou ser outra característica da legislação, não só por parte daqueles que têm de obedecer às regulamentações legisladas como também por parte dos membros do próprio corpo legislativo, na medida em que votam sem conhecer os resultados de seus votos até que a decisão do grupo tenha sido tomada.

Agora, o fato de coerção e inefetividade não poderem ser evitadas, pelos membros dos próprios corpos legislativos no processo de legislação, leva à conclusão de que nem mesmo os sistemas políticos baseados na democracia direta permitem aos indivíduos escaparem da coerção ou da efetividade, no sentido em que as descrevemos.

capa_liberdadeelei.jpgNenhuma democracia direta poderia solucionar o problema de evitar tanto a coerção como a incerteza, uma vez que o problema em si não está relacionado à participação, direta ou indireta, no processo de formulação de leis através da legislação resultante de decisões de grupo.

Isso nos alerta, também, para a relativa futilidade de todas as tentativas de se assegurar mais liberdade ou mais efetividade aos indivíduos de um país, no que concerne à lei da terra, deixando que participem da maneira mais frequente e direta possível no processo de formulação de leis por meio da legislação, através de sufrágio adulto universal, representação proporcional,referendum, iniciativa, destituição de representantes, ou mesmo através de outras organizações ou instituições que revelem a chamada opinião pública o máximo de assuntos possíveis e tornem as pessoas mais eficientes na influência que irão exercer sobre o comportamento político dos governantes.

Por outro lado, as democracias representativas são muito menos eficientes do que as democracias diretas, na obtenção de real participação de indivíduos no processo de formulação de leis via legislação.

Há muitos sentidos para o termo representação, e alguns certamente dão às pessoas a impressão de estarem participando de uma forma séria, embora indireta, do processo de formulação das leis, através da legislação de seu país, ou até mesmo do processo de administração dos assuntos do país, através da máquina executiva.

Infelizmente, o que está na realidade acontecendo em todos os países do Ocidente, no momento, é algo que não nos oferece qualquer base real de satisfação, se empreendemos uma análise fria dos fatos.

 

Esse artigo foi retirado do capítulo 5 do livro Liberdade e a Lei, agora disponibilizado pelo IMB.

Tradução de Rosélis Maria Pereira e Diana Nogueira

___________________________________________________________________

Notas

[1] No que concerne à Grã-Bretanha, ver a análise precisa do professor G. W. Keeton, The passing of Parliament(Londres: E. Benn, 1952).  Em relação aos Estados Unidos, veja Burnham, Congress and the American tradition(Chicago: Regnery, 1959), especialmente “The rise of the fourth branch”, p.157, e Lowell B. Mason, The language of dissent (Cleveland, Ohio: World Publishing Co., 1959).

[2] Consulte, por exemplo, as novas (1959) leis de trânsito italianas, que elevam consideravelmente a área de ação de medidas discricionárias impostas aos motoristas por oficiais executivos, como os “prefects”. 

[3] Eu mesmo explorei esse ponto em duas outras ocasiões, a saber, em algumas palestras no Nuffield College, Oxford, e no Departamento de Economia da Universidade de Manchester, em 1957.

[4] James Buchanan, “Individual choices in voting and in the market”, Journal of Political Economy, 1954, p.338.

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