Quando comecei a estudar economia na década de 1940, havia um opressivo paradigma que dominava a abordagem que se fazia da história do pensamento econômico — um paradigma que ainda segue soberano, mas que já não é mais tão opressivo quanto já o foi. Essencialmente, esse paradigma caracteriza alguns poucos Grandes Homens como a essência da história do pensamento econômico, com Adam Smith sendo o fundador praticamente super-humano.
Porém, se Smith de fato fosse o criador tanto da análise econômica quanto da tradição do livre comércio e do livre mercado na economia política, seria trivial e mesquinho questionar seriamente qualquer aspecto de sua suposta façanha. Qualquer crítica mais áspera tanto ao Smith economista quanto ao Smith defensor do livre mercado pareceria anacrônica: seria como se se estivesse menosprezando, com ares de superioridade, o fundador e pioneiro da ciência econômica, baseando-se injustamente no fato de que há hoje um melhor conhecimento da ciência econômica do que havia na época de Smith. O crítico seria visto como um descendente insignificante que ataca injustamente os gigantes sobre cujos ombros ele se apóia.
Se Adam Smith criou a ciência econômica, então seus predecessores devem ser nulidades, homens sem nenhuma significância. E foi assim que, nas clássicas descrições do pensamento econômico, não se perdeu tempo falando de ninguém que tenha tido o infortúnio de preceder Smith. Geralmente, esses negligenciados eram agrupados em duas categorias, e então bruscamente rejeitados.
Imediatamente anteriores a Smith estavam os mercantilistas, os quais ele vigorosamente criticava. Mercantilistas aparentemente eram tolos que continuamente exortavam as pessoas a acumular dinheiro mas não gastá-lo, ou insistiam que a balança comercial deveria sempre “estar em equilíbrio” com cada país.
Já os escolásticos do século XVI e XVII eram desprezados ainda mais rudemente como moralistas medievais ignorantes que insistiam em afirmar que o preço “justo” das coisas é aquele igual ao custo de produção de um comerciante mais um lucro razoável.
As obras clássicas sobre a história do pensamento econômico publicadas nas décadas de 1930 e 1940 passaram a expor e a celebrar amplamente algumas figuras de relevo que vieram após Smith. David Ricardo sistematizou e organizou Smith, dominando a ciência econômica até a década de 1870; então os “marginalistas” Jevons, Menger e Walras corrigiram marginalmente a “economia clássica” de Smith e Ricardo ao enfatizarem a importância da unidade marginal em relação a toda a classe de bens tomados conjuntamente.
E então surgiu Alfred Marshall — que astutamente integrou a teoria ricardiana do custo à ênfase supostamente unilateral dada por Jevons e pelos austríacos à demanda e à utilidade — e criou a moderna economia neoclássica. Como Karl Marx não podia ser ignorado, ele foi tratado como um extravagante ricardiano.
E assim os historiadores eliminaram a história ao decidirem lidar com apenas quatro ou cinco Grandes Nomes, cada um dos quais, com a exceção de Marx, tendo contribuído elementos fundamentais para o progresso ininterrupto da ciência econômica, essencialmente uma história de passos progressivos e sempre ascendentes rumo à luz. Ou, ao menos, é que eles nos levam a crer.
Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, Keynes obviamente foi acrescentado ao Panteão, criando um novo e culminante capítulo ao progresso e desenvolvimento da ciência. Keynes, adorado aluno do grande Marshall, percebeu que seu professor, ” em sua exclusiva ênfase na microeconomia, havia deixado de fora aquilo que mais tarde viria a ser chamado de “macroeconomia”.
E assim Keynes “criou” a macroeconomia, concentrando-se no estudo e na explicação do desemprego, um fenômeno que todos os economistas anteriores a Keynes haviam deixado de fora da abordagem econômica porque todo o desemprego que ocorria até então era temporário, fruto de reajustes econômicos após prolongados períodos de expansão econômica. Sem salário mínimo e sem pesadas regulamentações, a economia operava quase continuamente em “pleno emprego”.
Desde então, o paradigma dominante tem sido em grande parte mantido, embora as coisas tenham recentemente se tornado um tanto nebulosas — afinal, a história dessa contínua marcha dos Grandes Homens requer a ocasional criação de novos capítulos finais. A Teoria Geral de Keynes, publicada em 1936, já está hoje velha; pela lógica, deveria haver um novo Grande Homem para um novo capítulo final. Mas quem? Durante algum momento, Schumpeter, com sua moderna e aparentemente realista ênfase na “inovação”, tornou-se candidato natural, mas essa ideia acabou naufragando, talvez porque perceberam que a obra fundamental de Schumpeter (ou “visão”, como ele próprio colocou) com grande discernimento havia sido escrita mais de duas décadas antes da Teoria Geral.
Os anos após 1950 têm sido obscuros; está difícil para os historiadores encontrar um nome para dar continuidade a essa suposta evolução contínua da ciência econômica.
Minha própria visão acerca da grave deficiência dessa abordagem foi enormemente influenciada pela obra de dois esplêndidos historiadores do pensamento. Um deles foi Thomas Kuhn, cuja famosa obra Estrutura das Revoluções Científicas desmontou em definitivo essa ideia de que a ciência está sempre se movendo para frente e para o alto. Kuhn não ligava para economia, mas sim para o comportamento padrão de filósofos e historiadores da ciência, centrando-se em nas “ciências pesadas”, como física, química e astronomia.
O outro foi meu orientador de dissertação, Joseph Dorfman, cuja incomparável obra de vários volumes sobre a história do pensamento econômico americano demonstrou conclusivamente o quão importante para o movimento das ideias são aqueles nomes considerados “menos importantes”.
Em primeiro lugar, toda a substância da história se perde quando tais figuras são omitidas, o que faz com que a história real seja falsificada pela seleção de — e pelo enfoque exclusivo sobre — alguns poucos e dispersos textos, que passam então a constituir a História do Pensamento.
Segundo, um grande número de figuras supostamente secundárias contribuiu enormemente para o desenvolvimento do pensamento — algumas de forma até mais acentuada do que alguns dos “principais” pensadores. Disso decorre que características importantes do pensamento econômico são omitidas, e a teoria desenvolvida e apresentada se torna insignificante e improdutiva, quando não sem vida.
Pois se o conhecimento enterrado em paradigmas perdidos pode desaparecer e correr o risco de ter sido esquecido pelos historiadores do pensamento, então o estudo de escolas do pensamento e economistas mais antigos não deve ser feito apenas para propósitos antiquários ou para se examinar como a vida intelectual progrediu no passado; antes, os economistas mais antigos devem ser estudados pela suas importantes contribuições para os conhecimentos hoje perdidos e que, por isso mesmo, se tornam novos.
Verdades valiosas podem ser aprendidas sobre a ciência econômica ao se analisar não apenas as últimas publicações acadêmicas, mas também os textos de pensadores econômicos mortos há vários séculos.
A importância da religião
Porém, tudo isso são meras generalizações metodológicas. Eu apenas compreendi, de modo concreto, que uma sumariamente importante variedade de conhecimento econômico havia sido perdida ao longo do tempo quando descobri a grande revisão — desenvolvida nas décadas de 1950 e 1960 — da obra dos escolásticos espanhóis e portugueses. A revisão pioneira surgiu dramaticamente na grande obra de Schumpeter, História da análise econômica, e foi desenvolvida nas obras de Raymond de Roover, Marjorie Grice-Hutchinson e John T. Noonan.
Ocorre que os escolásticos não eram simplesmente “medievais”; eles surgiram no século XIII e se expandiram e prosperaram ao longo do século XVI e até o século XVII, já na Idade Moderna. Longe de serem teólogos cristãos moralistas preocupados com o custo da produção, os escolásticos acreditavam que o preço justo era qualquer preço que tivesse sido estabelecido pela “avaliação comum” do livre mercado. E não apenas isso: longe de serem ingênuos teóricos que diziam que o valor das coisas dependia do “trabalho contido nelas” ou do custo da produção, os escolásticos podem ser considerados “proto-austríacos”, pois foram os primeiros a apresentar uma sofisticada e subjetivista teoria utilitária do valor e dos preços.
Ademais, alguns dos escolásticos foram amplamente superiores à atual concepção formalista da microeconomia, ao desenvolverem uma dinâmica teoria “proto-austríaca” sobre o empreendedorismo. Já em termos “macro”, os escolásticos, começando com Jean Buridan e culminando nos escolásticos espanhóis do século XVI, desenvolveram uma teoria francamente “austríaca” ao invés de monetarista sobre moeda, preços, oferta e demanda. Nessa teoria podem ser encontradas amplas discussões sobre a maneira como o dinheiro flui de uma região para outra, sobre como isso afeta os preços de maneira desigual e sobre a demora para que todos os preços sejam afetados. Encontra-se até mesmo uma teoria que explica que variações na taxa de câmbio se devem a variações na paridade do poder de compra das moedas.
Não parece ser nenhum acidente que essa dramática revisão do nosso conhecimento sobre os escolásticos tenha sido trazida aos economistas americanos — não necessariamente estimados por seu profundo conhecimento de latim — por economistas europeus fluentes em latim, o idioma no qual os escolásticos escreveram. Esse ponto aparentemente simples realça uma outra explicação para a perda de conhecimento no mundo moderno: o fechamento e o isolamento em um único idioma (fenômeno particularmente severo nos países anglófonos), algo que, desde a Reforma, causou uma ruptura na até então continental comunidade de acadêmicos europeus.
Para mim, o impacto do revisionismo escolástico foi complementado e fortalecido pela obra, durante as mesmas décadas, do historiador alemão e “austríaco” Emil Kauder. Kauder revelou que o pensamento econômico dominante na França e na Itália durante o século XVII e especialmente durante o século XVIII também era “proto-austríaco”, enfatizando a utilidade subjetiva e a escassez relativa como fatores determinantes para o valor das coisas.
Partindo desse fundamento, Kauder avançou para uma surpreendente e espantosa constatação quanto ao papel de Adam Smith, constatação essa que segue diretamente de sua própria obra e da obra dos revisionistas dos escolásticos: Smith, longe de ser o fundador da ciência econômica, foi praticamente o seu oposto. Smith na realidade descartou inteiramente a sólida e quase plenamente desenvolvida tradição proto-austríaca do valor subjetivo, e tragicamente desvirtuou a ciência econômica jogando-a para um caminho falso e nocivo, um beco sem saída do qual os austríacos tiveram de resgatá-la alguns séculos mais tarde.
Em vez de valor subjetivo, empreendedorismo e ênfase no real processo de precificação de mercado e na real atividade de mercado, Smith jogou tudo isso fora e substituiu esse conjunto por uma ilógica teoria do valor-trabalho e por um enfoque dominante no imutável equilíbrio de longo prazo do “preço natural”. A ciência econômica de Smith aparentemente se dava em um mundo onde o empreendedorismo simplesmente não existia. Com Ricardo, essa trágica alteração de enfoque foi intensificada e sistematizada.
Se Smith não foi o criador da teoria econômica, tampouco foi ele o fundador do laissez faire na economia política. Não apenas os escolásticos foram analistas e defensores do livre mercado, além de críticos da intervenção governamental, como também os economistas franceses e italianos dos séculos XVIII foram ainda mais laissez faire do que Smith, que introduziu vários lugares-comuns e adjetivos vazios em uma teoria que, nas mãos de franceses como A.R.J. Turgot e outros, já era quase que uma defesa pura do laissez-faire. O fato é que, ao invés de alguém a ser venerado como criador da moderna ciência econômica ou do laissez-faire, Smith estava mais próximo da caracterização feita por Paul Douglas em 1926, na comemoração de 150 anos do lançamento de A Riqueza das Nações: um imprescindível precursor de Karl Marx.
A contribuição de Emil Kauder não se limitou ao seu retrato de Adam Smith como o destruidor de uma até então sólida tradição teórica econômica; também fascinante, senão mais especulativa, foi a avaliação de Kauder quanto à causa essencial de uma curiosa assimetria na evolução do pensamento econômico em diferentes países.
Por que será que, por exemplo, a tradição da utilidade subjetiva prosperou no Continente, especialmente na França e na Itália, sendo depois ressuscitada particularmente na Áustria, ao passo que as teorias de que o valor das coisas dependia do “trabalho contido nelas” ou do custo da produção surgiram especialmente na Grã-Bretanha? Kauder atribuiu essa diferença à profunda influência da religião: os escolásticos, a França, a Itália e a Áustria eram católicos, e o catolicismo enfatiza que o consumo é o objetivo da produção, e que a satisfação (utilidade) e o prazer do consumidor — pelo menos com moderação — são atividades e objetivos valorosos.
A tradição britânica, ao contrário, a começar pelo próprio Smith, era calvinista, e refletia a ênfase calvinista no trabalho duro e exaustivo como sendo não apenas algo bom, mas também um grande bem em si mesmo, ao passo que o prazer oriundo do consumo é, na melhor das hipóteses, um mal necessário, um mero requisito para se dar continuidade ao trabalho e à produção.
Embora Smith fosse um calvinista ‘moderado’, ele não obstante era um calvinista convicto; e é possível concluir que essa ênfase calvinista pode explicar, por exemplo, a enigmática e ilógica defesa de Smith das leis da usura, algo que não condizia com sua própria teoria. Outra atitude de Smith que pode ser explicada por sua fé calvinista foi a alteração que ele fez na teoria econômica que herdou: o valor das coisas não mais era determinada pelos consumidores arbitrários e adoradores do luxo, mas sim pelo virtuoso trabalhador que embute as suas horas de trabalho árduo no valor do seu produto material.
Mas se os desvios de Smith podem ser explicados pelo calvinismo, o que dizer do judeu convertido em Quaker [seita protestante fundada na Inglaterra no século XVII] David Ricardo, certamente nenhum calvinista? Nesse ponto, são de extrema importância as pesquisas recentes sobre o papel dominante exercido por James Mill como mentor de Ricardo e principal fundador do “sistema ricardiano”. Mill era um escocês ordenado pastor presbiteriano e profundamente calvinista. O fato de, mais tarde, Mill ter se mudado para Londres e se tornado agnóstico não teve efeito algum sobre a natureza calvinista das atitudes básicas de Mill em relação à vida e ao mundo.
A enorme energia evangélica de Mill, sua cruzada em prol das melhorias sociais, e sua devoção ao trabalho exaustivo (bem como à cognata virtude calvinista da frugalidade) eram reflexos de sua vitalícia visão de mundo calvinista. A ressurreição do ricardianismo feita por John Stuart Mill, filho de James Mill, pode ser interpretada como sua pietista devoção à memória de seu dominante pai, e a banalização feita por Alfred Marshall das percepções austríacas, as quais ele incluiu em seu próprio esquema neo-ricardiano, também adveio de um neo-calvinista altamente moralista e evangelista.
Inversamente, não é nenhum acidente que a Escola Austríaca, a principal desafiante da visão de Smith e Ricardo, tenha surgido em um país que não apenas era solidamente católico, como também possuía valores e atitudes que ainda eram fortemente influenciados pelos pensamentos aristotélicos e tomistas. Os precursores alemães da Escola Austríaca surgiram não na Prússia protestante e anti-católica, mas sim naqueles estados alemães que ou eram católicos ou estavam politicamente aliados à Áustria ao invés da Prússia.
A economia de Calvino e do calvinismo
As visões econômicas e sociais de João Calvino eram bastante semelhantes às de Lutero, com apenas dois principais pontos de diferença: suas visões sobre a usura e o conceito de “vocação”, embora esta última diferença seja mais pronunciada para os calvinistas puritanos do século XVII.
A principal contribuição de Calvino à questão da usura foi ter tido a coragem de abolir a proibição.
Este filho de um importante funcionário público municipal tinha desprezo pelo argumento aristotélico de que o dinheiro era estéril. Uma criança, dizia Calvino, sabe que o dinheiro só é estéril quando trancado em algum lugar; porém, quem no seu juízo perfeito pega dinheiro emprestado para deixá-lo parado? Comerciantes pegam emprestado para obter lucros em suas compras, e assim o dinheiro torna-se frutífero.
Quanto à Bíblia, a famosa injunção de Lucas apenas ordena generosidade para com os pobres, ao passo que a lei hebraica do Velho Testamento não é mais obrigatória na sociedade moderna. Para Calvino, portanto, a usura é perfeitamente lícita, desde que não seja cobrada em empréstimos aos pobres, os quais seriam penalizados por tais pagamentos. Da mesma forma, qualquer limite máximo legal deve, obviamente, ser obedecido. E, finalmente, Calvino afirmava que ninguém deveria ser um agiota profissional.
O resultado bizarro disso tudo foi que, ao cobrir de requisitos sua doutrina explicitamente pró-usura, Calvino na prática convergia para as mesmas visões adotadas por escolásticos como Biel, Summenhart, Cajetan e Eck. Calvino começou com uma abrangente defesa teórica da cobrança de juros e depois recuou ao impor requisitos a serem obedecidos; os escolásticos liberais começaram com a proibição da usura e então passaram a fazer várias ressalvas de quando ela poderia ser praticada.
Porém, embora na prática os dois grupos convergissem e os escolásticos, ao descobrirem exceções à proibição da usura e elaborarem em cima delas, fossem teoricamente mais sofisticados e frutíferos, a ousadia de Calvino ao quebrar a proibição formal à usura representou uma ruptura libertadora para o pensamento e para a prática ocidental. Ela também retirou da Igreja ou do estado a responsabilidade de ministrar ensinamentos sobre a usura e a jogou para a consciência individual.
Uma diferença mais sutil, porém talvez tendo uma maior influência de longo prazo no desenvolvimento do pensamento econômico, foi o conceito calvinista de “vocação”. Esse novo conceito era embrionário em Calvino e foi desenvolvido mais detalhadamente por calvinistas posteriores, especialmente pelos puritanos do final do século XVII. Historiadores econômicos mais antigos, como Max Weber, exageraram bastante a respeito do conceito calvinista de “vocação” em contraposição aos conceitos luterano e católico. Todos esses grupos religiosos enfatizavam o mérito de se ser produtivo em seu trabalho ou ocupação, a “vocação” de vida da pessoa.
Mas há, especialmente nos puritanos da época de Adam Smith, a ideia de que o sucesso na vocação do indivíduo é um sinal visível de que ele é um membro dos eleitos, um predestinado. O sucesso deve ser batalhado e obtido não para provar que se é um membro dos eleitos destinado a ser salvo, mas sim porque — e assumindo que um indivíduo faz parte dos eleitos pela virtude de sua fé calvinista — o esforço para trabalhar e ser bem sucedido é algo a ser feito pela glória de Deus. A ênfase calvinista à postergação da satisfação terrena levou a uma ênfase particular ao ato de poupar e viver frugalmente. Trabalhar e poupar, pelo bem em si dessas atitudes, ou pelo bem de Deus, foram enfatizados pelo calvinismo de maneira muito mais intensa do que pelas outras correntes do cristianismo.
Sendo assim, o enfoque tanto nos países católicos quanto no pensamento escolástico se tornou muito diferente do enfoque calvinista. O enfoque escolástico estava no consumo, o consumidor, como o objetivo final do trabalho e da produção. O trabalho não era um bem em si mesmo, mas apenas um meio de se possibilitar o consumo no mercado. O equilíbrio aristotélico, o meio-termo áureo, era considerado um requisito para uma boa vida, uma vida que levasse à felicidade em harmonia com a natureza do homem. E uma vida equilibrada deveria enfatizar os prazeres do consumo e do lazer, bem como a importância do esforço produtivo.
Em contraste, uma ênfase um tanto severa e sombria no trabalho e na poupança começou a ser intensificada na cultura calvinista. Esta rejeição da importância do lazer, obviamente, caiu bem à iconoclastia que atingiu seu ápice no calvinismo — a condenação ao divertimento como sendo uma maneira de expressar devoção religiosa. Uma das expressões deste conflito veio com os feriados religiosos, que os países católicos desfrutavam em abundância. Para os puritanos, isso era idolatria; mesmo o Natal não deveria ser uma ocasião para um sensato divertimento.
Tem havido muita contestação à “tese de Weber”, proposta pelo historiador econômico e sociólogo alemão Max Weber, no início do século XX, a qual atribui o surgimento do capitalismo e da Revolução Industrial ao conceito calvinista de vocação e o resultante “espírito capitalista”. Não obstante todas as suas prolíficas observações, a tese de Weber deve ser rejeitada em vários aspectos. Primeiro, o capitalismo moderno, em qualquer acepção significativa do termo, começou não com a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX, mas sim na Idade Média, particularmente nas cidades-estados da Itália. Exemplos de racionalidade capitalista como o método das partidas dobradas e várias outras técnicas financeiras também surgiram nestas cidades-estados italianas. Todas eram católicas.
Com efeito, foi em um livro contábil florentino de 1253 que foi encontrada a clássica fórmula pró-capitalista: “Em nome de Deus e do lucro”.
Nenhuma outra cidade foi um centro financeiro e comercial tão vibrante quanto a Antuérpia no século XVI, um centro católico. Nenhum outro homem brilhou tanto como financista e banqueiro como Jacob Fugger, um bom católico do sul da Alemanha. Não apenas isso: Fugger trabalhou toda a sua vida, recusando-se a aposentar, e anunciou que “ganharia dinheiro enquanto pudesse”. Um primoroso exemplo da “ética protestante” weberiana vindo de um sólido católico!
Por outro lado, embora seja verdade que as áreas calvinistas da Inglaterra, França, Holanda e das colônias da América do Norte prosperaram, a solidamente calvinista Escócia permaneceu uma área atrasada e pouco desenvolvida, mesmo até hoje.[1]
Porém, mesmo que o enfoque na vocação e no trabalho não tenha criado a Revolução Industrial, ele pode muito bem ter gerado outra grande diferença entre países calvinistas e católicos — a crucial diferença no desenvolvimento do pensamento econômico. A brilhante especulação do professor Emil Kauder quanto a isto irá pautar o restante deste artigo. Segundo Kauder:
Calvino e seus discípulos colocaram o trabalho no centro de sua teologia social … Todo o trabalho da sociedade está investido de aprovação divina. Qualquer filósofo social ou economista exposto ao calvinismo estará tentado a conferir ao trabalho uma posição sublime em seu tratado econômico ou social, e não há melhor maneira de exaltar o trabalho do que combiná-lo à teoria do valor, tradicionalmente a própria base de um sistema econômico. Assim, o valor se torna valor-trabalho, algo que não é meramente um aparato científico para mensurar preços, mas também a amarra espiritual que combina a vontade divina à economia cotidiana.[2]
Em sua glorificação do trabalho, os calvinistas concentraram-se na diligência sistemática e contínua, em um curso estabelecido para o trabalho. Assim, o teólogo inglês puritano Samuel Hieron opinou “Aquele que não possui um empreendimento honesto no qual estar ordinariamente empregado, que não possui um curso determinado ao qual ele possa se entregar, não tem como agradar a Deus.”
Particularmente influente foi acadêmico da Universidade de Cambridge do início do século XVII, reverendo William Perkins, que se esforçou para traduzir a teologia calvinista para a prática inglesa. Perkins denunciou quatro grupos de homens que “não possuem nenhuma vocação em particular para seguir”: pedintes e vagabundos; monges e frades; cavalheiros que “passam seus dias comendo e bebendo”; e criados, que supostamente passam o tempo esperando. Todos estes elementos eram perigosos porque indefinidos e indisciplinados. Particularmente perigosos eram os andarilhos, que “evitavam a autoridade de todos”. Além disso, acreditava Perkins, a “preguiçosa multidão estava sempre inclinada … às opiniões papais, sempre mais dispostas a se divertir do que a trabalhar; seus membros não encontrarão o caminho para os céus.[3]
Em contraste à glorificação calvinista do trabalho, a tradição aristotélica-tomista era bem diferente:
Em vez do trabalho, uma moderada busca pelo prazer e pela felicidade forma o centro das ações econômicas, de acordo com a filosofia aristotélica e tomista. Um certo hedonismo equilibrado é parte integrante da teoria aristotélica para uma boa vida. Se o prazer em forma moderada é o propósito da economia, então, seguindo-se o conceito aristotélico da causa final, todos os princípios econômicos, inclusive a valoração, devem ser derivados deste objetivo. De acordo com esse padrão aristotélico-tomista de pensamento, a valoração tem a função de mostrar quanta satisfação pode ser derivada dos bens econômicos.[4]
Consequentemente, a Grã-Bretanha, fortemente influenciada pelo pensamento e pela cultura calvinista e sua glorificação do mero esforço do trabalho, desenvolveu uma teoria do valor-trabalho, ao passo que a França e a Itália, ainda influenciadas pelos conceitos de Aristóteles e São Tomás de Aquino, continuaram a ênfase escolástica sobre o consumidor e sua valoração subjetiva como fonte do valor econômico.
Embora não haja como comprovar esta hipótese conclusivamente, a constatação de Kauder possui grande mérito em explicar o desenvolvimento comparativo do pensamento econômico na Grã-Bretanha e nos países católicos da Europa após o século XVI.
Ignorar o ponto de vista religioso, bem como a filosofia política e social, pode gerar desastrosas distorções a respeito de qualquer descrição da história do pensamento econômico.
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Notas
[1] O fato de que somente o calvinismo tardio desenvolveu essa versão da vocação indica que Weber pode ter invertido a sua teoria de causa e consequência: o crescimento do capitalismo pode ter levado a um calvinismo mais adaptável, e não o inverso. A abordagem de Weber se sustenta melhor ao se analisar aquelas sociedades, como a China, cujas atitudes religiosas parecem ter enfraquecido o desenvolvimento econômico. Para isso, veja a análise da religião e do desenvolvimento econômico da China e do Japão feita pelo weberiano Norman Jacobs, The Origin of Modern Capitalism and Eastern Asia (Hong Kong: Hong Kong University Press, 1958).
[2] Emil Kauder, A History of Marginal Utility Theory (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1965), p. 5.
[3] Michael Walzer, The Revolution of the Saints: A Study in the Origins of Radical Politics (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1965), p. 216; see also pp. 206-26.