Em 1920, Ludwig von Mises escreveu uma monografia explicando a impossibilidade econômica do socialismo. Segundo Mises, se o socialismo, por definição, consiste no gerenciamento centralizado da economia — com os meios de produção sendo propriedade do governo —, resta a pergunta: como pode um sistema centralizado, onde não há mercados entre os meios de produção, saber como decidir qual é a maneira mais eficiente de utilizar os recursos necessários para a produção de um determinado bem? Se não há um sistema de livre formação de preços para balizar a produção, a utilização de recursos produtivos passa a ser feita às cegas. Qualquer “preço” que o planejador da economia impuser para qualquer bem será um preço arbitrário e não terá qualquer valor para um cálculo genuíno.
Ou seja, a explicação de Mises sobre a impossibilidade econômica do socialismo pode ser assim resumida: se os meios de produção são propriedade exclusiva do estado, não há um genuíno mercado entre eles. Se não há um mercado entre eles, é impossível haver a formação de preços legítimos para eles. Se não há preços, é impossível fazer qualquer cálculo econômico. E sem esse cálculo econômico, é impossível haver qualquer racionalidade econômica — o que significa que uma economia planejada é, paradoxalmente, impossível de ser planejada. Para Mises, portanto, o socialismo, ao abolir a propriedade privada dos meios de produção, impossibilitava qualquer cálculo econômico racional, algo que, por sua vez, torna o socialismo um sistema econômico insustentável.
Os socialistas, entretanto, disseram que, ao fazer essa constatação, Mises havia na realidade prestado um inestimável serviço ao socialismo: Mises havia apontado o problema do cálculo econômico no socialismo, problema esse do qual os socialistas ainda não estavam cientes. Ato contínuo, Oskar Lange, o polonês stalinista, passou a dizer que era incorreta a teoria de que o cálculo econômico no socialismo era impossível, pois, uma vez assentido que preços são necessários para o cálculo econômico, os planejadores centrais poderiam, por meio de algumas equações matemáticas, determinar os preços de acordo com suas mentes. Para Lange, o número de equações necessárias para se determinar a oferta, a demanda e os preços existia no socialismo assim como existia no capitalismo.
Quando o debate chegou a esse ponto, F.A. Hayek e Lionel Robbins, que até então estavam ao lado de Mises, abandonaram o argumento da impossibilidade do cálculo econômico no socialismo e recuaram para uma segunda linha de defesa: que, embora o problema do cálculo econômico pudesse ser resolvido na teoria, na prática seria muito difícil. Assim, Hayek e Robbins passaram a sustentar que o socialismo sofria apenas de um problema prático, um problema mais voltado para o grau de eficiência; e não um problema de natureza drasticamente distinta da do capitalismo.
Entretanto, não é correto dizer que Hayek e seus seguidores haviam aceitado o argumento das equações, abandonado assim a abordagem “teórica” de Mises e refugiando-se em objeções “práticas” ao planejamento socialista. Hayek raramente concedia a equações matemáticas de equilíbrio geral o monopólio da correta teoria econômica. Porém, é também verdade que Hayek e seus seguidores alteraram fatal e decisivamente todo o enfoque de sua posição “austríaca” acerca do socialismo — seja dando um outro sentido ao argumento de Mises, seja conscientemente, embora silenciosamente, substituindo termos cruciais do debate.
Não foi por acidente, portanto, que Hayek e os hayekianos abandonaram a misesiana expressão “impossível” para descrever o socialismo, alegando que esta era embaraçosamente extrema e imprecisa. Para Hayek, o principal problema a ser enfrentado por um comitê planejador socialista é a sua falta de conhecimento acerca de vários dados da economia, sua incapacidade de obter informações sobre variáveis essenciais da economia. Sem um mercado, o comitê planejador socialista fica desprovido de meios para saber as preferências dos consumidores, sua escala de valoração dos bens, a oferta de recursos ou as tecnologias disponíveis. Já a economia capitalista é, para Hayek, um arranjo valioso justamente porque possibilita essa disseminação de conhecimento de um indivíduo para outro. Essa dispersão de informação ocorre através dos “sinais” enviados pelos preços formados no livre mercado.
Uma economia estática, em equilíbrio geral, poderia superar esse problema hayekiano da dispersão de conhecimento, uma vez que, sendo estática, todos os dados dessa economia acabariam se tornando de conhecimento de todos. Porém, no mundo real, os dados econômicos estão constantemente sofrendo alterações; sendo incertos, esses dados inconstantes impedem que o comitê planejador socialista adquira o conhecimento necessário para gerenciar a economia. Logo, como é típico de Hayek, seu argumento em prol de uma economia livre e contra uma economia estatizada baseia-se inteiramente no argumento da incapacidade de dispersão de informações acuradas sob o socialismo.
Porém, para Mises, o problema central do socialismo não é o “conhecimento”. Ele explicitamente mostra que, mesmo que os planejadores socialistas soubessem perfeitamente de tudo e estivessem genuinamente ávidos para satisfazer os desejos prioritários dos consumidores, e mesmo que esses planejadores possuíssem um perfeito conhecimento acerca de todos os recursos e de todas as tecnologias, eles ainda assim não seriam capazes de calcular, pois continua não existindo um sistema de preços para os meios de produção. O problema, portanto, não é de dispersão de conhecimento, mas sim de possibilidade de cálculo.
Como o professor Joe Salerno demonstrou, o conhecimento transmitido pelos preços de hoje — ou pelos preços do imediato “passado”, como os do dia de ontem — representam apenas as valorações dos consumidores, a disponibilidade de tecnologias, as ofertas de vários bens etc. do passado imediato ou recente. Porém, um agente empreendedor está realmente interessado — ao investir recursos na produção e na venda — é nos preços futuros. O empreendedor compromete recursos hoje na expectativa de colher lucros futuros. A função do empreendedor é avaliar e estimar — antecipar — os preços futuros, e alocar recursos de acordo com essa sua estimativa.
É exatamente essa função central e vital do empreendedor — estimar os preços futuros e investir recursos apropriadamente, buscando lucros e evitando prejuízos — que não pode ser realizada por um comitê planejador socialista, devido à ausência de mercado nos meios de produção. Sem tal mercado, não há preços monetários genuínos e, consequentemente, não há como o empreendedor calcular e fazer estimativas em termos monetários.
Em termos mais filosóficos, toda a ênfase hayekiana no problema do “conhecimento” é mal empregada e mal concebida. O propósito da ação humana não é “conhecer”, mas sim empregar meios para satisfazer objetivos. Como Salerno, com grande discernimento, resumiu a posição de Mises:
O sistema de preços não é — e praxeologicamente não pode ser — um mecanismo para economizar e comunicar o conhecimento relevante para os planos de produção [essa é a posição hayekiana]. Os preços correntes são preços já concretizados, e representam um acessório de avaliação e estimativa; eles auxiliam na operação mental na qual a faculdade da sabedoria é utilizada para avaliar a estrutura quantitativa das relações de preços, relações essas que correspondem a uma constelação de dados econômicos que já se concretizaram. Da mesma forma, preços futuros previstos não representam ferramentas de conhecimento. Preços futuros previstos são apenas instrumentos de cálculo econômico. E o cálculo econômico por si só não é o meio pelo qual se adquire conhecimento, mas sim o pré-requisito essencial da ação racional que ocorre dentro do arranjo da divisão social do trabalho. O cálculo econômico fornece aos indivíduos, independente de sua dotação de conhecimento, a ferramenta indispensável para se apreender a situação e fazer uma comparação mental entre os meios e os fins da ação empreendedora.
Em um recente artigo, o professor Israel Kirzner argumenta em prol da posição hayekiana. Para Hayek e para Kirzner, o mercado é um “processo de descoberta”, isto é, um processo de revelação de conhecimento. Nessa visão de mercado e de mundo, não há um reconhecimento genuíno da função do empreendedor; o empreendedor não é um “descobridor”, como ambos sustentam, mas sim um agente dinâmico que está disposto a correr riscos, alguém que se arrisca a ter prejuízos caso sua avaliação e prognóstico deem errado. A insistência de Kirzner no “processo de descoberta” funciona muito bem dentro do seu conceito original de empreendedorismo, segundo o qual a função do empreendedor é estar “alerta”, e a função de diferentes empreendedores é estar alternadamente alertas às oportunidades que eles veem e descobrem.
Porém, essa perspectiva interpreta de maneira totalmente distorcida a função do empreendedor. O empreendedor não está simplesmente “alerta”; ele prognostica, ele avalia, ele estima, ele assume e lida com riscos e incertezas ao buscar lucros e tentar evitar prejuízos. Como Salerno aponta, por causa de suas insistentes e repetitivas menções sobre dinamismo e incerteza, o “empreendedor” de Hayek-Kirzner é curiosamente um agente passivo, indiferente e inanimado, recebendo e passivamente absorvendo conhecimento transmitido a ele pelo mercado. O empreendedor de Hayek-Kirzner é bastante semelhante — muito mais do que ambos gostariam — ao agente do leilão walrasiano, o “leiloeiro” fictício que evita todas as trocas reais que ocorrem no mercado.[*]
Infelizmente, embora exponha lucidamente a posição hayekiana, Kirzner obscurece a história do debate ao alegar que Mises, mais tarde, junto com Hayek, viria a mudar sua posição (ou, no mínimo, “aprimorá-la”) em relação à sua visão “estática” original de 1920. Mas o que ocorreu foi justamente o contrário, como apontou Salerno: mais tarde, Mises rejeitou explicitamente a ideia de que a resposta para o problema do cálculo está na incerteza quanto ao futuro. A explicação para a questão do cálculo, declarou Mises em Ação Humana, não está no fato de que “toda a ação humana está voltada para o futuro e o futuro é sempre incerto”. Não, o problema do socialismo
não é esse. O cálculo que efetuamos hoje considera o nosso conhecimento atual e a previsão que fazemos hoje da situação futura. Não se trata de saber se o comitê socialista será ou não capaz de prever a situação futura. O que estamos afirmando é que o comitê não tem como calcular com base no seu próprio julgamento de valor e na sua própria previsão da situação futura, seja ela qual for. Se investir hoje na indústria de alimentos enlatados, pode ocorrer que uma mudança nos hábitos ou nas considerações higiênicas sobre a comida em lata venha a transformar seu investimento num desperdício. Mas a questão não é essa; o problema consiste em como definir, hoje, a melhor maneira de construir uma fábrica de conservas da maneira mais econômica.
Algumas estradas de ferro construídas no início do século não teriam sido construídas caso as pessoas àquele tempo tivessem previsto o iminente progresso do automóvel e da aviação. Mas aqueles que naquele tempo construíram estradas de ferro sabiam qual a alternativa — dentre as várias possíveis para a realização de seus planos — deveria ser a escolhida, em função de suas próprias avaliações e previsões, e dos preços de mercado nos quais estavam refletidas as valorações dos consumidores. É precisamente esta possibilidade de discernir que faltará ao comitê. Sua situação será idêntica à de um navegante em alto mar que não conheça os métodos de navegação… (Mises, Ação Humana, pág. 797)
Kirzner aparentemente acredita que o enfoque no empreendedorismo dado por Mises em sua discussão sobre socialismo em Ação Humana demonstra que Mises adotou a posição hayekiana. Kirzner parece negligenciar a enorme diferença que há entre a visão de Mises sobre o empreendedorismo, a qual envolve prognósticos, avaliações e estimativas, e a sua própria doutrina do “empreendedor alerta”, a qual deixa completamente de fora a possibilidade de prejuízos empreendedoriais.
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Leitura indispensável sobre o assunto:
Mises contra Hayek — o socialismo é um problema de propriedade ou de conhecimento?, de Hans-Hermann Hoppe
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Nota
[*] Israel M. Kirzner, The Economic Calculation Debate: Lessons for Austrians, Review of Austrian Economics 2 (1988): 1-18. Hayek cunhou o termo “processo de descoberta” em F. A. Hayek, “Competition as a Discovery Procedure,” in New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas (Chicago: University of Chicago Press, 1978), pp. 179-90. Para uma crítica ao conceito de empreendedorismo de Kirzner, ver Murray N. Rothbard,Professor Hébert on Entrepreneurship, Journal of Libertarian Studies 7 (Fall 1985): 281-85. Para as próprias contribuições de Hayek para o debate sobre o cálculo econômico no socialismo após o debate com Oskar Lange, ver F.A. Hayek, “Socialist Calculation 111: The Competitive ‘Solution'” (1940), e O Uso do Conhecimento na Sociedade (1945), in Individualism and Economic Order, pp. 181-208; 77-91.