“O bem que o Estado pode fazer é limitado; o mal, infinito.
O que ele nos pode dar é sempre menos do que nos pode tirar.”
(Roberto Campos)
Imagine que um médico faça frequentemente diagnósticos errados e com isso receite medicamentos que causem males a seus pacientes. E que estes, ao voltarem ao consultório para fazerem o justo protesto, sejam obrigados a pagar uma “taxa de reclamação” ao doutor. Ou que um professor sistematicamente corrija provas de maneira equivocada e que os alunos, ao reclamarem, também sejam forçados a pagarem uma “taxa de queixa”. Ou, ainda, que você compre na padaria um alimento estragado e, ao voltar para trocá-lo, o gerente lhe cobre uma “taxa de descontentamento”…
Pois situações como essas, hipoteticamente inverossímeis, passam a ser verdadeiras quando se trata do estado brasileiro (pedindo desculpas às regras ortográficas, faço questão de grafar estado com e minúsculo), conforme reportagem que vi em uma das edições do Jornal do SBT na semana passada. Parece o absurdo dos absurdos, mas é verdade…
Segundo a matéria, ilustrada com entrevistas tanto de cidadãos prejudicados quanto de autoridades municipais de Ipatinga (MG), qualquer pessoa que desejar reclamar contra algum mau serviço prestado pela prefeitura daquela cidade – por exemplo, buracos nas ruas, lâmpadas da iluminação pública queimadas, barrancos que ameaçam deslizar, falta de água etc. — é obrigada a pagar uma taxa à prefeitura, de pouco mais de três reais… O infeliz reclamante tem que se dirigir à prefeitura, pegar um boleto bancário, ir ao banco, pagar o valor, voltar ao órgão público (público?) e registrar a sua queixa. O passo seguinte é esperar meses (se tiver sorte) para que sua reivindicação seja atendida. Surreal, não? Mas, infelizmente, é verdade, segundo a reportagem.
É o fim da picada, não? Cobram-nos impostos, taxas e contribuições de todos os tipos e variedades possíveis, forçam-nos a trabalhar até o final de maio de cada ano para pagá-los, prestam-nos serviços públicos de milésima categoria e, quando manifestamos disposição de exercer a verdadeira cidadania (que não é aquela “politicamente correta” tão endeusada pelos meios de comunicação), reclamando nossos direitos, ainda temos que pagar para fazê-lo. Ainda bem que não moro em Ipatinga…
Que ideia genial essa das autoridades da cidade mineira! Ainda bem que a audiência do jornal do SBT é inferior à do Jornal Nacional da Globo, senão os prefeitos dos demais municípios (que somam mais de 5.560) seriam imediatamente tentados a copiá-la, já que o que pauta o estado, em suas três esferas, em nosso país, parece ser um monocórdico arrecadar, arrecadar…e arrecadar.
Não sei se a referida taxa foi aprovada pela câmara de vereadores, tampouco sei se é constitucional. Mas sei que, tivesse o nosso povo mínimas noções do que representa a verdadeira cidadania, caberia uma ação pública contra a absurda “taxa de reclamação”, com uma representação junto ao Ministério Público. Mas, infelizmente, o que se viu na matéria da TV foram pessoas reclamando com os repórteres, mas sem qualquer senso de organização, sempre mostrando uma atitude passiva, como a dizerem: “o estado pode tudo; nós não podemos nada”… Retrato bem típico de um povo que tudo espera do estado e desconhece sua própria força para melhorar as coisas. E, pior, que nem desconfia que, sem que venha a exercer essa força, a exploração do estado sobre ele só tende a piorar com o tempo.
Não adianta trocar de prefeito, governador ou presidente, nem de vereadores, deputados e senadores, porque os seus substitutos, mesmo se pertencerem a outros partidos políticos, continuam a agir da mesma forma, colocando o estado acima dos cidadãos e servindo-se destes sem qualquer sensação de que os estão explorando. Notemos que este artigo não é uma crítica específica ao prefeito de Ipatinga, mas à cultura “estatólatra” – a idolatria ao estado – que está entranhada nas mentes e no comportamento de praticamente todos os políticos e também nas cabeças e nas ações de — podemos afirmar — quase toda a população: o estado é o senhor e nós, os contribuintes, os servos…
Situações como essa só poderão mudar a partir do poder das ideias! No caso, ideias de cidadania muito diferentes das que são propagadas pela mídia, ideias de que o estado só faz sentido quando serve bem ao cidadão, ideias de que a limitação de poder é um dispositivo essencial, ideias de que o objetivo do estado não é meramente arrecadar, mas prestar serviços aos indivíduos nas atividades em que ele é essencial – que são poucas, aliás. Ideias de que qualquer pessoa, sentindo-se prejudicada ou mal servida pela autoridade, deve ter o direito de reclamar gratuitamente.
Acontece que, no Brasil e em quase toda a América Latina, em termos de ideias, quase sempre é o rabo que abana o cachorro. Por exemplo, na universidade pública em que sou professor, há no saguão de entrada barraquinhas de diversos partidos políticos (naturalmente, os da esquerda mais radical), tentando cooptar alunos — geralmente, calouros — para seus quadros, o que caracteriza, por si só, uma relação de causa e efeito às avessas: a universidade, potencial produtora de ideias para que sejam incorporadas aos programas partidários, passa a ser mera copiadora e propagadora de ideologias prontas, com prejuízos enormes para as verdadeiras atividades acadêmicas. E ainda dizem que essa prática é “democrática”… Nas outras universidades públicas e também em algumas privadas, a situação não é diferente: a cauda vai para um lado, o cachorro a acompanha; vai para o outro, o cachorro também vai…
Há uma enorme tarefa a ser executada na América Latina no plano das ideias! Uma delas é mostrar às pessoas que suas vidas não podem depender de políticos, de burocratas e de tecnocratas. Que suas vidas são suas. Que seu futuro não pode estar nas mãos de um prefeito, governador, ministro ou presidente, mas em suas próprias mãos, com base nas escolhas que fizer durante a sua vida. O IMB —Instituto Ludwig von Mises Brasil, que já vem divulgando boas ideias em seu site (www.mises.org.br), pretende em breve lançar cursos presenciais e à distância, divulgando o pensamento da Escola Austríaca de Economia, para mostrar que as ideologias não funcionam e que uma sociedade de pessoas livres só faz sentido quando nela prevalece o indivíduo e não o estado.
Será um trabalho de paciência, semelhante ao das formigas, de formação de uma nova geração, que por sua vez influenciará a seguinte. Seus frutos não serão, portanto, imediatos. Mas precisa ser feito.
Até que as coisas mudem, ainda teremos que aturar muitos absurdos dos absurdos como esse da “taxa de reclamação” de Ipatinga. Paciência… Ainda bem que, como observou Giacomo Leopardi, “a paciência é a mais heróica das virtudes, justamente por não ter nenhuma aparência de heroísmo”. Já é um consolo.