Este artigo foi extraído do capítulo 8 do livro Theory and History
Antes do século XVIII, a maioria das dissertações que lidavam com a história humana em geral (e não meramente com a experiência histórica concreta) interpretava a história através do ponto de vista de uma específica filosofia da história. Essa filosofia quase nunca era claramente definida e pormenorizada. Seus princípios eram admitidos como certos e subentendidos nas observações acerca dos eventos.
Foi somente com o advento do Iluminismo que alguns eminentes filósofos abandonaram os tradicionais métodos da filosofia da história e pararam de se preocupar em entender o propósito oculto da providência em dirigir o desenrolar dos eventos. Eles inauguraram uma nova filosofia social, totalmente diferente daquilo que é chamado de filosofia da história. Eles passaram a olhar os eventos humanos através do ponto de vista dos fins objetivados pelo indivíduo atuante, ao invés de utilizar o ponto de vista dos planos atribuídos a Deus ou à natureza.
A significância dessa mudança radical no enfoque ideológico pode ser melhor ilustrada ao recorrermos ao ponto de vista de Adam Smith. Porém, para analisar as ideias de Smith, temos primeiro de recorrer a Mandeville.
Os sistemas éticos antigos eram praticamente unânimes em sua condenação ao interesse próprio. Eles prontamente consideravam o interesse próprio dos lavradores do solo algo perdoável, e frequentemente tentavam isentar ou mesmo glorificar a avidez dos reis pelo enaltecimento. Porém, eles eram inflexíveis em sua condenação ao desejo das outras pessoas por bem-estar e riquezas. Referindo-se ao Sermão da Montanha, eles exaltavam a renúncia e a indiferença em relação aos tesouros ‘que as traças e a ferrugem irão corromper’, e rotulavam o interesse próprio como um vício repreensível.
Bernard de Mandeville, em seu A Fábula das Abelhas, tentou desacreditar essa doutrina. Ele demonstrou que o interesse próprio e o desejo pelo bem-estar material, comumente estigmatizados como vícios, representam na realidade os incentivos cujo funcionamento contribuem para o bem-estar, a prosperidade e a civilização.
Adam Smith adotou essa ideia. Não era o objetivo de seus estudos desenvolver uma filosofia da história de acordo com o padrão tradicional. Ele não alegava ter descoberto quais objetivos a providência estabeleceu para a humanidade tentar concretizar. Ele se absteve de qualquer afirmação sobre o destino da humanidade, bem como de fazer qualquer prognóstico sobre o inevitável fim da história. Ele meramente queria determinar e analisar os fatores que haviam sido cruciais para o progresso do homem, desde as difíceis condições predominantes nas eras mais antigas até as condições mais satisfatórias de sua própria era.
Foi a partir desse ponto de vista que ele enfatizou o fato de que “cada parte da natureza, quando atentamente examinada, demonstra uniformemente o miraculoso cuidado de seu Autor”, e que “podemos admirar a sabedoria e a bondade de Deus, mesmo na fraqueza e na insensatez dos homens”. Os ricos, ao buscarem a “gratificação de seus próprios vãos e insaciáveis desejos”, são “guiados por uma mão invisível” de tal forma que eles “sem planejar, sem saber, promovem os interesses da sociedade, e proporcionam meios para a multiplicação da espécie”.
Por acreditar na existência de Deus, Smith não pôde deixar de creditar a Ele e a Seu providencial cuidado todas as coisas terrenas, assim como faria mais tarde o católico Frédéric Bastiat, que se referiu ao dedo de Deus. Porém, ao se referirem dessa forma a Deus, nenhum deles teve a intenção de fazer qualquer afirmação sobre os fins que Deus quer concretizar na evolução da história. Os fins com os quais eles lidaram em seus escritos eram aqueles objetivados pelo indivíduo, e não pela providência. Essa ‘harmonia pré-estabelecida’ à qual eles aludiam não afetava seus princípios epistemológicos e seus métodos de raciocínio. Era apenas um meio criado para fazer com que os procedimentos mundanos e puramente seculares que eles aplicaram aos seus esforços científicos se reconciliassem com suas crenças religiosas. Eles copiaram esse procedimento de astrônomos, físicos e biólogos religiosos, que o utilizavam sem se afastarem, em suas pesquisas, dos métodos empíricos das ciências naturais.
O que fez com que fosse necessário a Adam Smith buscar tal reconciliação foi o fato de que — como ocorreu com Mandeville antes dele — ele não podia se libertar dos padrões e da terminologia da ética tradicional, a qual condenava o desejo do homem de melhorar suas próprias condições materiais. Consequentemente, ele teve de lidar com um paradoxo. Como explicar o fato de que ações comumente condenadas como maléficas geram efeitos comumente exaltados como benéficos?
Os filósofos utilitaristas encontraram a resposta correta. O que resulta em benefícios não pode ser rejeitado como sendo moralmente ruim. Somente ações que produzem resultados ruins são ruins. Porém, o ponto de vista utilitarista não prevaleceu. A opinião pública ainda está apegada a ideias pré-mandevillianas. Ela não aprova o sucesso obtido por um empreendedor que exitosamente fornece aos seus clientes as mercadorias que melhor satisfazem os desejos destes. Ela olha com desconfiança para a riqueza adquirida por meio do comércio, da produção e da dedicação, e a considera perdoável apenas se o proprietário dessa riqueza expiar sua “culpa” fazendo doações para instituições de caridade.
Para os historiadores e economistas agnósticos, ateus e antiteístas não há nenhuma necessidade de recorrer à mão invisível de Smith e Bastiat. Os historiadores e economistas cristãos que rejeitam o capitalismo como sendo um sistema injusto consideram uma blasfêmia descrever o egoísmo como um meio que a providência escolheu para obter seus fins. Assim, as visões teológicas de Smith e Bastiat não mais têm qualquer significado para nossa época. Porém, não é impossível que as igrejas e seitas cristãs um dia venham a descobrir que a plena liberdade religiosa pode ser desfrutada apenas em uma economia de mercado — e, com isso, talvez elas parem de apoiar tendências anticapitalistas. E então elas irão parar de condenar o interesse próprio ou então irão retornar à solução sugerida por esses pensadores iminentes.
Tão importante quanto perceber a diferença essencial entre a filosofia da história e a nova e puramente mundana filosofia social desenvolvida a partir do século XVIII é perceber a diferença entre a ‘doutrina das etapas’ implícita em praticamente toda a filosofia da história e as tentativas dos historiadores de dividir a totalidade dos eventos históricos em vários períodos ou épocas.
No contexto de uma filosofia da história, os vários estados ou etapas são, como já foi mencionado, estações intermediárias no caminho para uma etapa final, a qual realizará por completo o plano do providência. Para as várias filosofias cristãs da história, esse padrão foi determinado pelos quatro reinos do Livro de Daniel. As filosofias modernas da história pegaram emprestada do Livro de Daniel a noção da etapa final das relações humanas, a noção de “um domínio eterno, que não passará”. Por mais que Hegel, Comte e Marx possam discordar de Daniel e entre eles próprios, todos eles aceitam essa noção, a qual é um elemento essencial em todas as filosofias da história. Apenas variam a etapa no qual a humanidade se encontra. Eles anunciam que a etapa final já foi atingida (Hegel), ou que a humanidade acabou de adentrá-la (Comte), ou que sua chegada deve ser esperada a cada dia (Marx).
As épocas da história distinguidas por historiadores são de um caráter diferente. Historiadores não afirmam saber alguma coisa sobre o futuro. Eles lidam apenas com o passado. Seus esquemas de periodização visam a apenas classificar fenômenos históricos sem qualquer ousadia de prever eventos futuros. A propensão de vários historiadores a dividir a história geral — ou áreas específicas dela, como história econômica ou social, ou história militar — em subdivisões artificiais produziu vários inconvenientes. Tem sido um obstáculo ao invés de um auxílio para o estudo da história. Frequentemente, tal atitude foi incitada por influências políticas. Os historiadores modernos concordam em dar pouca atenção a tais esquemas. Porém, o que importa para nós é simplesmente estabelecer o fato de que o caráter epistemológico da periodização da história por historiadores é diferente dos esquemas de etapas da filosofia da história.