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A teoria austríaca do capital

aV2dHD_0I. Introdução

Uma boa teoria do capital deve começar pelo reconhecimento de um fato que a simples vivência ensina: o de que o resultado ou recompensa pela produção de um bem ou serviço exige sempre esforço para ser alcançado. Nassau Senior denominou esse sacrifício de abstinência; Alfred Marshall e Karl Gustav Cassell de espera; Eugen von Böhm-Bawerk de roundaboutness (ou seja, a característica inerente aos processos de produção de serem indiretos); e Joan Gustaf Knut Wicksell, simplesmente, de tempo. Assim, um processo de produção capitalistaou roundabout – ou, simplesmente, indireto– é aquele que possui a característica de sacrificar alguma coisa hoje para ter mais coisas amanhã e em que a produção aumenta porque ocorre uma permuta (switch) intertemporal no produto.

Suponha que Robinson Crusoé pescava três peixes por dia mergulhando para pegá-los com as próprias mãos e que sua alimentação consistia exclusivamente do pescado que “produzia”. Ao final do dia, assava-os e os comia. Suponha agora que ele tivesse tomado a decisão de, ao invés de comer os três peixes que pescava diariamente, consumir apenas dois, economizando, portanto, um peixe por dia. Ao cabo de dois dias, teria acumulado dois peixes, o que lhe garantiria consumo para um dia. Admita que ele gastasse esse dia não para pescar, mas para construir uma rede tosca, que lhe permitiria pegar, ao invés dos três a que estava acostumado, uma dúzia de peixes por dia – sem dúvida, um resultado superior ao inicial. Neste exemplo de uma economia autística, aabstinência – ou poupança – seria dada por aqueles dois peixes que deixou de comer durante os dois dias para que pudesse ter uma reserva de peixes que lhe permitisse passar um dia inteiro investindo, ou seja, construindo o bem de capital – a rede.

 

II. A teoria do capital de Böhm-Bawerk

Sem dúvida, o economista austríaco que prestou maior contribuição na formulação do que hoje se pode denominar de Teoria Austríaca do Capital foi Böhm-Bawerk (1851-1914). Examinemos os pontos principais dessa teoria

Ação humana, tempo e incerteza

Pode definir-se ação humana genericamente como qualquer comportamento ou escolha deliberada Os indivíduos, quando agem, fazem-no para alcançar determinados fins, utilizando os meios que julgam adequados. Para os austríacos, valor e utilidade são conceitos subjetivos, de caráter psíquico, e que se refletem em cada agente no que diz respeito à dualidade entre fins e meios. Os meios, por definição, são escassos face aos fins, pois, se não o fossem, não precisariam ser levados em conta ao definir-se a ação. Em outras palavras, fins e meios não são parâmetros ou dados: são resultados da atividade empresarial, que consiste precisamente na criação, ou descoberta, ou mesmo na simples consciência a respeito de quais são os fins e os meios relevantes em cada uma das inumeráveis escolhas que os seres humanos são forçados a fazer ao longo da vida.

Assim, quando um agente acredita ter descoberto determinados objetivos ou fins que lhe interessam, pensa imediatamente nos meios que julga possam ser utilizados para atingi-los. Ao definir fins e estabelecer meios, ele delineia um plano de ação, fruto de um ato volitivo. Esse plano é uma representação mental prospectiva a respeito das diferentes fases, fatores e circunstâncias que julga necessárias para a sua ação.

Como sabemos, a ação humana se dá sempre no tempo – não entendido no seu sentido newtoniano, ou seja, meramente físico ou analógico, mas sim em sua concepção dinâmica subjetivista, isto é, da forma como é subjetivamente sentido, experimentado e interpretado por cada agente na realização de sua ação – e sob condições de incerteza genuína. Ação, tempo e incerteza genuína são, por isso, categorias econômicas inseparáveis, o que nos permite definir a própria economia como ação humana ao longo do tempo (real) sob condições de incerteza genuína.

O que separa o agente de seu desejado fim é o tempo, ou seja, a série sucessiva de etapas que integram o seu processo de ação. É intuitivo que, sob o ponto de vista prospectivo e subjetivo do agente, existe uma tendência a que, quanto maior for o período de tempo que se espera para concretizar uma ação – ou seja, quanto maior a complexidade das etapas sucessivas que a constituem -, assim como quanto maior for o grau de incerteza envolvido na consecução da ação até o objetivo pretendido, o resultado ou fim da ação que se pretende alcançar deve possuir um valor maior. Se não fosse assim, não se realizariam ações que demandam mais tempo e embutem maior incerteza, porque se optaria sempre pelo “curto” e o “não duvidoso”.

Em outras palavras, os seres humanos, em situações semelhantes, sempre desejam alcançar os seus fins da maneira mais rápida e menos incerta possível e somente mostrarão disposição para adiar a realização de seus propósitos se – subjetivamente – julgarem que o adiamento lhes permitirá alcançar objetivos de maior valor. A isto se denomina de preferência intertemporal. Escrevendo de outra forma: os bens presentes são preferíveis aos bens futuros, ou, ainda: o adiamento de uma recompensa no presente exige uma recompensa maior no futuro.

O capital e os bens de capital

Denomina-se bem de capital a cada uma das etapas intermediárias de cada processo de ação, subjetivamente consideradas dessa forma pelo agente. Mais especificamente, um bem de capital é uma das etapas intermediárias da série em que se constitui todo o processo produtivo desenvolvido pelo agente. Por exemplo, na produção do bem final automóvel, o chassi é um bem intermediário, um bem que já embute um valor adicionado e que ainda não está “pronto” para o consumo final, mas que é utilizado na produção do bem de primeira ordem.

A obra maior de Böhm-Bawerk – Capital e Juros – é composta por três partes: a primeira critica as teorias de juros existentes à época, a segunda constrói uma teoria do capital e juros e a terceira responde a críticas.

Para ilustrar a teoria dos juros e do capital, Böhm-Bawerk introduziu uma figura, a mosca de alvo, um conjunto de anéis concêntricos para representar a estrutura temporal de produção. A produção de um bem qualquer começa no centro do alvo, pela utilização dos meios originais (recursos naturais e trabalho). Com o decorrer do tempo, o processo produtivo vai se espraiando de dentro para fora e o produto final é representado pelo anel mais afastado. Para Böhm-Bawerk, quanto mais anéis a mosca possuir, maior o grau de desenvolvimento do processo produtivo, ou do sistema econômico. Na figura seguinte, por exemplo, a mosca do lado direito representa uma estrutura de capital mais sofisticada do que a da esquerda. Cada anel representa o que denominou de classe de maturação. Essa forma de representar a estrutura de capital precede a que Hayek utilizou mais tarde, com seus famosos triângulos. O triângulo hayekiano capta a linearidade essencial – o que não significa negar a existência de não-linearidades importantes – da estrutura de produção e corresponde à figura da mosca de alvo de Böhm-Bawerk.

A mosca de alvo bawerkiana e os triângulos hayekianos

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Expansões da estrutura de capital não correspondem a expansões simultâneas e na mesma proporção em cada estágio e nem devem ser interpretadas como um aumento simultâneo e igualmente proporcional no capital em todas as classes de maturação, mas simplesmente como uma realocação de capital entre elas. Este mecanismo de mercado mantém os planos de produção intertemporal em sintonia com as preferências intertemporais dos consumidores, ou, em linguagem mais usual, permite que a oferta e a demanda se realizem de modo sincronizado, no sentido de que a demanda por um bem ocorrerá exatamente quando o setor produtor acabar de produzir esse bem.

Como observa Roger Garrison (“Biografia de Eugen von Böhm-Bawerk”, em http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=87) o significado desse mecanismo de mercado era o ponto em questão no seu debate com John Bates Clark, que defendia a tese de que uma vez que o capital estivesse adequado, a manutenção dele seria automática; e a produção e o consumo seriam, na verdade, simultâneos. Embora um leitor atual possa concluir que Böhm-Bawerk venceu o debate e que nos anos posteriores Hayek obteve vitória semelhante em seu debate contra Frank Knight, a evolução da mainstream economics reflete que, nos meios acadêmicos, a crença implícita é de que foram Clark e Knight os vencedores.

Ainda reproduzindo Garrison (ibidem): “É fácil para os modernos economistas austríacos perceber que Böhm-Bawerk estava a apenas um passo de articular a teoria austríaca dos ciclos econômicos. Esse passo – que foi na verdade dado por Mises e Hayek – teria envolvido uma comparação das mudanças nas configurações dos anéis, procurando entender se essas mudanças eram induzidas por questões puramente preferenciais ou por questões puramente políticas. Uma mudança das preferências intertemporais no sentido de aumentar a poupança provoca uma realocação do capital entre os anéis de tal forma que a economia vivencia uma acumulação de capital e um crescimento sustentável; uma mudança nas condições do crédito que seja politicamente induzida, isto é, uma diminuição artificial das taxas de juros proporcionada pelo empréstimo de dinheiro recém criado (por um banco central que imprime dinheiro do nada), provoca más alocações do capital entre os anéis de tal forma que a economia sofre um crescimento insustentável e uma crise econômica”.

Os bens de capital devem sempre ser concebidos sob um ponto de vista teleológico, em que fins e meios subjetivamente definidos sejam os seus elementos essenciais. Os bens de capital são, portanto, os bens econômicos de ordens superiores a que já se referia Menger, ou os fatores de produção que se incorporam em cada uma das etapas sucessivas de um processo de ação em geral (ou de um processo de produção, em particular). Os bens de capital são formados por três elementos essenciais: recursos naturais, trabalho e tempo, combinados ao longo de um processo de ação concebido e executado pelo agente.

A produção de bens de capital pressupõe a existência de poupança, definida como a renúncia ao consumo no presente (na expectativa de maior consumo no futuro). Para entendermos isso, basta recorrermos ao exemplo do peixe economizado – ou seja, poupado – durante dois dias consecutivos por Robinson Crusoé. Para construir a rede – isto é, para investir – e ter um bem de capital que lhe permitiria pescar uma dúzia de peixes diariamente, ele teve que realizar o esforço, durante dois dias seguidos, de comer apenas dois peixes, ao invés dos três a que estava habituado.

Ao planejar sua ação e decidir empreendê-la, Crusoé sabia previamente que precisaria poupar parte dos peixes que capturava diariamente e estocá-los, para que no terceiro dia – que dedicaria à construção da rede e em que, portanto, não teria tempo para pescar – pudesse alimentar-se deles. Se seus planos quanto à construção da rede estavam corretos, então Crusoé teria à sua disposição a rede, ou seja, o bem de capital representado por um estágio mais avançado em termos temporais exatamente no terceiro dia. Ele buscou coordenar a sua satisfação em termos de consumo presente relativamente ao seu comportamento futuro previsto. Mas, se, por exemplo, gastasse não um dia, porém dois, para construir a rede, seria forçado a jejuar durante esse dia adicional não previsto inicialmente em seus planos, a não ser que deixasse para concluir a rede no futuro, depois de esforçar-se poupando por mais dois dias. Se, por outro lado, gastasse apenas uma hora do terceiro dia para construir a rede, teria sacrificado sem necessidade o seu consumo nos dias anteriores.

Nas economias modernas, com milhões de agentes econômicos, em que a complexidade dos processos produtivos é muito mais sofisticada do que a do exemplo de Robinson Crusoé, o capitalista é aquele que poupa, ou seja, consume menos do que cria ou produz, liberando dessa forma recursos para os estágios mais afastados da estrutura de produção, isto é, para a produção de bens de capital.

O Fator Tempo e as Taxas de Juros

Böhm-Bawerk, ao enfatizar a importância do tempo no processo econômico e ao definir o capital como sendo os fatores de produção fabricados, contribuiu definitivamente para o desenvolvimento da teoria do capital e dos juros. Sua análise sustentava-se na idéia de que os meios de produção indiretos (roundabout) permitem o aumento da produtividade dos agentes, tanto em termos de quantidades maiores de bens produzidos sem equipamentos, como dos bens produzidos apenas com a utilização de bens de capital em seus processos produtivos. O tempo de espera associado ao uso de processos indiretos de produção é o núcleo de sua teoria dos juros. Seu argumento, como vimos, era o de que os agentes econômicos valorizam mais os bens presentes do que os bens futuros com características semelhantes, desde que as demais circunstâncias não se alterem. Em outras palavras, isto significa que as pessoas têm uma tendência a consumir mais no presente do que no futuro. Tal afirmativa, que denominamos de lei da preferência intertemporal, deduz-se imediatamente dos postulados da ação humana e traduz o fato de que, sendo o tempo um fator escasso, o agente econômico procura obter a situação mais satisfatória para ele no mínimo de tempo possível.

A lei da preferência intertemporal embasa a explicação das margens existentes entre os preços de venda e os custos, da qual se apropriam os empresários capitalistas que ofertam os fundos necessários para a compra dos bens de capital. Tal apropriação, na realidade, significa o pagamento de juros pelo período de tempo durante o qual seus investimentos foram usados e não se constitui, segundo Böhm-Bawerk, em qualquer exploração dos trabalhadores por parte de ninguém, como havia concluído Marx.

A teoria mengeriana do valor foi expandida para incluir a preferência intertemporal e, embora a Teoria Austríaca do Capital tenha passado por desenvolvimentos posteriores, a explicação bawerkiana dos juros e da produção indireta ainda é o seu núcleo.

O fato é que os agentes econômicos dispõem de duas possibilidades quanto ao consumo daquilo que é produzido: consumir no presente ou esperar para consumir no futuro, isto é, poupar. E, como os seres humanos possuem uma tendência para consumir no presente, torna-se necessário, para que eles abram mão dessa inclinação natural e adiem seu consumo, que recebam uma recompensa ou prêmio pela espera. Tal prêmio, denominado de juros originário, é definido como a diferença entre os valores atribuídos a um mesmo bem no presente e no futuro.

O montante de juros originário tende a ser diretamente proporcional à preferência temporal dos agentes econômicos, ou seja, quanto mais estes valorizem o consumo presente em relação ao futuro, maior deverá ser o montante de juros necessário para induzi-los a poupar, isto é, a postergar o consumo e, inversamente, quanto maior a preferência pelo consumo futuro em relação ao presente, menor deverá ser o total de juros que ele requererá para poupar. Se, por exemplo, os agentes econômicos soubessem que o fim do mundo seria no dia seguinte, a taxa de juros tenderia ao infinito; se, por outro lado, fossem informados de que passariam a ser doravante imortais, a taxa de juros cairia para níveis baixíssimos, próximos de zero.

Assim, de acordo com Böhm-Bawerk, quando um credor empresta, por exemplo, R$ 1.000,00 em troca do recebimento de R$ 1.030,00 dentro de um semestre, os dois não estão trocando a mesma coisa: o credor entrega R$ 1.000,00 ao devedor na forma de um bem presente (dinheiro), enquanto o devedor dá ao credor um bem futuro (uma promissória), que representa uma perspectiva de recebimento de dinheiro no fim dos seis meses. Em virtude da discrepância entre as valorizações de um mesmo bem no presente e no futuro, é que o credor cobra um prêmio (no exemplo, 3% ao semestre) pelo bem atual, que o devedor aceita pagar.

Além de mostrar a importância do fator tempo na formação das taxas de juros e como os lucros empresariais, sendo também determinados pela preferência intertemporal, representam, na verdade, em termos de lucros “normais”, a própria taxa de juros, Böhm-Bawerk foi mais além: em seu “Capital and Interest”, mostrou que os bens de capital não são apenas “trabalho incorporado”, mas também tempo “incorporado”. Ainda mais: percebeu que o capital – diferentemente do que supunham os ricardianos e do que implicitamente a maioria dos economistas do século XX aceita, ao considerá-lo como uma dada “quantidade” – é uma estrutura, uma rede bastante complexa e que possui uma dimensão temporal. Influenciou, entre outros, Rothbard, para quem o crescimento econômico e a maior produtividade não resultam simplesmente de acréscimos à quantidade de capital, mas também de acréscimos à sua estrutura temporal para a construção de processos de produção cada vez mais indiretos, que proporcionarão, no futuro, padrões mais elevados de consumo.

 

A taxa de juros

Os juros, para Böhm-Bawerk, não podem ser explicados pela produtividade física do capital. Imagine que um casal de patos gere seis patinhos daqui a vinte e oito dias (que é o tempo médio de incubação da espécie) e que cada pato – filhote ou adulto – custe R$ 50,00. Então, os seis patinhos excedentes não explicam os juros, pois, em caso contrário, seria interessante para qualquer um comprar hoje o casal de patos por qualquer preço menor do que R$ 400,00 para vendê-lo daqui a vinte e oito dias – quando, então, já seria de oito o total de animais – pelos R$ 400,00. Porém, acontece que as forças de mercado (entre elas a competição e as expectativas) fariam com que o preço presente dos oito patos subisse para os R$ 400,00.

Três motivos levaram o economista austríaco a explicar os juros pelas preferências intertemporais: primeiro, as necessidades presentes são mais urgentes do que as futuras; segundo, os agentes econômicos preferem o presente porque o futuro, além de incerto e desconhecido, é subjetivamente imaginado com imperfeição; e terceiro, os bens presentes podem valer mais, já que podem ser investidos agora em processos produtivos mais longos, que resultam em maior produtividade. Este último motivo – a maior produtividade dos processos produtivos de longo prazo – é fundamental na teoria bawerkiana do capital.

Os indivíduos, em suas escalas valorativas, tendem a atribuir maior valor aos bens presentes do que aos bens futuros, mas a avaliação subjetiva, naturalmente, varia muito entre os indivíduos, bem como para o mesmo indivíduo ao longo de sua vida. Isto conduz a possibilidades múltiplas de trocas, em que ambas as partes possam se beneficiar. Pessoas com baixa preferência intertemporal estão dispostas a renunciar a bens presentes em troca de bens futuros com valores não muito maiores, entregando assim os seus bens presentes a outros que tenham uma preferência intertemporal mais alta e, portanto, valorizem mais fortemente o presente em relação ao futuro. Isto acaba por determinar o preço de mercado dos bens presentes relativamente aos bens futuros. Para a Escola Austríaca, portanto, a taxa de juros nada mais é do que o preço de mercado dos bens presentes em relação aos bens futuros.

Assim, a taxa de juros é o preço determinado em mercado no qual os ofertantes ou vendedores de bens presentes são, precisamente, os poupadores – todos aqueles relativamente mais dispostos a renunciar ao consumo imediato em troca da expectativa de obter um maior valor de bens no futuro. Já os compradores o de bens presentes preferem consumir bens e serviços imediatos porque sua propensão à abstinência é menor.

Assim, o mercado de bens presentes e bens futuros, no qual se determina a taxa de juros, é formado por toda a estrutura de produção da economia, em que os poupadores ou capitalistas renunciam ao consumo imediato e oferecem bens presentes aos proprietários dos fatores originais de produção (trabalho e recursos naturais) e aos proprietários dos bens de capital, em troca de assegurar a posse de um valor – que espera vir a ser maior – de bens de consumo no futuro. Se eliminarmos os efeitos positivos (ou negativos) dos ganhos (ou perdas) da atividade empresarial, a diferença de valor tende a coincidir com a taxa de juros.

Quanto maior a poupança, ou seja, quanto mais dispostos a renunciar ao consumo imediato forem os agentes, menor será a taxa de juro, maior disponibilidade de bens presentes para aumentar a duração e a complexidade dos estágios do processo produtivo. E quanto menor for a poupança, vale dizer, quanto menos dispostos forem os agentes econômicos a renunciar ao consumo imediato de bens presentes, mais alta será a taxa de juros de mercado. Portanto, uma taxa de juros de mercado alta indica que a poupança é escassa em termos relativos, e isso é um sinal de que os empreendedores não devem alargar os estágios de produção, o que provocaria descoordenações. A taxa de juros indica então à atividade empresarial quais os novos estágios produtivos ou projetos de investimento que devem empreender e quais devem evitar, para manter coordenados os comportamentos de poupadores, consumidores e investidores, evitando que os diversos estágios produtivos sejam mais curtos ou mais longos do que devem ser.

Essas observações são cruciais para entendermos corretamente a visão da Escola Austríaca a respeito dos ciclos econômicos, da inflação e do desemprego.

Poupança e Investimento

Robinson Crusoé, por haver poupado e investido, melhorou de situação: a produtividade de seu trabalho aumentou, – isto é, a relação entre o volume produzido e o tempo empregado na produção subiu – o que reduziu certamente sua jornada de trabalho e, portanto, aumentou seu tempo livre, que ele poderá utilizar como melhor lhe aprouver, seja descansando mais, seja fabricando novos bens de capital que lhe permitirão melhorar ainda mais, seja para o que for. O capital, portanto, que é o meio indispensável para a elevação do nível de bem-estar dos indivíduos, é resultado do investimento que, por sua vez, é fruto da poupança prévia e não de cédulas emitidas pelo Banco Central. O bem-estar aumenta a partir do esforço da poupança, na medida em que esta se converte em investimento; ele não aumenta – pelo contrário, diminui – pela simples vontade, manifestada pelo governo, de que ele poderá aumentar mediante a emissão de moeda.

Podemos, agora, aplicar esses conceitos ao mundo real, analisando o processo especial de mercado, denominado de mercado de capitais, composto de uma oferta, formada por todos os poupadores, e de uma demanda, representada por todos os investidores. Os primeiros, em troca do recebimento de juros, estão dispostos a adiar o seu consumo, ao passo que os segundos se dispõem a pagar juros para os poupadores, com o objetivo de produzir novos bens de capital. A taxa de juros, portanto, é o elemento de ligação entre a oferta de poupança e a demanda de investimento, comportando-se como um preço, embora, a rigor, não possa ser definida como tal, uma vez que, ao invés de ser determinada – como o são todos os preços – pela lei da utilidade marginal do bem transacionado, a taxa de juros é, como vimos, determinada pela lei da preferência intertemporal. A taxa de juros que se forma no mercado de capitais – taxa bruta de juros – é afetada, além da preferência intertemporal, por fatores provocados por mudanças em circunstâncias comerciais, como variações no poder de compra da moeda, alterações na taxa originária de juros e outras.

Portanto, a taxa bruta de juros tende a aumentar quando, mantendo-se constantes as demais circunstâncias, a demanda de recursos para investir aumenta e/ou a oferta de fundos para emprestar diminui; e tende a baixar quando a demanda de investimentos diminui e/ou a oferta de poupanças aumenta.

Os economistas austríacos ressaltam que o mercado de crédito, em que se obtêm empréstimos pagando a taxa de juros vigente, é apenas uma parte – e de importância relativamente não muito grande – do mercado geral onde se trocam bens presentes por bens futuros, formado por toda a estrutura produtiva da economia, Os mercados de empréstimos a curto, médio e longo prazo são apenas subconjuntos desse mercado mais amplo, em que têm um mero papel subsidiário e dependente, apesar de, do ponto de vista mais popular, o mercado de crédito ser o mais visível e evidente.

Quando as taxas de juros são livres, elas cumprem satisfatoriamente o papel de sinalizar o volume ótimo de investimentos – e, portanto, de formação de capital – em cada momento do tempo, o que impede o surgimento das flutuações cíclicas e mantém a economia operando permanentemente em uma tendência em direção ao equilíbrio nos processos de mercado que caracterizam a concepção austríaca.

Logo, as flutuações cíclicas são provocadas por fatores alheios aos mercados, como as manipulações das taxas de juros levadas a efeito pelos bancos centrais. A teoria keynesiana, ao sustentar que o problema do desemprego deve ser solucionado mediante a concessão de “crédito barato” – isto é, pela prática de se reduzir artificialmente as taxas de juros através de decretos ou, como é mais comum, por meio de injeções de moeda na economia – ignora que os investimentos assim fabricados não são lastreados em poupança, mas em pseudo ou falsa poupança – ou seja, em uma simulação – e não na renúncia, no sacrifício do consumo presente, no esforço da frugalidade.

Com efeito, a queda artificial da taxa de juros produz os mesmos efeitos perniciosos que o estabelecimento de qualquer preço máximo: diminui a oferta de poupança e aumenta a demanda de investimentos, criando um excedente artificial de demanda sobre a oferta, que é “coberto” pela emissão de moeda, isto é, de falsa poupança. Cria-se, assim, uma euforia inicial, com todas as características de má alocação de recursos, em que sobem os preços dos produtos, bem como a demanda de trabalho e os lucros naqueles setores mais beneficiados pela “queda” das taxas de juros, isto é, nos setores produtores de bens mais afastados do consumo final.

O problema é que, sendo artificialmente induzido – por não ser fundamentado em um crescimento real da poupança – este processo tem um componente endógeno que o torna auto-reversivo: após o boom inicial, os retornos nos estágios de produção mais próximos ao consumo aumentam, enquanto os retornos nos estágios inicialmente favorecidos, aqueles mais afastados do consumo, diminuem, o que provoca o redimensionamento da estrutura de capital da economia, processada mediante uma realocação de recursos que, a partir de agora, buscará os setores menos intensivos em capital. Haverá, portanto, perdas e desemprego, que serão maiores exatamente naqueles setores que se haviam artificialmente expandido na fase inicial. Eis, na concepção austríaca, a origem dos ciclos econômicos: as expansões monetárias, ao reduzirem os juros e criarem falsa poupança, provocam desproporcionalidades na produção de bens de capital, que se manifestam nas depressões, na medida em que elas provocam superprodução em alguns setores e subprodução em outros, em um processo cíclico.

Examinemos um pouco mais de perto a maneira como a teoria econômica austríaca enxerga o capital, essa variável tão importante quão pouco compreendida.

 

O conceito de capital

Capital e bem de capital são conceitos distintos, sob o ponto de vista econômico. O capital é o valor, calculado a preços de mercado, dos bens de capital, sendo a taxa de juros o fator de desconto. O conceito de capital da Escola Austríaca é, portanto, abstrato, uma ferramenta de cálculo econômico, isto é, uma estimativa subjetiva sobre os valores esperados dos bens de capital no futuro.

Em uma economia socialista, em que não existem mercados nem tampouco preços de mercado, mesmo que existam bens de capital, não faz sentido se falar em capital. É também impossível calcular custos e benefícios corretamente, ou seja, realizar o cálculo econômico, porque, sem liberdade para garantir a existência da função empresarial e sem mercados livres, é impossível  conhecer as coordenadas – horizontal e vertical – dos diferentes estágios do processo produtivo, o que provoca uma descoordenação generalizada, que acaba por fazer ruir todo o sistema. No processo de coordenação intertemporal existe uma variável de importância fundamental: o preço dos bens presentes relativamente aos bens futuros, ou taxa de juros, que coordena consumo, poupança e investimento.

A chamada Teoria do Capital foi objeto de extensos tratados e análises, desde que a economia passou a ser sistematicamente estudada como ciência até os anos trinta do século XX. O objetivo desta seção não é o de esmiuçar todas as suas vertentes, mas apenas apresentar a perspectiva da Escola Austríaca, no que se refere a alguns conceitos fundamentais.

É importante levarmos em conta que a análise austríaca do capital encaixa-se necessariamente na visão do funcionamento dos mercados como processos de descoberta. O mesmo pode ser dito, por sinal, da Teoria Monetária e da Teoria dos Ciclos da Escola Austríaca.

Sir John Hicks – um dos grandes economistas do século XX, que foi um neoclássico na juventude, deixou-se arrebatar pela tentação construtivista do keynesianismo posteriormente e, em seus anos mais avançados, aproximou-se em muitos aspectos dos economistas austríacos – agrupou os diversos pontos de vista sobre o capital em duas amplas correntes. De um lado, há os materialistas, que vêm o estoque de capital como um conjunto de bens físicos, como máquinas, equipamentos, construções, instalações, etc., o que significa que consideram possível agregar esses ativos e proceder, assim, à medição do “volume de capital” da economia. De acordo com esta visão, duas economias que possuam estoques de capital idênticos em termos físicos, têm também o mesmo “volume de capital”. Trata-se, como podemos perceber, de uma concepção de capital holística sob o ponto de vista filosófico que, aplicada à economia, resulta em uma abordagem essencialmente macroeconômica.

De outro lado, há os fundistas, que, ao invés de enxergarem o estoque de capital simplesmente como um volume de capital físico, vêem-no como um somatório de valores, isto é, como um fundo, formado pelos fluxos esperados de rendimentos futuros proporcionados pelo capital. Em outras palavras, os fundistas, como Irving Fisher, definem capital como todos os ativos que têm capacidade de gerar fluxos de rendimentos para os seus proprietários ao longo do tempo e valor do capital como o valor atual, ou fundo, associado a esses fluxos.

A noção de capital como um fundo foi inicialmente desenvolvida por John Bates Clark e bastante utilizada pelo Professor Frank Knight, sendo vigorosamente criticada tanto por Böhm-Bawerk como por Hayek que, em debate com Knight, criticou a noção de capital simplesmente como um fundo de valor, ou seja, como uma medida independente dos bens que compõem o estoque de capital. No entanto, um dos elementos essenciais da teoria böhm-bawerkiana do capital é a noção de fundo de subsistência, que incorpora o ponto de vista de que os agentes econômicos, ao escolherem entre processos de produção de durações diferentes, avaliam os sacrifícios futuros implícitos em cada um desses processos, em termos de abstenção de consumo imediato. Um fator de grande importância nessas avaliações é o tamanho do estoque de capital disponível, por sua influência sobre o desconforto ou insatisfação associado a cada um dos necessários períodos de espera. O conceito de fundo de subsistência, além de constituir-se em um dos elementos básicos da teoria de Böhm-Bawerk, representa o que existe de “austríaco” em seu pensamento, a despeito de suas concessões às teorias que associam a taxa de juros à “produtividade” do capital.

A Teoria Austríaca do Capital, todavia, não pode ser enquadrada nem como materialista, nem como fundista: ela rejeita a visão física do capital que caracteriza os materialistas com base na tese de que, sendo heterogêneo o capital, não é possível somar suas unidades e, embora seja mais receptiva à abordagem fundista, pelo fato desta reconhecer que a natureza dos bens de capital está intimamente demarcada pela valoração – isto é, pelas expectativas quanto aos futuros planos de produção – nega a possibilidade de somar conjuntamente as correntes de produção futura, de modo a obter-se uma medida do estoque de capital de uma economia.

A questão da dificuldade de encontrar-se uma unidade de medida para o capital, que seja invariante às mudanças de preços relativos, tem sido discutida com freqüência na denominada “controvérsia do capital”, inclusive por economistas não alinhados com a Escola Austríaca. Mas existe outra crítica – levantada pelos austríacos – bastante relevante e que tem sido negligenciada pelas análises convencionais: não se pode deixar de lado o fato de que os planos individuais que compõem o processo de mercado podem ser incompatíveis em um determinado momento. Um exemplo simples esclarece esta importante crítica: suponhamos que o indivíduo A construa uma casa (bem de capital), com a intenção de nela residir com sua família e que o indivíduo B construa uma bomba (bem de capital), com o intuito de destruir a casa de A. Este último espera receber um fluxo de serviços proporcionados pela casa, aos quais atribui um determinado valor, ao passo que o B conta com um fluxo de serviços destrutivos, aos quais também atribui um determinado valor (suponhamos que B seja, por exemplo, um terrorista). Este exemplo mostra que há situações – e são muitas, no mundo real – em que não podemos somar ao mesmo tempo dois (ou mais) fluxos de serviços futuros, pelo simples fato de que eles são mutuamente exclusivos, o que nos levaria a superestimar o total. Observemos que, na medida em que os planos individuais não são perfeitamente coordenados, torna-se impossível medir consistentemente o capital.

A diferença entre as análises convencional e austríaca do capital é que, enquanto a primeira recorre a construções matemáticas da realidade econômica, o que a leva a apelar para “índices” que procuram refletir a “quantidade de capital”, a segunda trabalha com um conceito de capital que identifica os bens de capital como objetos direcionados para atender a propósitos individuais específicos, formulados pelos agentes econômicos, sem nenhuma obrigação ou necessidade de medir o estoque de capital da nação.

O ponto central da visão austríaca, portanto, é que ela não vê o capital como um estoque homogêneo, mas como uma estrutura interligada, composta por um número muito grande de bens de capital. Hayek, por exemplo, enxerga a produção como uma série de estágios, começando pelos bens de consumo final (bens de primeira ordem, na nomenclatura de Menger e Mises) e estendendo-se para os estágios sistemática e sucessivamente mais afastados do consumo final (bens de ordens superiores). Em outras palavras, o capital é uma estrutura diversificada de elementos heterogêneos e complementares, utilizados nos diversos estágios da produção.

Os bens de capital, em geral, são específicos (assim como o trabalho e a terra) a determinados estágios da produção. Por exemplo, uma ferramenta utilizada em uma fábrica de pianos não pode ser combinada aleatoriamente com um trator usado em uma fazenda, para produzir um terceiro produto. Para a produção dos bens de primeira ordem, torna-se necessária toda uma série de investimentos complementares em cadeia: o aço produzido em uma usina entra no estágio produtivo seguinte como um insumo, para gerar outro bem; este novo produto, por sua vez, será utilizado como um insumo no estágio seguinte e assim sucessivamente, até que, no estágio final, é produzido um bem de primeira ordem.

Por isso, os investimentos feitos nos diversos estágios da produção são complementares entre si, pois são partes integrantes da estrutura de capital geral, necessária para que se efetue a produção de bens de consumo final. Assim, um conjunto de bens não utilizáveis para consumo final não elevará necessariamente a produção final. Os investimentos devem ajustar-se à estrutura de capital completa (até o estágio do consumo), para que façam parte da produção final do consumo. Quando os investimentos não se integram nessa estrutura, tornam-se maus investimentos (malinvestments), uma vez que gerarão perdas.

É importante observar que a composição da estrutura de capital pode se alterar com as circunstâncias; estas tanto transformam bons investimentos anteriores em maus negócios, quanto proporcionam novas oportunidades de investimentos. Isto significa que o capital não se mantém intacto: a rigor, somente quando existem mercados livres, em que os preços relativos representem a escassez dos diversos bens de capital existentes, é que a estrutura de capital pode teoricamente estar integrada como um todo.

Ludwig Lachmann, um economista austríaco que sempre enfatizou bastante o subjetivismo, contudo, sustentava que, devido à descoordenação de planos que caracterizam sua visão do processo de mercado, a estrutura de capital jamais pode estar completamente integrada. Para ele, em um mundo marcado pelo desequilíbrio, os empreendedores estão continuamente reagrupando suas combinações de capital, em decorrência das diversas variações, correntes e esperadas, que estão sempre ocorrendo, tanto no lado dos custos, como no do mercado.

Eis, em síntese, um resumo da Teoria Austríaca do Capital, que foi integrada por Mises, em 1912, com sua Teoria da Moeda e do Crédito, formando a base para o entendimento correto dos fenômenos da inflação, do desemprego e dos ciclos econômicos.

 

As dimensões do capital

William Stanley Jevons foi quem primeiro introduziu explicitamente o fator tempo na teoria da produção, ao observar que os investimentos podem ser feitos de duas maneiras: a primeira com os recursos sendo empregados em um ponto específico do tempo e os seus retornos sendo obtidos em um período de tempo (point input/continuous output) e a segunda com os recursos sendo empregados ao longo de um período de tempo e com os recursos sendo obtidos em um ponto do tempo (continuous input/point output). O corte de uma árvore enquadra-se no primeiro caso e a construção de uma bomba se encaixa no segundo. Mas, naturalmente, existem bens híbridos em diversos graus (continuous input/continuous output).

A ideia de roundaboutness – o tempo de produção ou tempo para produzir capital – decorre tanto do tempo gasto para produzir o bem de capital como da própria durabilidade do capital.  A receita da venda de um bem final em um dado momento é igual ao valor atual dos inputs usados desde algum instante de tempo no passado até o momento que se está considerando, sendo o fator de desconto, naturalmente, a taxa de juros. Os processos de produção indiretos podem ser analisados sob dois aspectos.

O primeiro é o da durabilidade do capital fixo. Nesta definição de capital, considera-se que o tempo é necessário tão somente para utilizar o capital, e não para produzi-lo. Neste caso, então, o período relevante é a expectativa de vida operacional do capital. Sendo assim, um investimento novo será mantido enquanto o valor presente da receita líquida esperada da venda futura dos bens finais for maior do que o valor do capital; logo, o novo investimento cessará quando, para uma dada taxa de juros, o valor presente do capital (que até então era menor), passar a ser igual ao valor daquela receita, o que ocorrerá em algum ponto no futuro. A partir daí, o valor do capital ultrapassaria o da receita, o que desaconselharia a continuação do investimento.

O segundo combina o período de produção com a durabilidade. Esta conceituação não é mutuamente exclusiva em relação à anterior: aquela requer a hipótese de que o tempo é usado para produzir uma máquina que, então, gera um produto instantaneamente, enquanto esta requer a hipótese de que as máquinas são adquiridas instantaneamente e que os retornos das vendas são acumulados durante certo número de períodos futuros (durabilidade). Claramente, trata-se de casos especiais que, em geral, podem ser mesclados.

Numa situação teórica em que a acumulação e a estrutura de capital fossem ótimas, esse equilíbrio se refletiria na igualdade entre o valor presente agregado dos inputs passados e o valor presente agregado líquido dos inputsfuturos.

 

A intensidade do capital

Definimos roundaboutness em termos de tempo, seja o período de produção e seu equivalente, o período no qual se torna necessária a provisão de working capital, seja em termos de durabilidade, seja como uma combinação de ambos. Böhm-Bawerk introduziu um conceito semelhante, o de intensidade do capital, relacionado ao tempo gasto para produzir capital (ou para utilizar working capital). Esse conceito é expresso pelo período médio de produção.

A intensidade do capital é calculada como a soma agregada dos períodos de investimento, em que os inputs são aplicados a uma taxa constante e uniforme, dividida pelo número total de inputs. Por exemplo, para um período de produção de quatro anos, em que são aplicados x inputs em cada ano, o período médio de produção, p, é: p = (4 + 3 + 2 + 1) / 4 = 2,5, indicando que os inputs permaneceriam no processo de produção, em média, por dois anos e meio. Embora não seja aparente na definição de intensidade de capital, o papel da taxa de juros, r, pode ser visto se observarmos que a equação anterior pode ser obtida de;

x (1 + 4r) + x (1 + 3r) + x (1 + 2r) + x (1 + r) = 4x (1 + r p)

Resolvendo para p, a variável r desaparece porque é aplicada a uma taxa simples. Para uma taxa composta, teríamos: x (1 + 4r)4 + x (1+3r)3 + x (1+2r)2 + x (1+r) = 4x (1+r) p, que nada mais é do que a definição de intensidade do capital sugerida por Wicksell. Para cada nível da taxa de juros e de inputs aplicados anualmente, encontra-se um valor para o período médio de produção.

Evidentemente, pode-se combinar o período de produção com a durabilidade, ou seja, definir os processos indiretos na forma bidimensional (as duas dimensões sendo, logicamente, o período de produção e a durabilidade), levando em conta as magnitudes dos inputs, dos outputs, o período de gestação, a durabilidade do capital e a taxa de juros.

 

Efeitos de variações na taxa de juros

Os efeitos de um aumento na taxa de juros são o de aumentar a relação capital/trabalho e o de diminuir a relação capital/produto. Qualquer argumento no sentido de que esses resultados são opostos aos da teoria neoclássica do capital (em que, quando a taxa de juros aumenta, o trabalho substitui o capital) deve ser refutado, porque tal substituição ocorre com um aumento no preço relativo do capital. No mundo neoclássico, atemporal e meramente teórico, variações na taxa de juros são irrelevantes para os preços relativos dos fatores, qualquer que seja o capital existente.  Aumentos na taxa de juros reduzem também as unidades de trabalho. Em outras palavras, um aumento na taxa de juros diminui tanto o valor atual dos rendimentos futuros como (consequentemente) o número de unidades de trabalho. Não há redução física no número de inputs ou outputs, mas, para acomodar o retorno agora maior para os rentiers, os detentores de capital devem experimentar uma perda e os trabalhadores uma redução salarial. A primeira perda é bem conhecida no mundo prático dos negócios. Com relação à segunda, se houver viscosidade salarial que impeça os ajustamentos necessários, haverá desemprego. Quedas na taxa de juros, naturalmente, conduzem a resultados simétricos.

 

III. Teoria do capital e macroeconomia

No mundo prático dos negócios, a função dos gastos em investimentos é a de prover o capital necessário para aumentar a oferta de bens de consumo no futuro. No entanto, Keynes, desconhecendo a Teoria  Austríaca do Capital, enfocou o investimento como um componente da demanda agregada, que deveria ser usado para gerar empregos direta ou indiretamente, via “efeito multiplicador”. Por isso, ao deixar de lado o verdadeiro propósito funcional do investimento para montar modelos de curto prazo para explicar o emprego e a renda agregados, a macroeconomia negligencia um aspecto enormemente importante, que é o estudo dos determinantes das mudanças nos níveis e na composição da produção através do tempo.

Hayek acreditava que a estratégia keynesiana de seguir políticas monetárias expansionistas para atingir o pleno emprego podia ser atribuída à ignorância de Keynes com respeito à Teoria Austríaca do Capital, pois apenas isto explicaria a idéia de que o determinante principal do investimento seria a demanda de bens de consumo.   Hayek utilizou a analogia com um rio para explicar as relações entre investimento, bens finais e emprego: o rio é o fluxo contínuo de produção capitalista, que pode variar independentemente do nível da maré (vendas de bens finais) na sua foz. Na sua cabeceira, o volume de água é afetado pelos fluxos dos afluentes (mudanças nos investimentos, novos e de reposição), que são por sua vez determinados pelos preços relativos dos fatores, pelas mudanças tecnológicas e pela taxa de juros.

Em nenhum ponto do tempo existe uma correspondência entre mudanças no volume de água da cabeceira e a venda de bens finais, nem entre a venda de bens finais e o nível de emprego. Mais ainda, é provável que em uma recessão o revival do consumo final seja mais um efeito  do que uma causa de um revival no volume da cabeceira do rio (estágios de ordens mais elevadas). Quando os recursos estão plenamente empregados, existe um trade off óbvio entre a provisão de bens para consumo corrente e a provisão de bens para consumo futuro. O crescimento econômico só pode ocorrer se houver um sacrifício no presente. Qualquer tentativa de forçar o crescimento através da expansão monetária trará implicações inflacionárias e desemprego.

Portanto, a essência da visão austríaca do capital é que ele não é fixo, mas destruído no processo de criação do produto. Assim, definimos capital como um estoque de fatores não permanentes de produção, que gera um fluxo de renda durante um período finito de tempo.

Para ilustrar como as divergências entre a concepção austríaca do capital e a concepção neoclássica levaram naturalmente, entre outros efeitos, a tratamentos diferentes dos problemas macroeconômicos, voltemos ao debate entre Böhm-Bawerk e John Bates Clark, que prosseguiu anos depois com a disputa entre Hayek e Knight, entre 1933 e 1936.

Para Böhm-Bawerk, como vimos, o processo produtivo envolve a passagem do tempo, em que o capital circulante é transformado, estágio após estágio, na estrutura de produção, até transformar-se em bens de consumo final (bens de primeira ordem). Cada bem de capital, dentro da estrutura de produção, difere dos demais no que diz respeito ao tempo em que entra no processo produtivo para a elaboração do bem final. E a taxa de juros é explicada pelas preferências intertemporais.

Já Clark via o capital como um fundo permanente gerador de fluxos contínuos de renda e os bens de capital como o capital físico, isto é, máquinas, equipamentos, construções e instalações, que se vai repondo conforme é depreciado. Sua análise do processo de produção não dá importância ao fator tempo e a taxa de juros é determinada pela produtividade marginal do fundo, variando inversamente com o valor do estoque de capital. Clark rejeitou a noção de que a produção envolve espera. Para ele, o consumo presente seria fruto do trabalho presente, alheio a considerações de preferências intertemporais: por exemplo, no caso de uma plantação de árvores que levem quinze anos para atingir o período de corte para a produção de madeira, se em cada período se abatesse 15% do total de árvores e ao mesmo tempo se substituísse cada árvore abatida por uma nova muda, então em cada período a produção seria instantânea e igual a 15% do total de árvores, sem necessidade de se esperar quinze anos e sem, portanto, os períodos de produção bawerkianos.

Como se vê, as duas visões são inconciliáveis.

Böhm-Bawerk contra-argumentou que, embora não haja necessidade de espera para comprar-se um bem acabado, esse mesmo bem foi necessariamente produzido por algum trabalho desenvolvido no passado. É evidente que o consumidor desse bem não teve que esperar para comprá-lo, mas é também patente que o período de espera, forçosamente, já ocorreu no processo de produção. Além disso, rejeitou a visão fundista do capital, referindo-se a ela como uma geléia, ou seja, como um todo holístico e homogêneo, sem qualquer vínculo com os processos de produção existentes no mundo real.

O debate repetiu-se depois, dessa vez entre Knight e Hayek, que publicou, em 1941, a primeira edição de The Pure Theory of Capital. No entanto, com o sucesso das ideias defendidas por Keynes na General Theory, publicada em 1936, aconteceram dois fenômenos: o primeiro foi a ascensão da macroeconomia, com seus modelos agregados de curto prazo em que o estoque de capital da economia é considerado “constante”. E o segundo foi o desinteresse pelas obras dos economistas da Escola Austríaca, que até então eram estudados nos cursos de economia no mundo inteiro. Esse desinteresse prevaleceu mesmo após Hayek ter sido contemplado com o Nobel em 1974 e pode-se dizer que prevalece até hoje.

O resultado foi terrível: os economistas abandonaram o estudo da Teoria do Capital, com exceção de um breve período – os anos 50 e 60 do século passado -, em que, após a publicação de um artigo com críticas à concepção neoclássica do capital (The Production Function and the Theory of Capital) pela economista Joan Robinson, surgiu um debate entre um grupo de economistas de esquerda, que incluía a própria Robinson e, entre outros, os economistas italianos Piero Sraffa e Luigi Lodovico Pasinetti e, de outro, neoclássicos como Paul Samuelson e Robert Solow, que ficou conhecido como “a controvérsia do capital”. Entretanto, o debate já não contava com economistas austríacos e, por isso mesmo, deixou de considerar muitos fenômenos importantes que dizem respeito ao capital, principalmente os conceitos de tempo e de estrutura de produção.

As divergências entre os economistas austríacos e seus colegas neoclássicos decorrem, entre outros, do fato de que a teoria neoclássica estuda a economia analisando situações de equilíbrio, enquanto os austríacos seguem a concepção dos mercados como processos que tendem ao equilíbrio, mas que não se encontram, no dia a dia, em situações de equilíbrio. Ora, se existisse equilíbrio na economia do mundo real (que é bem diferente daquele idealizado pela economia teórica), seriam dispensáveis quaisquer considerações sobre o fator tempo, porque haveria perfeita sincronia, no sentido de que quando um operário retornasse ao seu trabalho no início de sua jornada, bastaria que ele pusesse a sua ferramenta para funcionar para que o produto, que deixara em fase de elaboração no final do expediente da véspera, ficasse imediatamente pronto…

Mas a realidade é que, na ausência de equilíbrio que caracteriza a economia do mundo real o fator tempo não pode deixar de ser levado em consideração e não se pode escapar da espera e tampouco dos problemas de existência ou ausência de coordenação entre os diferentes estágios da estrutura de produção.

No mundo real não há lugar para a concepção do capital como um grande agregado, homogêneo e flexível como uma geléia. E também não há “equilíbrio”, “macroeconomia” ou “PIB”, mas sim mercados em permanentes mutações e planos de ação individuais ao longo do tempo.

Ubiratan Jorge Iorio
Ubiratan Jorge Iorio
Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.
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