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Como a inflação está destruindo as estradas “privatizadas”

PONTE INTERDITADA - Divisa dos estados do Paraná e São Paulo - 09/01/2010 - A ponte sobre o Rio Pardinho, no km 569 da BR-116 Sul, na divisa entre os estados de São Paulo e Paraná, foi interditada para manutenção. A cabeceira da ponte estava se soltando da pista. Informações preliminares dão conta de que o problema foi detectado por um motorista que passava pelo trecho e comunicou o fato à OHL, empresa que administra o pedágio da Rodovia Regis Bitencourt. Técnicos concluíram que seria necessário refazer a ligação da ponte com a rodovia. O trânsito foi desviado para a outra pista. Foto: Daniel Derevecki / AGP / Agência de Notícias Gazeta do Povo.

Como já é amplamente sabido, há hoje no Brasil dois modelos de concessão de estradas para a iniciativa privada: um é chamado de “modelo tucano”, no qual o governo vende a estrada para a concessionária que pagar mais no leilão de licitação, e o outro é o “modelo petista”, no qual o governo entrega a estrada para a concessionária que se comprometer a cobrar os menores pedágios.

Em ambos os casos, o governo de modo algum se retira do setor.  É ele quem vai regular os preços dos pedágios (leia-se, autorizar os aumentos) e ver se os investimentos previstos no contrato estão sendo cumpridos.

A principal diferença entre os dois modelos está nos preços dos pedágios: enquanto que no modelo tucano os pedágios são mais caros — consequência direta do fato de a concessionária ter desembolsado uma quantia vultosa para adquirir a concessão daquele trecho de estrada (pagamento esse chamado de luvas) —, o modelo petista se jacta de ter “pedágios baratinhos”, uma vez que a concessionária nada teve de pagar para adquirir aquele trecho de estrada.  A empresa vencedora, convém enfatizar, não paga nada para arrematar a concessão; ela apenas garante por contrato qual será seu preço cobrado por pedágio.

É óbvio que, nos dois casos, não houve uma genuína desestatização do setor, uma vez que o estado continua presente em ambos os modelos, fazendo justamente a única coisa que sabe fazer bem: ditar ordens e criar regulamentações — por isso escrevi “privatização” entre aspas: o que existe, em ambos os modelos, é uma concessão de monopólio.  O estado garante contratualmente um monopólio por tempo determinado para a empresa concessionária, ao fim do qual a estrada poderá ser retomada pelo governo.

Em uma postagem no blog, em agosto de 2009, escrevi que o modelo petista tinha potencial para ser melhor que o tucano, uma vez que, como se tratava de uma concessão monopolista de um serviço que possui uma demanda enorme e cuja oferta é um monopólio garantido pelo estado — ou seja, é praticamente impossível que a empresa que o executa tenha prejuízo —, a liberdade de preços para esse serviço (que é o que teoricamente ocorre no modelo tucano) não necessariamente se traduziria em melhores serviços.  Afinal, um monopólio protegido pelo estado, que em si já é algo pernicioso, não será necessariamente melhor se ele tiver a liberdade de escolher seus preços.  Ao contrário, poderá até ser pior.

Por outro lado, comentei também que era verdade o fato de que, com as tarifas dos pedágios congeladas por contrato, a receita da empresa poderia ficar “travada”, podendo impedir investimentos futuros na melhoria ou na ampliação da estrada — ou até mesmo impossibilitar correções pontuais no asfalto.  Porém, afirmei que as concessionárias que entraram nesse esquema obviamente haviam feito seus cálculos antes de irem ao leilão.  Se elas deram aquele valor para a tarifa, é porque sabiam que era possível cumpri-lo

Pois bem.  Eis o que o jornal O Estado de S. Paulo comenta em seu editorial da semana passada.  Vale a pena ler tudo:

O barato está saindo caro demais na administração e manutenção das Rodovias Fernão Dias e Régis Bittencourt — os chamados corredores do Mercosul, que se colocam entre as primeiras estradas brasileiras em valor de carga transportada.  Dois anos após o governo federal ter concedido as estradas a operadores privados, pelo pedágio mais barato possível, elas estão longe de oferecer segurança a seus usuários.  Em alguns trechos, toras escoram partes das pistas, as encostas cedem, ameaçando arrastar as pistas de rolamento e abalando estruturas de viadutos.  Automóveis e caminhões caem em buracos onde deveria haver uma pista. Os desvios da Rodovia Fernão Dias aumentavam, em março, em 70 quilômetros a viagem entre São Paulo e Belo Horizonte.

As expectativas dos motoristas que apostavam que a Rodovia Régis Bittencourt melhoraria com a privatização foram frustradas.  Ela continua merecendo o título de “estrada da morte”.  Seu principal gargalo, na Serra do Cafezal, é um funil de 30,5 quilômetros onde acontecem 46% mais acidentes do que no restante da rodovia.  Mas esse trecho não será duplicado tão cedo.

Em fevereiro, o governo federal e a concessionária responsável pela rodovia anunciaram o adiamento da duplicação do trecho da Serra do Cafezal para 2013.  Não tendo cumprido obrigação contratual, a concessionária, que assumiu a estrada em 2008 em troca da exploração de pedágios por 25 anos, não poderá aumentar o valor do pedágio. Triste consolo para os usuários, que continuarão trafegando numa estrada ruim e perigosa.

Em 2008, o governo federal comemorou o sucesso da segunda etapa do Programa de Concessões de Rodovias Federais, baseada no pedágio mais barato possível.  Numa crítica direta ao governo do Estado de São Paulo, as autoridades federais reviram os cálculos de retorno dos investimentos das empresas concessionárias.  Argumentavam que os cálculos eram baseados em premissas antigas, como taxa de juro anual de até 25% e risco país de mil pontos, o que levava os consórcios a exigirem rentabilidade garantida de 12,8% — e pedágios caros.

A repercussão dos leilões de concessão das Rodovias Régis Bittencourt e Fernão Dias foi estrondosa.  Foram oferecidos deságios de 46% e de 65%, respectivamente, a tarifa mínima fixada pelo governo.  Com isso, os motoristas que percorressem a Fernão Dias deixariam em suas oito praças de pedágio apenas R$ 8,00, o que equivalia a apenas 13% da tarifa — calculada por quilômetro — que vigorava na Rodovia dos Bandeirantes, privatizada pelo governo paulista há 12 anos.

A concessionária espanhola OHL, que passou a administrar as Rodovias Fernão Dias e Régis Bittencourt, não conseguiu fazer milagres.  As estradas continuam em estado precário e os prazos para a solução dos seus principais problemas são longos demais.

Mas, ainda que o preço baixo da tarifa não ofereça o fôlego necessário para que a concessionária invista na recuperação dos corredores degradados, era de esperar que o empréstimo de R$ 756 milhões concedido pelo BNDES à concessionária, há um ano, fosse suficiente para, pelo menos, custear obras preventivas que evitassem, na época de chuvas, os estragos que provocam extensas interrupções nesses dois corredores de grande importância para a economia nacional.

Não foi o que aconteceu. Pelo contrato, nos primeiros seis meses de concessão da Fernão Dias, por exemplo, a concessionária deveria cumprir uma lista de melhorias que ia da recuperação do pavimento, de passarelas e de proteções de pontes e viadutos, até a retirada do mato e melhoria da sinalização. Apesar das sanções previstas, como multas, proibição de cobrança de pedágio e até a perda da concessão, o cronograma de obras não vem sendo cumprido, como mostrou reportagem do Estado, publicada no domingo. Os elevados índices de acidentes e mortes e o péssimo estado de conservação em que se encontram são o testemunho do fracasso do modelo federal de privatização de rodovias.

Ou seja: no início — ainda em 2008 —, a coisa pareceu bonita.  Com o passar do tempo, a situação foi degringolando.  Há relatos de que os trechos da BR-101 e da BR-393 que foram “privatizados” seguindo-se o modelo petista também estão em situação infausta, com trechos esburacados e sem a prometida duplicação.  Os pedágios baratos não se converteram em serviços de qualidade, mesmo com empréstimos do BNDES.  Assim como em qualquer estrada estatal, você continua destruindo a suspensão do seu carro — só que agora pagando um pedágio baratinho.

Alguns mais apressados poderiam dizer que as concessionárias são incompetentes (ou desonestas) e estão dando o golpe, deixando de cumprir o que prometeram no contrato.  Não é uma hipótese realista.  Como explicadonesse artigo sobre privatizações, os setores fortemente regulados pelo governo estão, ao contrário do apregoado pela teoria da captura, sob controle direto deste.  Ou seja: não são as empresas que mandam no governo; é o governo quem manda nas empresas.  E não é crível imaginar que em ano eleitoral o governo fosse permitir tamanho desleixo dessas empresas que estão diretamente sob seu poder.

Consequentemente, a explicação mais crível para essa deterioração das estradas está no fenômeno da inflação monetária — e sua consequência inevitável: a inflação de preços.

A teoria

Se você quer obter algo, você tem de estar disposto a pagar o preço necessário.  Trata-se de uma lei natural – ou seja, é uma questão da natureza humana – o fato de que um bem ou serviço irá ser ofertado apenas se ofertá-lo for algo lucrativo para o ofertante e, ao mesmo tempo, tão ou mais lucrativo que qualquer alternativa existente.  Se o preço for fixado abaixo desse ponto que torna a oferta do bem ou serviço lucrativa, então tal medida será equivalente a uma proibição da oferta.

Muitos economistas acreditam que aplicar controle de preços em monopólios genuínos – seja no setor elétrico, telefônico ou de saneamento, seja no setor rodoviário – seria uma exceção ao princípio de que o controle de preços reduz ou até mesmo inibe a oferta.  Muito pelo contrário: o que vai ocorrer nesse caso é uma excelente ilustração desse princípio.

Por exemplo, concentremo-nos no exemplo das estradas e o modelo petista de concessão.  Na ausência de inflação, esse controle de preço imposto aos pedágios é praticamente inócuo, pois não se está impondo preços que estejam abaixo dos preços de mercado (a empresa concessionária não seria tão boba assim).  Com efeito, é muito provável que os preços tenham sido fixados em um nível certamente maior do que aquele que prevaleceria em um ambiente de livre concorrência entre estradas (assunto a ser explorado no final do artigo).

Os preços são determinados nesse nível maior para que eles possam ser altos o suficiente para trazer boas taxas de lucro para o monopolista escolhido pelo governo, cujos custos de operação certamente também serão maiores do que os custos que ele praticaria em um ambiente de livre mercado, em que a livre entrada da concorrência está sempre obrigando a um corte de custos supérfluos.

Porém, quando esse controle de preços existe em conjunto com uma inflação de preços, então ele de fato começará a funcionar como um genuíno controle de preços.  Isso ocorre porque a inflação eleva os custos operacionais (custos dos salários, dos investimentos, das obras de ampliação, das obras de reparação, dos maquinários etc.) ao mesmo tempo em que não há um aumento das receitas, pois a agência reguladora não permite que haja aumento nos pedágios – ou permite um aumento que será insuficiente para cobrir o aumento dos custos.  Dessa forma, mesmo o gerenciamento de um monopólio como as rodovias torna-se algo não lucrativo.

De início, a concessionária irá parar de investir em ampliações, duplicações ou mesmo em traçados que sejam mais curtos (o que implicaria, por exemplo, dinamitar montanhas para abrir túneis), pois sua reduzida lucratividade impede que haja um maior investimento nos bens de capital necessários para tais obras.

Com o tempo, quando essa perda de lucratividade tornar-se permanente – isto é, quando a concessionária perceber que realmente não poderá aumentar seus preços, ao mesmo tempo em que a inflação segue incontida -, será virtualmente impossível substituir equipamentos gastos por equipamentos novos.  Consequentemente, alguns buracos passarão a ser recapeados de maneira mais tosca e outros simplesmente serão ignorados.  O asfalto ficará irregular e mais perigoso, o mato irá crescer e cobrir as placas, as placas ficarão enferrujadas e não serão trocadas e os acidentes fatais aumentarão.  No extremo, a estrada ficará inviável.  E tudo por causa do efeito da inflação sobre o controle de preços.

É claro que é improvável que cheguemos a esse cenário extremo no Brasil.  O governo obviamente irá liberar aumentos na tarifa.  A questão é saber se esses aumentos ocorrerão em compasso com a inflação.  Caso não ocorram, o declínio na infraestrutura das estradas dar-se-á de forma lenta, porém perceptível.  Com efeito, é exatamente isso que já está acontecendo.

A realidade

Foi em outubro de 2007 que ocorreram as “privatizações” petistas — o que significa que foi nessa data que os preços dos pedágios foram acertados.

Com isso em mente, vejamos como variaram os principais índices monetários e de inflação entre outubro de 2007 e março de 2010.

Outubro de 2007

Março de 2010

Variação % no período

Base Monetária

124.345

161.879

30

M1

179.277

229.781

28

M2

722.310

1.145.311

58,6

M3

1.569.569

2.198.327

40

 

Índices de inflação

Variação no período (outubro 2007 – março 2010)

IPCA

14,35%

IGP-DI

14,15%

INPC

15,35%

Observe que, na melhor das hipóteses, a inflação de preços trouxe um aumento de custos de mais de 14% nesse período.  E, pelo que se sabe, não houve um reajuste de 14% nos pedágios — e olha que estamos ignorando o quão naturalmente imprecisos são esses índices de inflação, uma vez que atribuem pesos diferentes a produtos diferentes, deixando de detectar vários aumentos em bens e serviços de determinadas áreas.  Ou seja, na prática, a inflação de preços pode ter sido ainda maior.

Os estragos que tal inflação provocou na infraestrutura das estradas ainda não atingiram níveis catastróficos.  Porém, já existem todos os sinais de que eles realmente estão ocorrendo — e muito cedo, até; apenas dois anos.  Caso não haja um reajuste de tarifas, a situação tende a se agravar continuamente.

Ainda naquele texto do blog, eu havia dito que, quando preciso, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) provavelmente iria liberar os aumentos necessários.  Entretanto, devo confessar que fui ingênuo.  É óbvio que, em anos eleitorais, as chances disso ser autorizado pelo governo são raquíticas — embora, em tese, as agências reguladoras sejam independentes, sabemos que há muito elas já foram aparelhadas pelo governo.

Logo, as concessionárias pouco ou nada podem fazer.

Sugestões

Por incrível que pareça, em termos de livre concorrência, o setor rodoviário é ainda mais complexo do que o setor elétrico e o setor de saneamento básico (para ver como seria possível uma genuína livre concorrência nesses dois setores, bem como em outros também considerados monopólios naturais, clique aqui).  Embora todos estes funcionem na base de contratos de precificação de longo de prazo, o surgimento de estradas concorrentes é bem mais oneroso e logisticamente complicado do que a instalação de cabeamentos elétricos e encanamentos subterrâneos.

Não parece ser viável o surgimento, ao menos no curto prazo, de estradas construídas por grupos privados para concorrer com as estradas já existentes.  As expectativas de retorno seriam baixas demais em relação a todo o custo de construção — afinal, construir (sem subsídios) uma nova estrada paralela à Fernão Dias ou à Via Dutra e esperar ter lucros em um prazo menor que dez anos não parece ser algo muito plausível.

Esse tema rodoviário, aliás, é tão complexo, que o professor Walter Block, que estuda o assunto há décadas, escreveu um livro de 450 páginas (veja a resenha aqui) e, humildemente, confessa que não tem todas as respostas.

Uma sugestão interessante seria permitir que consórcios do mundo inteiro pudessem vir explorar esse ramo, sendo que a construção de uma determinada estrada (por exemplo, uma concorrente da Via Dutra) seria dividida em trechos, com cada um desses trechos sendo construído e ficando sob a responsabilidade de um determinado consórcio, que obviamente poderia cobrar naquele trecho o preço que quisesse por seus pedágios.  Como um trecho está fisicamente ligado a outro trecho, o natural seria que um consórcio pressionasse o outro a nãoaumentar seus preços, pois isso poderia reduzir o fluxo de veículos e prejudicar a rentabilidade do negócio — e se os preços aumentassem, os usuários poderiam voltar para a Via Dutra.

Caso esse modelo seja inviável — isto é, caso não haja interesse de nenhum consórcio empreendê-lo —, então uma second best solution seria uma mescla dos modelos tucano e petista: a estrada seria dada ao invés de vendida (o que diminuiria substancialmente o custo das empresas) e os preços dos pedágios seriam livres para flutuar de acordo com a oferta e a demanda, subindo em situações de maior demanda e caindo em situações de menor — esse seria o arranjo que traria a maior lucratividade.

Desnecessário dizer que IPVA e CIDE teriam de ser abolidos, já que os “impostos” para a manutenção das estradas seriam os próprios pedágios.

Conclusão

O tão propagandeado modelo Dilma Rousseff de privatização parecia bom no início, mas está sendo destroçado pelo Banco Central.  Como estamos em ano eleitoral, e esse certamente será um tema explorado pela candidata, é improvável que sejam autorizados aumentos nos pedágios.  E mesmo que sejam, ainda levará algum tempo para que os investimentos sejam retomados e todas as falhas, corrigidas.  Mais ainda: nada impede que esse ciclo se reinicie, ceifando várias vidas em seu decorrer.

Leandro Roque
Leandro Roque
Leandro Roque é tradutor e estudioso de Economia Austríaca.
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