Friday, November 22, 2024
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Leis e justiça numa sociedade libertária (Concurso IMB)

Nota do IMB: o artigo a seguir faz parte do concurso de artigos promovidos pelo Instituto Mises Brasil.  As opiniões contidas nele não necessariamente representam as visões do Instituto e são de inteira responsabilidade de seu autor.

Muito freqüentemente vemos pessoas que aceitam os princípios liberais/libertários, reconhecendo neles uma elevada superioridade ética e econômica, não conseguirem conceber como leis e o serviço de justiça poderiam existir sem violar tais princípios. Estamos tão acostumados a leis impostas por um monopólio coercivo, que torna-se realmente difícil imaginar como elas poderiam existir, e principalmente, serem respeitadas, numa sociedade livre de coerção institucional.

Esse texto tem como propósito demonstrar que leis e justiça não só podem existir, como já existiram sem que alguma coerção precisasse ser iniciada para impô-las. Começarei citando exemplos históricos de sociedades que tinham leis e justiça não coercivas, explicando resumidamente como funcionavam, e em seguida detalharei como esse sistema não só poderia ser aplicado nas sociedades modernas, como também seria mais eficiente na elaboração de leis do que o monopólio estatal que temos hoje.

Irlanda e Islândia medievais

Tanto Islândia quanto Irlanda passaram séculos sob um sistema de Common Law onde as leis e julgamentos não eram impostos coercitivamente, mas ainda assim, eram majoritariamente respeitados. Descreverei rapidamente cada um dos casos. Para maiores informações, favor seguir os links no final do texto.

A Islândia começou a ser ocupada no final do século IX. Algumas décadas mais tarde, já no começo do século X, seus habitantes criaram o Althing, algo que pode ser comparado a um parlamento, composto por um número limitado de indivíduos chamados chieftans. Esse “parlamento” não tinha orçamento ou empregados.

Normalmente se reuniam apenas duas semanas por ano. Seus membros não só escreviam as leis, como também atuavam como advogados e representantes de seus clientes. É isso mesmo, os chieftans tinham clientes, não eleitores. Um cliente insatisfeito poderia mudar de chieftan, assim como hoje podemos trocar de advogado. Umchieftan sem clientes perderia não só sua remuneração, mas também sua influência. Outro detalhe interessante é que o posto de chieftan em si poderia ser vendido a qualquer momento. Embora tal posição naturalmente atraísse os mais ricos membros da sociedade, o poder de um chieftan era controlado pelo risco de perder todos os seus clientes para um outro chieftan.

No caso de disputa entre indivíduos, o acusador intimava o réu a um julgamento, para o qual cada uma das partes deveria escolher 18 juízes. Nesse primeiro momento, ao menos 30 juízes deveriam votar em uníssono. Se mais do que 6 juízes votassem em desacordo à maioria, o caso iria para um julgamento mais complexo, no qual os chieftans representantes de cada parte escolhiam os juízes.

Importante observar que ambas as partes concordavam formalmente em acatar o resultado final do julgamento. Havia portanto um contrato, que legitimaria, do ponto de vista da ética libertária, um eventual uso de força para garantir o cumprimento da decisão.

E o que aconteceria se o acusado não aceitasse ir a julgamento? No lugar de se utilizar de coerção para obrigar o acusado a responder judicialmente, o acusador tinha como opção requisitar aos chieftans que elegessem um corpo de juízes que poderia decidir por rotular o acusado como “fora-da-lei”. A consequência imediata de ser tachado de fora-da-lei era a perda completa da proteção legal. Se o indivíduo não quer colaborar com o sistema legal, esse mesmo sistema não é obrigado a protegê-lo de nenhuma agressão que ele venha a sofrer. Além disso, esse indivíduo teria sérias dificuldades em manter relações sociais – a ninguém agrada a idéia de interagir com pessoas que não aceitam responder judicialmente por seus atos. O poder persuasivo dessa ameaça de ostracismo era enorme, prova disso é o fato da Islândia ter passado quase três séculos sob esse regime.

O exemplo irlandês é ainda mais interessante, até porque durou muito mais. Por praticamente um milênio a sociedade irlandesa viveu livre de um sistema monopolizado de leis e justiça.

A Irlanda medieval era organizada em túatha (plural de túath), organizações de origem principalmente religiosa que tinham alguns aspectos semelhantes aos de um clube: um indivíduo poderia sair de uma túath e partir para outra com relativa facilidade. As próprias túatha podiam se fundir ou se fragmentar em diferentes túatha. Essastúatha eram regidas por reis. Esses “reis”, entretanto, não tinham o poder de taxar seus súditos à vontade, tampouco podiam elaborar leis. Eles serviam como líderes espirituais e militares, em caso de guerra. A elaboração das leis se dava principalmente pelas decisões de juristas profissionais, chamados brehons. As leis eram baseadas principalmente em tradições e costumes, assim como na religião.

Disputas judiciais eram resolvidas de maneira semelhante às da Islândia. Acusador e acusado entravam em acordo sobre quem seria o juiz de sua disputa. Se o acusado não aceitasse ser julgado ou não aceitasse as proposições de juízes do acusador, ele corria o risco de ser rotulado como um fora-da-lei. O sistema de ostracismo irlandês era um complexo esquema baseado em contratos chamados sureties, os quais não pretendo detalhar. Apenas confirmo que eram contratos voluntários que traziam reputação ao indivíduo quando respeitados, e poderiam levar ao ostracismo e expulsão da túath em caso de desrespeito.

Esse sistema irlandês durou até a invasão inglesa. Em outras palavras, durou até que foi violentamente substituído por um Estado estrangeiro.

O que provavelmente permitiu ao sistema irlandês durar muito mais do que o islandês foi a sua maior flexibilidade. Qualquer indivíduo poderia ser um brehon, e o número de túatha também era variável. No sistema islandês, o número de chieftans era limitado, o que garantia um certo oligopólio a esses chieftans.

Ambos os sistemas tinham importantes detalhes em comum. Primeiramente, não existiam crimes sem vítimas. Todo julgamento era resultado de uma disputa entre indivíduos. Não existiam prisões, toda punição se baseava em ressarcimento e indenização. As leis eram derivadas das tradições e costumes. E, sem dúvida, o elemento mais importante: o que garantia o respeito às leis não era uma ameaça de uso da força (coerção), e sim a ameaça de ser completamente ignorado pela sociedade e, principalmente, por todo o corpo jurídico que protegia os indivíduos de agressões de terceiros. Perceba que isso não é uma iniciação de coerção. Rotular e deixar de proteger alguém não viola de forma alguma a ética libertária.

Nota importante: nenhum desses dois países poderia ser considerado uma verdadeira sociedade libertária, ou sequer algo próximo. Embora o modelo de leis e justiça adotado por essas sociedades não fosse baseado num monopólio coercivo, não podemos esquecer que estamos falando de sociedades medievais. Atrocidades como escravidão e servidão eram comuns à época. Muitos indivíduos sequer tinham acesso aos sistemas jurídicos descritos acima. Resumindo, havia muitas injustiças nessas sociedades, assim como em qualquer sociedade medieval, mas ainda assim elas servem como exemplos históricos de que leis não dependem de coerção para serem aplicáveis.

Como isso poderia funcionar atualmente?

Uma sociedade capitalista depende fortemente de contratos. Numa sociedade libertária, onde leis não seriam impostas e a propriedade privada fosse respeitada, contratos seriam ainda mais frequentes e importantes. Esses contratos teriam um papel fundamental na organização da sociedade. Contratos de trabalho, de casamento, de prestação de serviços dos mais variados, e mesmo entre moradores e seus condomínios – entidades que seriam muito presentes em tal sociedade, já que constituem uma forma eficiente de se prover serviços de rede, tais como redes de transporte, água, esgoto, eletricidade etc. -, todos esses variados contratos por si sós já seriam uma forma de lei voluntária.

Para que um contrato formal tenha credibilidade, i.e., para que seja mais do que apenas um pedaço de papel ou bits num computador, é necessário que ao menos uma instituição jurídica reconheça esse contrato. Essa instituição – ou essas instituições – pode se responsabilizar pela resolução de eventuais disputas entre signatários de seus contratos, aplicando suas próprias leis. De um ponto de vista ético, tais instituições também poderiam se utilizar de coerção para fazer valer o contrato. Quem inicia a atitude criminosa é aquele que desrespeita um contrato estabelecido, e não aquele que garante tal respeito utilizando o mínimo de força necessário para tal.

Poderíamos ter instituições de justiça com o único propósito de estabelecer leis a seus signatários, sem necessariamente arbitrar acordos entre eles. Indivíduos ou instituições poderiam exigir daqueles desejosos de interagir com eles o respeito a uma série de normas e leis. Para tal, eles teriam que se submeter voluntariamente a alguma instituição aceita como uma defensora dessas leis em particular. Isso certamente variaria muito, indo desde exigências do cumprimento de leis altamente restritivas (religiosos radicais, por exemplo) até exigências mais cotidianas, como por exemplo um empregador que exige de seus empregados a submissão a certas leis mínimas as quais ele considera essenciais para o exercício do serviço que ele contrata. Na ausência de um monopólio legislativo, as pessoas exigiriam garantias para praticamente tudo o que viessem a fazer, muito mais do que fazem hoje.

Mas, e os crimes que não estivessem regidos por absolutamente nenhum contrato? Como seriam tratados, já que não podemos iniciar coerção contra ninguém?

Antes de qualquer coisa, é necessário ressaltar que tais eventos seriam muito raros. Não apenas porque a prática criminosa seria muito menos incentivada pelo contexto de livre mercado de tal sociedade, mas também porque seria muito difícil encontrar indivíduos adultos que nunca se submeteram voluntariamente a nenhuma legislação. Lembre-se, contratos seriam demandados o tempo todo, e pessoas não submissas a nenhum corpo jurídico não teriam muita credibilidade para assinar qualquer contrato de importância, como acontecia na Irlanda com as sureties. Um indivíduo não submisso a nenhum corpo de leis teria dificuldades para ter um emprego, para morar em qualquer condomínio, para ter uma conta bancária, para prestar qualquer serviço mais elaborado, enfim, teria que ser praticamente alguém auto-suficiente, isolado da sociedade. Se isso já era indesejável em tempos medievais, época em que a sociedade era bem menos intraligada, hoje seria uma tarefa extremamente ingrata.

Mas, pelo bem da argumentação, vamos imaginar o que aconteceria no advento de um crime cometido por alguém não submisso a nenhum conjunto legal. A vítima desse suposto criminoso poderia intimá-lo a julgamento. Na situação ideal, vítima e acusado entram em acordo sobre quem será o árbitro da disputa, e pronto, temos novamente um contrato em jogo. Mas, e se não houver acordo? Nesse caso, como acontecia nos exemplos medievais, o acusador teria a oportunidade de demandar a rotulação do criminoso como “fora-da-lei”.

Os detalhes de como tal sistema de ostracismo funcionaria – como, por exemplo, quantas proposições diferentes de juízes o acusado poderia recusar até ser tachado como fora-da-lei, entre outros critérios mais específicos – não podem e não precisam ser previstos. Poderiam até existir múltiplos sistemas de ostracismo, com critérios diferentes. Alguém rotulado por um sistema muito estrito, do tipo que considera muito facilmente alguém como fora-da-lei, teria menos dificuldades para continuar vivendo em sociedade do que alguém rotulado por um sistema mais permissivo, que dá várias chances a um criminoso.

O que é importante notar é que, não só esse fora-da-lei teria dificuldades para se relacionar com outras pessoas, como perderia a proteção de todos os órgãos de justiça, uma vez que é do interesse dessas instituições que as pessoas aceitem ser julgadas. O indivíduo fora-da-lei estaria relegado à própria sorte, podendo ser vítima de justiceiros violentos sem contar com o apoio de nenhuma instituição de proteção. Novamente, se o poder persuasivo de tal ostracismo era forte em sociedades medievais, imagine hoje, com a altíssima divisão de trabalho e interdependência que temos, sem contar com todas as tecnologias que permitem facilmente identificar a presença ou não de rótulos associados a indivíduos (pense no sistema de proteção ao crédito). O ônus de ser tachado como fora-da-lei seria na esmagadora maioria dos casos pior do que qualquer condenação que ele pudesse vir a sofrer.

Por que defender tal sistema?

Caso a ausência de coerção institucional não seja por si só um apelo suficiente para convencer o leitor, há nesse esquema uma outra vantagem enorme em relação a um monopólio legislativo.

As leis em tal sistema não mais seriam a manifestação dos devaneios de um conjunto de burocratas munidos de poder autoritário. Elas seriam o fruto da evolução natural, via processo de mercado, das tradições, costumes e regras de conduta já existentes na sociedade. Leis não seriam mais inventadas, e sim “descobertas”. Instituições que tentassem inventar leis sem apelo à sociedade não iriam muito longe.

Nesse contexto, existirá sempre uma altíssima diversidade de leis, para servir aos mais variados gostos – como todo tipo de serviço num sistema genuinamente capitalista. Mas haverá sempre um conjunto mínimo de leis defendido por toda instituição jurídica. Seriam as leis mais fundamentais do comportamento humano, princípios éticos básicos como “é errado matar, roubar, estuprar”.

Uma instituição que não condenasse atrocidades como essas dificilmente se manteria no mercado. Esse corpo mínimo de leis avançaria da maneira mais rápida possível para o que se entende por Direito Natural, já que, como tudo num livre mercado, ele evoluiria segundo o juízo de valor subjetivo da sociedade como um todo, e não segundo interesses eleitoreiros de uma casta de governantes. A legislação evoluiria de maneira semelhante à própria evolução natural ou a outros sistemas de ordem espontânea.

Ao mesmo tempo, esse sistema traria soluções completamente voluntárias às várias questões debatidas calorosamente em grupos de discussão libertários, como, por exemplo, deve ou não deve existir a propriedade intelectual? Calúnia e mentira de maneira mais genérica devem ser criminalizadas? Manifestações da liberdade de expressão que influenciem diretamente crimes violentos são algo a ser condenado? Qual é exatamente a punição ideal para cada crime? Deve existir pena de morte? Existe uma obrigação positiva dos pais para com seus filhos? E para com um feto – abortá-lo ou “tratá-lo mal”, seria um crime? O que exatamente é uma agressão? Seria a circuncisão um ato de agressão à criança? O princípio lockeano de apropriação original seria o ideal a se aplicar a absolutamente todos os casos? Como alguém se apropriaria de uma reserva ecológica, cujo objetivo é justamente preservar parte da natureza intocada, seguindo estritamente esse critério? Normalmente concordamos que externalidades negativas são uma violação do direito à propriedade, mas será que todas elas merecem ressarcimento? É praticamente consenso, por exemplo, que coisas como poluição ou barulho são externalidades negativas dignas de uma eventual resposta coerciva, mas e atitudes como construir um prédio que bloqueia a luz solar que antes atingia uma residência vizinha? Isso deve ser condenado? E se a residência produzisse energia elétrica a partir dessa luz solar, o veredicto muda? Há toda uma série de questões para as quais não podemos pensar que temos a resposta perfeita na ponta da língua, até porque envolvem necessariamente arbitrariedades. Maioridade, por exemplo. Qual a idade ideal? Hoje essas arbitrariedades são todas decididas por burocratas sem nenhum critério de performance. No arranjo proposto, as instituições que agregarem mais valor à sociedade serão as maiores recompensadas, pois teriam mais clientes. Todas essas perguntas seriam respondidas pelo processo de competição entre instituições de justiça.

E finalmente, caso o leitor ainda considere que não deve defender tal coisa pelo fato de ser “utópica demais”, extremamente distante da nossa realidade contemporânea, reproduzo aqui a argumentação de Stephan Kinsella para avisar ao leitor que ele provavelmente já defende algumas utopias – apenas não se deu conta disso. Não acredita? Tente então imaginar um mundo sem assassinatos. Ninguém jamais mata ninguém, ao menos não intencionalmente. Dada a natureza humana, podemos afirmar que tal coisa provavelmente nunca existirá. É até mais utópico do que um sistema de leis não coercivo, coisa que já existiu de uma certa forma no passado. Porém, ainda assim, você provavelmente não defende a prática do assassinato, tampouco prega um “nível mínimo de assassinatos” para que a sociedade continue funcionando. Sendo esse o caso, você já defende uma utopia ainda mais improvável do que a proposta desse texto. Um mundo sem assassinatos é ainda mais radical do que um mundo sem instituições coercivas de porte suficiente para monopolizar as leis de uma região.

_________________________________

Para mais informações sobre Irlanda e Islândia medievais, consultar:

http://www.daviddfriedman.com/Academic/Iceland/Iceland.html

http://www.lewrockwell.com/orig3/long1.html

http://mises.org/journals/lf/1971/1971_04.pdf

http://www.youtube.com/watch?v=o0TBE-pcEi0

Tiago Rinck Caveden
Tiago Rinck Caveden
Tiago Rinck Caveden é bacharel em Ciência da Computação e possui mestrado em Sistemas de Informação. Atualmente mora em Lyon, França.
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