Rafe Mair é um famoso jornalista canadense. Fosse ele um pouco mais jovem, certamente seria a criança travessa e incômoda do jornalismo político e econômico da Columbia Britânica. Um agressivo entrevistador e debatedor, esse ex-político que hoje pontifica detalhadamente sobre assuntos políticos e econômicos daquele canto sudoeste do Canadá também é dado a opinar desenvoltamente não apenas sobre todo o país, mas também sobre o resto do mundo.
Apenas uma revelação: passei 13 anos (1979-1991) como membro sênior do Fraser Institute de Vancouver. E, sim, tive meus entreveros com Rafe Mair durante esse tempo.
Em uma recente missiva enviada por ele à revista Tyee, um diário canadense online, Mair faz críticas a Mike Wallace, do Fraser Institute, e também a ninguém menos do que este vos escreve. Aparentemente, Mair crê que eu ainda trabalhe naquele think tank conservador. Mas isso é o de menos.
Mair me critica em relação a um assunto que ele parece considerar fictício: a privatização dos rios.
Mair caracteriza essa ideia como “o tipo de demência para a qual só posso encontrar uma explicação: ideologia de extrema-direita”.
Mair prossegue:
Ainda no início dos anos 1990, o Fraser Institute publicou um artigo argumentando que os rios e os canais deveriam todos ser colocados em mãos privadas, pois, como o Dr. Walker (o então diretor executivo) mais tarde explicou, os proprietários privados iriam ser mais cuidadosos com esses cursos d’água, uma vez que eles seriam os donos deles. Em meu programa de rádio, ele repetiu essa teoria de que a propriedade privada sobre os rios iria garantir a utilização mais eficaz possível do rio ou do curso d’água.
E eu disse, “Mas Mike, a história nos mostra que a utilização mais eficaz de um rio é como esgoto para a indústria e/ou para a agricultura.”
“Não, não”, ele retrucou. “Seria do interesse do proprietário manter seu rio originalmente puro, de modo que todos os peixes e outros seres vivos possam sobreviver e prosperar.”
Para alguém que gosta de pescar e já pescou em rios e lagos ao redor do mundo, isso literalmente tirou meu fôlego.
Então eu perguntei: “E se eu fosse o proprietário do Campo de Pesca Rafe Mair, localizado à jusante de um rio em cuja montante está a Fábrica de Papeis Ajax, que por sua vez despeja nesse rio enormes quantidades de líquido preto e acaba matando todos os peixes?”
E então o Dr. Walker lançou-me aquele olhar triunfante típico dos íntegros, sorriu generosamente de minha estupidez e disse, “Sem problemas, Rafe. Você poderia processá-los.”
Evidentemente, não ocorre à “extrema-direita” que processar uma grande corporação não é algo muito atraente para um pequeno empreendedor. (Devo acrescentar que me lembro particularmente bem dessa entrevista porque, após o show, o Dr. Walker ligou para a minha casa com o intuito de continuar suas infrutíferas tentativas de me converter).
Minha pesquisa levou-me então ao Dr. Walter Block, que foi quem, creio eu, escreveu o artigo para o Fraser Institute sobre a privatização dos rios. Em todo caso, Block era um membro sênior do Fraser Institute à época.
Sobre tudo isso, alguns comentários.
1. A memória do senhor Mair está correta. Fui eu, e não Mike Walker, quem escreveu sobre a privatização dos rios. E ele não foi o único que teve o privilégio de testemunhar aqueles “sorrisos generosos” acompanhados de um “olhar triunfante típico do íntegro”.
2. A propriedade privada dos rios (ou dos lagos, oceanos, correntezas, estradas e ruas) não é de maneira alguma defendida pela “extrema direita” – se por “direita” entendemos conservadores. Não. Apenas os libertários é que estão dispostos a levar a lógica da propriedade privada tão longe, e em tais direções.
3. Mike Walter está incorreto ao pensar que, sob a iniciativa privada, nenhum corpo de água seria utilizado como depósito de lixo. Mas Rafe Maier está igualmente incorreto ao sustentar que, sob um regime de liberdade econômica, todos os corpos de água seriam utilizados como receptáculos de lixo.
Por exemplo, ao invés de água, pensemos na terra. Alguma porção dela é utilizada para tais propósitos; mas a maioria não o é. Destarte, não parece haver nenhuma boa razão para supor que o mesmo princípio não seria aplicado à água privada. Assim como no caso da terra, a água provavelmente iria servir para uma miríade de propósitos. Em qualquer caso, em um ambiente de liberdade de mercado, toda a terra e toda a água tenderiam a ser utilizadas de maneira a maximizar os lucros; isto é, de modo a produzir o maior valor para todos os membros da sociedade.
Se assim não o fosse, isto é, se a terra ou a água não fossem utilizadas de modo a se obter delas o maior valor, essa omissão iria criar oportunidades de lucro para outros empreendedores. Estes iriam comprar as áreas em questão e alterá-las para um uso que criasse ainda mais riqueza.
Esse sistema funciona perfeitamente? Estaremos sempre em equilíbrio? É claro que não. Mas as forças de mercado trabalham contínua e persistentemente nessa direção, fazendo com que os limitados recursos disponíveis sejam utilizados de modo cada vez mais eficiente. Não é a toa que raramente há crises naquelas indústrias que são relativamente livres, como as de goma elástica e de palitos de dentes.
4. O senhor Mair exibe um assombroso grau de ignorância econômica. Ele está atacando um dos princípios mais fundamentais de toda a economia: aquele que diz que, se você é proprietário de um bem, você tende é cuidar dele melhor do que se ele fosse alugado ou, pior ainda, se ele não tivesse dono. As pessoas certamente se preocupam em trocar o óleo de seus carros, mas será que o mesmo se aplica para um carro alugado?
Nunca sequer foi cogitada a hipótese de as vacas estarem perto de entrar em extinção, ao passo que os búfalos quase sumiram. Por quê? Certamente não é porque as duas espécies são muito diferentes. Com certeza isso ocorreu porque as vacas sempre estiveram sob propriedade privada, ao passo que os búfalos, pelo menos por várias décadas, não. Nenhum fazendeiro sai matando todas as suas vacas; se ele fizer isso, incorrerá em um grande custo: ele não terá esses bovinos amanhã. As coisas ficam diferentes quando se considera que os búfalos estavam à solta e sem dono. Nesse caso, a atitude mais economicamente racional a ser feita era matar todos eles. Se você não o fizesse, eles iriam fugir e você provavelmente não os encontraria no dia seguinte. Matar um búfalo era algo virtualmente sem custos; assim, cada vez mais búfalos eram mortos, e indiscriminadamente. O mesmo se aplica aos elefantes, rinocerontes, baleias e peixes. Nos oceanos sem donos, há o problema da pesca excessiva; já os viveiros de peixes, onde são praticados os pesque-pagues, jamais enfrentaram esse problema. Por que haveria de ser diferente para os rios e lagos? Estamos lidando aqui com princípios econômicos básicos; eles se aplicam a todos e quaisquer recursos. Se Mair é contra águas privadas, então por que ele não é contra as terras também? Não me façam falar novamente sobre a agricultura coletivizada da URSS.
5. Quanto a processar a gigante “Fábrica de Papeis Ajax” por poluição, a objeção de Mair é simplesmente parva. Em primeiro lugar, pode ser que o poluidor seja uma pequena empresa, e que quem esteja movendo o processo seja uma grande empresa. Segundo, quanto maior for uma empresa, mais espetacular e lucrativa é a sua queda. Grandes corporações possuem bolsos fundos, o que as torna o alvo preferido de todos aqueles que querem lucrar com seu colapso. Uma empresa não vai deixar de ser processada só porque ela é grande. Quem pensa assim, está desconsiderando todo o potencial lucrativo de tal empreitada. Você acha que ninguém processa o Wal-Mart porque teme tratar-se de uma empresa muito grande e poderosa? Ora, por favor. Por essa lógica, teríamos que nos opor a leis contra o homicídio e o estupro – afinal, já que os ricos podem burlá-las mais facilmente que os pobres, então é bobagem criá-las.
Como residente de Nova Orleans, levo esse assunto de propriedade privada dos rios muito a sério. O furacão Katrina não foi o responsável pela inundação da cidade e por suas 1.500 mortes desnecessárias. Tal feito é de responsabilidade exclusiva do Corpo de Engenharia do Exército dos Estados Unidos, com grande auxílio da FEMA e das ‘leis antiextorsão’ [leis que proíbem empresas, postos de gasolina e supermercados de, no caso de desastres ambientais, aumentar os preços de seus produtos. A conseqüência óbvia de tal decreto é a escassez de comida, materiais de construção e combustíveis].
O Corpo de Engenharia do Exército de fato é o “dono” do Rio Mississippi, e a FEMA fez o que pôde para garantir que a iniciativa privada não pudesse vir ao socorro dos cidadãos em apuros. O fato de ter havido todas essas 1.500 mortes em decorrência dessa incompetência estatal ainda não é o mais surpreendente; afinal, também há mortes no setor privado. O que realmente me revira o estômago é o fato de que essas mesmas pessoas continuam no comando dessas barracas de cachorro-quente. Se alguma empresa privada fosse a dona do Rio Mississippi, pode ter certeza que, pra início de conversa, essa tragédia não teria acontecido. Porém, se ainda assim, por algum motivo insólito, as barragens tivessem se rompido e gerado todas essas mortes, certamente os proprietários dessa empresa estariam destinados à lata de lixo da história, e esse rio estaria hoje sob nova administração.
Essa é uma das razões por que a iniciativa privada reage muito mais prontamente do que o governo, em quaisquer circunstâncias: o temor da falência.
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