No meu último artigo, esbocei a abordagem misesiana dapraxeologia, ou a ciência da ação humana. Contrariamente à posição positivista da economia convencional – que defende que todas as teorias econômicas devem levar a previsões que podem ser testadas (ou seja, refutáveis) -, Ludwig von Mises acreditava que os teoremas econômicos só poderiam ser válidos se fossem deduzidos do axioma “os humanos agem”.[1]
Muitos leitores mandaram-me e-mails desafiando essa visão misesiana. Uma grande dúvida era se a psicologia deveria ou não utilizar o método experimental. Afinal, a psicologia também lida com seres humanos, em particular com seu estado mental e seu temperamento. Portanto, a pergunta recorrente foi: os austríacos também acreditam que o método das ciências naturais – em outras palavras, a formulação de uma hipótese que é em seguida sujeita a verificação experimental ou refutação – é tão inapropriado para a psicologia quanto é para a economia?
Em resposta, digo que Mises foi bem claro ao traçar a divisória entre psicologia e praxeologia: a psicologia lida com teorias que explicam por que as pessoas escolhem determinados fins ou como as pessoas irão agir em determinadas situações. A praxeologia, por outro lado, lida com as implicações lógicas do fato de que as pessoas têm objetivos (fins) e agem para atingi-los. Por causa dessa diferença, pode ser inteiramente apropriado para os psicólogos testarem experimentalmente suas hipóteses, ao passo que seria um enorme equívoco se os economistas passassem a imitar o método utilizado pela física.
I. Uma lei psicológica
Para ilustrar a diferença, comparemos duas “leis” oriundas das respectivas disciplinas. Psicólogos já conduziram vários experimentos que confirmam a aparente veracidade do “efeito observador”, que diz que a probabilidade de uma pessoa ajudar outra em apuros (um motorista encalhado, por exemplo) será menor se houver um grande número de pessoas em volta. A intuição para essa aparente lei é clara: uma pessoa que, dirigindo seu carro em uma grande cidade, passe por um motorista encalhado, irá pensar: “Alguma outra pessoa mais capacitada do que eu irá parar e ajudar esse cara”. Em outro cenário, uma pessoa que passe por um motorista encalhado em uma área rural saberá que ela é a única que pode ajudá-lo naquela situação. Ou seja: paradoxalmente, é mais provável que uma pessoa receba algum tipo de ajuda caso seu carro quebre em uma área relativamente deserta.
Embora o efeito observador pareça plausível – e ele de fato parece consistente com nossa experiência pessoal – será que ele é uma teoria cientificamente válida? Bem, a única maneira de testá-la é fazendo um experimento controlado. Não podemos fazer deduções a priori sobre a validade do efeito observador, uma vez que não temos axiomas autoevidentes que levem a alguma dedução. Não seria suficiente comparar o tempo médio de resposta em uma cidade grande versus em uma área rural, pois não estamos lidando com a mesma população. (Pode ser que a as pessoas que vivem na cidade grande tendem a ser mais mesquinhas do que as que vivem em áreas rurais, por exemplo).
Por isso, os psicólogos conduziram experimentos em que o objeto de estudo (uma pessoa) é colocado a sós em uma sala, de onde ela conversa por um interfone com outras pessoas (sendo que algumas dessas outras pessoas são os próprios pesquisadores). Durante a conversação, um desses pesquisadores (que para o indivíduo da sala é uma pessoa qualquer, que está sendo analisada assim como ele) casualmente menciona ter predisposição para convulsões. E então, após alguns minutos de conversa, esse pesquisador simula sofrer uma convulsão do outro lado da linha. Feito isso, os psicólogos se põem a observar se o indivíduo irá se levantar e sair da sala em busca de ajuda para a vítima da convulsão. E pasmem, após várias experimentações os psicólogos descobriram que, quanto maior o número de pessoas envolvidas na conversação pelo interfone, menor a probabilidade de o indivíduo sair da sala e ir buscar ajuda. Quando o indivíduo na sala é a única pessoa conversando com a vítima quando a “convulsão” ocorre, esse indivíduo quase sempre irá sair da sala em busca de ajuda. Mas se ele for apenas um entre dúzias de pessoas conversando pelo interfone, a probabilidade de ele ir procurar ajuda é bem menor.
É claro que mesmo essa confirmação experimental não prova a verdade universal do efeito observador. Sempre há a possibilidade de que, não obstante seus melhores esforços, os psicólogos não tenham escolhido uma amostra de fato representativa dos objetos de estudo. Ademais, mesmo que o efeito observador seja realmente verdade para a atual população de humanos, não há nada que impeça o surgimento daqui a uns cem anos de uma nova estirpe de humanos que, seja por causa da cultura ou por causa da genética, não obedeça ao efeito observador. Assim como qualquer “lei” das ciências naturais, as “leis” da psicologia (mesmo quando validadas pelo método experimental) são apenas tentativas.
II. Uma lei econômica (praxeológica)
Em contraste, analisemos agora uma típica lei econômica: se o governo incorrer em déficits orçamentários, as taxas de juros serão mais altas do que seriam caso os déficits não tivessem ocorrido. Essa lei também parece ser senso comum (assim como o efeito observador), porém ela é mais do que isso: uma vez que o economista cuida em especificar precisamente as definições dos termos, ele poderá de fato provar essa máxima através de um exercício de pura lógica. Não há motivos para ir a campo e “testar” se ela é verdade, pois isso estaria indo contra a própria lógica do raciocínio. Seria uma atitude tão despropositada quanto “testar” se os ângulos do interior de um triângulo (na geometria euclidiana) somam 180 graus.
Por exemplo, nos EUA, durante a década de 1980, muitos defensores da esbórnia fiscal promovida pelo governo Reagan utilizaram estatísticas para tentar refutar essa lei praxeológica. Eles mostraram que, contrariamente àqueles que estavam preocupados com o “efeito crowding-out”, os enormes déficits federais dos anos 1980 não estavam correlacionados com grandes aumentos nas taxas de juros. Assim, parecia ser possível fazer com que uma economia acumulasse poupança e a consumisse ao mesmo tempo. Déficits recordes não eram tão ruins assim, afinal de contas!
Mas Murray Rothbard explicou a absurdidade desse argumento. A estatística, dizia ele, não pode sobrepujar a lógica. Se o governo incorre em déficits (isto é, se ele gasta mais do que recebe por meio de impostos ou por outras formas de receitas), então ele necessariamente reduz a quantidade de poupança disponível para o setor privado. Colocando de outra forma, se o governo inunda o mercado com vários títulos da dívida, a oferta desses títulos será necessariamente maior do que seria caso não tivesse havido esses déficits, o que significa que a taxa de juros que equilibra o mercado (que é o inverso dos preços dos títulos) será necessariamente maior do que em um contexto normal.
Portanto, eis o que aconteceu nos EUA durante a década de 1980: as taxas de juros teriam inevitavelmente[2]caído daquele nível estratosférico em que se encontravam ao final da década de 1970. Mas pelo fato de Reagan ter incorrido em enormes déficits, as taxas de juros não puderam cair tanto quanto poderiam ter caído. Sem uma teoria antecedente que relacione poupança, déficits e taxas de juros, o estatístico que olhar para os dados econômicos da época ficará completamente perdido, incapaz de tirar qualquer conclusão que não seja a ocorrência de uma alteração (espúria) dos padrões. Em particular, não há como “testar” as interpretações rivais da era Reagan, pois os economistas não podem recriar as mesmas “condições iniciais” e executar o experimento novamente, dessa vez com um orçamento equilibrado.
Concluindo: a posição metodológica austríaca permanece sólida. É verdade que outras disciplinas que lidam com seres humanos, tais como a psicologia, podem fazer uso do método experimental. Entretanto, se alguém acredita (assim como Mises) que a economia propriamente dita é um mero ramo da praxeologia, então resta claro que todos os teoremas econômicos devem ser logicamente deduzidos do axioma da ação. Da perspectiva austríaca, copiar os métodos da física significa deturpar completamente a natureza e o propósito da teoria econômica.
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[1] Além desse axioma autoevidente, alguns teoremas econômicos também requerem hipóteses auxiliares, como “a mão-de-obra é onerosa” e “a mão-de-obra é escassa em relação à terra”.
[2] É claro que um defensor de Reagan pode argumentar que suas políticas foram a causa da tendência de queda nos juros, e que um orçamento equilibrado (coincidindo com os cortes de impostos de 1981) era politicamente impossível. Pode até ser. Mas meu ponto é que o governo Reagan não refuta o “efeito crowding-out”.
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