[N. do T.: o artigo a seguir data de fevereiro de 2002, perto do auge da crise argentina.]
Embora vários jornalistas, autoridades financeiras, experts políticos, diretores do FED e até mesmo macroeconomistas convencionais tenham ficado em pânico com a indicação de uma ligeira deflação nos preços detectada nos últimos meses na economia americana, eles quase que ignoram por completo o doloroso confisco deflacionário que está ocorrendo na Argentina.
O confisco deflacionário é uma categoria particular de deflação. Ele é infligido sobre a economia pelas autoridades políticas, que o utilizam como um meio de obstruir uma deflação do crédito bancário que está em curso e que ameaça liquidar esse sistema financeiro insalubre que é o sistema bancário de reservas fracionárias. A essência desse confisco é anulação dos títulos de propriedade dos depositantes sobre seu dinheiro que está no banco. Isso significa que os depositantes não mais podem sacar seu dinheiro que está depositado em conta corrente ou poupança.
Um exemplo conspícuo de confisco deflacionário é a situação atual da Argentina. Em 1992, após mais um surto inflacionário, a Argentina fixou sua nova moeda, o peso, em relação ao dólar na taxa de 1 pra 1. Para manter essa taxa de câmbio fixa, o banco central argentino prometeu que iria trocar livremente, sob demanda, dólares por pesos, e que iria lastrear todo o seu passivo – que consistia em notas de peso e nos compulsórios bancários denominados em pesos – quase que 100 por cento em dólares.
Infelizmente, esse arranjo – que inspirou confiança nos investidores internacionais porque tinha a aprovação do FMI e, portanto, tinha implícita a garantia de um salvamento, caso algo desse errado – não impediu uma maciça e inflacionária expansão do crédito bancário. À medida que os dólares dos investidores inundavam o país, eles achavam o caminho do banco central, permitindo que ele expandisse a quantidade de reservas disponíveis para os bancos comerciais. Como os bancos comerciais são instituições que praticam a reserva fracionária, eles, por sua vez, foram capazes de inflar conjuntamente o crédito, multiplicando os depósitos bancários em cima de cada novo dólar ou peso que entrava em suas reservas (compulsórios).
Como resultado, a oferta monetária argentina (M1) aumentou a uma taxa média de 60 por cento ao ano, de 1991 a1994.[1] Após ter declinado para menos de 5 por cento durante 1995, a taxa de crescimento da oferta monetária disparou para acima de 15 por cento em 1996 e para aproximadamente 20 por cento em 1997. Em 1998, com o peso sobrevalorizado como resultado da inflação dos preços dos produtos domésticos, e com os investidores estrangeiros rapidamente perdendo a confiança, imaginando que o governo iria desvalorizar o peso a qualquer momento, o influxo de dólares cessou e o boom inflacionário sofreu uma parada abrupta, com a oferta monetária crescendo apenas 1 por cento. Com isso, a economia entrou em recessão. O crescimento monetário se tornou levemente negativo em 1999, ao passo que em 2000 a oferta monetária se contraiu em praticamente 20 por cento.
A oferta monetária continuou a se contrair a uma taxa anual de dois dígitos até junho de 2001. Naquele ano, os correntistas, poupadores e afins começaram a perder a confiança no sistema bancário e correram para sacar seus dinheiros. Isso levou a uma deflação intensa do crédito, o que fez com que o sistema perdesse 17% – ou $14,5 bilhões – de seus depósitos.
Somente na sexta-feira, 30 de novembro de 2001, entre $700 milhões e $2 bilhões em depósitos – os dados variam – foram retirados dos bancos. Mesmo antes dessa corrida bancária de sexta-feira, o banco central tinha somente $5,5 bilhões de dólares em reservas que deveriam servir como lastro para $70 bilhões de depósitos em peso (e em dólar) conversíveis em dólar (e em peso). O presidente Fernando de la Rua e seu ministro da Fazenda, Domingo Cavallo, reagiram a essa situação no sábado, 10 de dezembro, anunciando uma política – que na prática era um confisco deflacionário – para proteger o sistema financeiro e manter a paridade cambial.
Especificamente, saques bancários em dinheiro estavam limitados a $250 por depositante por semana para os próximos noventa dias, e todas as transferências monetárias para o exterior que excedessem $1000 deveriam ser estritamente reguladas. Qualquer um que tentasse carregar dinheiro para fora do país, através de avião ou navio, deveria ser detido.
E, por fim, não era mais permitido aos bancos fazerem empréstimos em pesos, apenas em dólares, os quais eram extremamente escassos. Os depositantes ainda podiam acessar seus depósitos bancários através de cheques ou cartões de débito para fazer pagamentos. Entretanto, essa política foi arrasadora para os argentinos mais pobres, que não possuíam cartões de débito ou crédito, e que em grande parte tinham depósitos bancários não acessíveis por cheque.
Como presumível, esse cruel e maligno confisco deflacionário promovido por Cavallo foi um golpe severo para todos os setores que lidavam com dinheiro vivo e, de acordo com relatos, “levou o setor varejista a uma paralisação total”.[2] Isso piorou a recessão, o que levou a violentos distúrbios e pilhagens pelas ruas, causando a morte de 27 pessoas e milhões de dólares em danos para os comerciantes. Esses eventos fizeram com que um estado de sítio fosse decretado e, por fim, forçaram o presidente de la Rua a renunciar ao seu mandato, dois anos antes de ele terminar.
Em 6 de janeiro de 2002, o governo argentino, agora sob o comando do presidente Eduardo Duhalde e do ministro da Fazenda Jorge Remes Lenicov, consentiu que não era mais possível manter o inflacionado e sobrevalorizado peso ancorado ao dólar na taxa de 1 pra 1. Assim, o governo desvalorizou o peso em 30 por cento, para uma taxa de 1,40 pesos por dólar. Entretanto, mesmo a essa taxa oficial de câmbio, parecia que o peso ainda estava sobrevalorizado porque ele estava sendo trocado por dólar no mercado negro a uma taxa muito maior.
O governo argentino reconheceu isso, só que ao invés de permitir que a taxa de câmbio se depreciasse a níveis mais realistas, que refletissem a inflação passada e a atual falta de confiança no peso, ele intensificou o confisco deflacionário imposto anteriormente na economia. O governo anunciou o congelamento de todas as contas de poupança acima de $3000 pelo período de um ano, uma medida que afetou pelo menos um terço dos $67 bilhões em depósitos remanescentes no sistema bancário, $43,5 bilhões em dólares e o restante em pesos.
Os depositantes que tinham contas em dólares que não ultrapassassem $5000 poderiam sacar seu dinheiro em 12 prestações mensais, sendo a primeira daqui a um ano, ao passo que aqueles que tivessem depósitos maiores não poderiam começar a sacar até setembro de 2003, e, a partir daí, somente em prestações pré-definidas por um período de dois anos. Depósitos em peso – que já tinham perdido um terço do seu valor em dólar desde que o primeiro congelamento havia sido determinado, e que corriam o risco de sofrer maiores desvalorizações — seriam tratados mais liberalmente. Eles começariam a ser pagos aos seus titulares em dois meses, mas esse reembolso também seria em prestações. Enquanto isso, como um observador mencionou, “simples transações bancárias, como descontar um cheque ou pagar a conta do cartão de crédito, permaneciam fora do alcance dos argentinos comuns”.[3]
O senhor Lenicov admitiu abertamente que essa última rodada de confisco deflacionário era um artifício para proteger o inerentemente falido sistema de reservas fracionárias. Ele declarou: “Se os bancos entrarem em colapso, ninguém vai receber de volta seus depósitos. O dinheiro disponível não é o suficiente para pagar todos os depositantes.”[4] Diferentemente da deflação do crédito bancário que Lenicov quer tão avidamente evitar – deflação essa que permitiria que as trocas monetárias prosseguissem, só que com uma quantidade menor de pesos, que consequentemente estariam valendo mais – o confisco deflacionário tende a abolir as trocas monetárias e a levar a economia a condições grosseiramente ineficientes e primitivas de escambo e de produção visando a auto-suficiência, o que enfraquece a divisão social do trabalho.
Enquanto isso, diferentemente dos acadêmicos – que têm fobia de deflação -, da mídia, e das burocracias supranacionais que fecharam os olhos para o confisco deflacionário, ou que saudaram-no como uma responsável “medida de austeridade”, as infelizes vítimas argentinas reagiram a esse confisco reconhecendo-o como aquilo que ele essencialmente é: um roubo bancário perpetrado pelas elites políticas.
Ramona Ruiz, uma aposentada do setor têxtil, gritava em frente a um terminal eletrônico, “É o meu dinheiro que está dentro desse banco, meu!”[5] Uma outra mulher não identificada gritou com um porta-voz do governo: “Como se atreve a roubar minha poupança?”. Jose Valenzuela, um representante de vendas, disse: “É como se enquanto eu falasse com você, eu estivesse furtando os trocados no seu bolso.”[6] Mais dolorosamente, um comerciante deplorava. “Estão pisoteando nas nossas liberdades. . . . Meus direitos civis, meus direitos particulares, foram completamente violados.”[7] Por fim, líderes sindicais argentinos denunciaram incisivamente essa política como sendo “o seqüestro da poupança de toda a nação”.[8]
Infelizmente, as coisas ficaram ainda piores para os infelizes depositantes dos bancos argentinos. Depois de ter prometido solenemente, quando assumiu o cargo em 10 de Janeiro, que os bancos seriam obrigados a honrar seus compromissos contratuais e pagar em dólares aqueles que tinham depósitos denominados em dólares, o presidente Duhalde anunciou no fim de janeiro que os bancos estavam autorizados a redimir todos os depósitosem peso. Mas como o peso, nesse ínterim, já tinha se depreciado 40 por cento em relação ao dólar no livre mercado, isso significava que aproximadamente $16 bilhões em poder de compra havia sido transferido das pessoas que fizeram depósitos em dólar para os bancos.[9]
Como o confisco deflacionário segue com força total, e os depositantes estão impedidos de redimir sua propriedade, a perda de riqueza sofrida pelos depositantes irá aumentar à medida que o peso for se depreciando. Felizmente para esses depositantes, na sexta-feira, 10 de fevereiro, a Suprema Corte Argentina desferiu um golpe heróico e atordoante em favor dos direitos de propriedade, quando ela decretou por unanimidade (cinco contra zero, com três abstenções) que o congelamento bancário era inconstitucional, argumentando que ele era “irracional” e que “aniquilava” o direito constitucional à propriedade privada. Caso vigore, isso abriria as portas para uma ultra-necessária deflação do crédito bancário.[10]
Após um estremecido Duhalde ter ido à televisão no sábado, 2 de fevereiro, para decretar que os bancos permaneceriam fechados na segunda e terça-feira seguinte, em um desafio ostensivo à decisão da Suprema Corte, a enojada e enraivecida classe média tomou as ruas, batendo panelas e gritando “Fora, fora, todos os políticos, fora!” e “Devolvam nosso dinheiro!”.[11] Duhalde, no entanto, rapidamente se recuperou e na segunda-feira ele desafiadoramente emitiu um decreto suspendendo por 180 dias todas as objeções judiciais ao congelamento dos depósitos bancários; ele também incitou seus aliados no Congresso a acelerar o processo de impeachment dos teimosos membros da Suprema Corte por “suposta corrupção e atos impróprios”.[12]
Nessa altura, a única solução justa e eficiente é que o governo da Argentina examine novamente sua política e ajuste-a para a realidade da questão da propriedade – e a realidade é que os depósitos bancários não mais são (e na verdade nunca foram) títulos de propriedade com valor equivalente às quantias fixas de pesos e dólares que os bancos possuem. Essas moedas correntes, em um sistema bancário de reservas fracionárias, não existem em quantidade sequer próxima da necessária para se pagar todos os depositantes.
Na realidade econômica, os depósitos feitos em um banco são apenas títulos de reivindicação do cliente (débito escriturado) sobre a carteira de empréstimos e investimentos desse banco, incluindo suas reservas. Portanto, todos os bancos deveriam ser imediatamente entregues aos seus depositantes, isto é, transformados em fundos mútuos gerenciados pelos próprios depositantes. Os títulos de propriedades ou “ações subscritas” em cada fundo mútuo seriam rateados entre os depositantes de acordo com suas respectivas fatias no saldo de depósitos da instituição.
O resultado seria uma deflação do crédito bancário que resultaria em uma imediata e acentuada contração da oferta monetária, que ocorreria de uma só vez, e que a deixaria no nível da base monetária, que é igual à quantidade de peso e dólar em moeda corrente em poder do público, mais as reservas em peso e dólar em poder dos bancos.
Embora os preços e salários nominais tivessem que ser fortemente reajustados para baixo, o valor do peso (poder de compra) iria aumentar proporcionalmente, as trocas monetárias e os cálculos econômicos seriam restaurados, e a alocação de recursos e a distribuição de títulos de propriedades (trocas voluntárias) seriam novamente determinadas por processos de mercado.
Joseph Salerno, membro sênior do Mises Institute e editor do Quarterly Journal of Austrian Economics, é professor de economia na Pace University.
[1] Dados sobre a oferta monetária argentina fornecidos por Frank Shostak, Ord Minnett Jardine Fleming Futures Daily Report (20 de Julho de 2001).
[2] Reuters, “Riots and Looting in Argentina as Austerity Plan Bites,” The New York Times on the Web, (19 de dezembro de 2001).
[3] Larry Rohter, “Argentina Is Still Shaky Despite Currency Measures,” The New York Times on the Web, (11 de janeiro de 2002).
[4] Citado no mesmo item acima.
[5] Citado em Anthony Faiola, “Argentina Restricts Bank Withdrawals”, washingtonpost .com (2 de dezembro de 2001), p. A30.
[6] Os últimos dois indivíduos foram citados em David Luhnow, “Argentina Intensifies Defense of Peso-Dollar Link,” The Wall Street Journal (3 de dezembro de 2001), p. A15.
[7] Citado em Knight Ridder Newspapers, “Argentina in Cash Chaos: Government Orders Use of Debit Cards over Currency,” arizonarepublic.com (6 de dezembro de 2001).
[8] Citado em Faiola, “Argentina Restricts Bank Withdrawals.”
[9] Marc Lifsher e John Hechinger, “Argentina Will Pay Bank Deposits in Pesos,” The Wall Street Journal (21 de Janeiro de 2002), p. A2.
[10] Mayra Pertossi, “Argentine Bank Freeze Deemed Illegal,” Associated Press (1º de fevereiro de 2001), dailynews.yahoo.com.
[11] BBC News, “Argentina on brink of anarchy,'” (2 de fevereiro de 2002), news.bbc.co.uk.
[12] Michelle Wallin e Jonathan Karp, “In Argentina, It’s Duhalde against Judges,” The Wall Street Journal (5 de fevereiro de 2002), p. A12.
Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque