O século XX foi um século de secessão. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o número de estados independentes no mundo quase triplicou à medida que novos estados, mediante atos de secessão, passaram a existir. Isso foi impulsionado em grande parte pela onda de descolonização que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial.[1]
Do final da década de 1940 até a década de 1970, em toda a África e Ásia – e até mesmo na Europa, como no caso de Malta – dezenas de territórios coloniais declararam independência por meio de referendos e outras estratégias. Ao longo desses processos de descolonização, grande parte da comunidade internacional – incluindo os Estados Unidos – foi solidária. Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos apoiaram explicitamente os esforços de descolonização, e muitas vezes foram rápidos em reconhecer a soberania dos novos países e estabelecer relações diplomáticas.
Os EUA frequentemente apoiavam esses atos de secessão, porque, dizia-se, era um imperativo moral respeitar os direitos de “autodeterminação” negados aos territórios colonizados do mundo. Além disso, muitos dos estados soberanos do mundo apoiaram essa onda global de movimentos secessionistas, dos EUA à União Soviética e à China, e dentro de muitas organizações internacionais como as Nações Unidas. No entanto, quando a secessão é sugerida em outros contextos, os regimes de hoje são muito menos entusiastas e geralmente condenam a própria ideia.
Por exemplo, o regime espanhol opõe-se hoje à independência da Catalunha e do País Basco. Os russos travaram uma longa e sangrenta guerra para impedir a independência da Chechênia. O regime dos EUA teria claramente uma visão muito sombria de qualquer estado-membro ou região que tentasse declarar independência.
Isso não ilustra uma inconsistência gritante? Se a autodeterminação é desejável para colônias africanas ou asiáticas, por que a secessão é verboten em outras situações? A resposta é que é fácil apoiar a secessão em territórios distantes e de pouco valor estratégico. Quando a secessão é defendida “perto de casa”, por outro lado, os regimes que há muito fingem ser a favor da autodeterminação rapidamente revertem seu discurso e começam a fabricar uma infinidade de razões pelas quais a secessão e a autodeterminação não são, de fato, toleráveis.
Definindo o significado de “colônia”
A ideia de autodeterminação nacional como um movimento político explícito tem origem na Revolução Americana. Como Jefferson e seus colegas afirmaram na Declaração de Independência, “é direito do povo alterar ou abolir” um governo considerado abusivo pelos governados. Obviamente – dado que a Declaração de Independência foi uma declaração de secessão – essas estratégias legitimamente empregadas pelo “povo” incluíam a secessão.
É fácil aplicar a noção de autodeterminação de Jefferson a qualquer colônia, seja na América do Norte no século XVIII ou na África no século XX. Assim, os governos que procuram mostrar suas facetas humanitárias – o que hoje podemos chamar de “sinalização de virtude” – apoiam a secessão. Mas apenas para fins de descolonização – e os regimes são muito cuidadosos em limitar o que entendem por “colônias” e “descolonização”.
Nessa forma de pensar, há uma linha clara entre uma população oprimida pelos colonizadores e outra que não é. Casos como Nigéria e Índia, por exemplo, oferecem casos fáceis. Nigéria e Índia eram controladas pela Grã-Bretanha e sujeitas à dominação política britânica. Mas, ambos os lugares estão longe da própria Grã-Bretanha, e suas populações – pelo menos em meados do século XX – eram fáceis de distinguir visualmente da população britânica. Em outras palavras, as pessoas nessas colônias “se pareciam” com o que se espera que os estrangeiros explorados pelos colonizadores pareçam. Além disso, essas populações não tinham representação direta no Parlamento britânico.
No entanto, nenhum desses fatores é realmente a questão-chave para determinar se a uma população é negada a autodeterminação. Sim, os indianos e os nigerianos não tinham votos no Parlamento. Sim, os indianos e os nigerianos muitas vezes tinham interesses muito diferentes dos de seus governantes, que governavam a milhares de quilômetros de distância.
Mas a colonização e a negação da autodeterminação não é algo que ocorre apenas em terras distantes, onde as pessoas parecem diferentes e falam línguas diferentes.
Em seu livro de 1927, Liberalismo, Mises afirma que a negação da autodeterminação certamente não é apenas para as pessoas que vivem em territórios coloniais. De fato, a autodeterminação é rotineiramente negada mesmo dentro de políticas democráticas. Mises escreve:
A situação de pertencer a um estado a que não se quer pertencer não é menos onerosa se for o resultado de uma eleição do que se tiver de suportá-la como consequência de uma conquista militar.[2]
Em outras palavras, se uma pessoa, por qualquer motivo, é forçada a fazer parte de um estado-nação ou império do qual não deseja fazer parte – mesmo que possa votar em eleições – sua situação não é fundamentalmente diferente daquela que foi “colonizada” via conquista militar.
Afinal, qualquer grupo ou qualquer “povo” – para usar o termo de Jefferson – que esteja em minoria permanente de voto vai se encontrar em imensa desvantagem. Mises ilustra isso no caso de uma pessoa que faz parte de uma minoria linguística:
Quando ele comparece perante um magistrado ou qualquer funcionário administrativo como parte em um processo ou petição, ele está diante de homens cujo pensamento político lhe é estranho, porque se desenvolveu sob diferentes influências ideológicas (…) A cada momento, o membro de uma minoria nacional sente que vive entre estranhos e que é, mesmo que a letra da lei o negue, um cidadão de segunda classe.[3]
Para Mises, o problema das minorias linguísticas foi o principal exemplo, mas esse quadro pode ser aplicado a vários outros fatores. O status de minoria pode ser baseado em religião, etnia ou ideologia. Qualquer “cidadão” que se encontre em um grupo cuja visão de mundo é substancialmente diferente da visão da maioria governante estará em desvantagem.
Ou seja, se um pequeno grupo minoritário acredita que a circuncisão é um importante ritual religioso e cultural, mas a maioria acredita veementemente que a circuncisão é de fato bárbara, é apenas uma questão de tempo até que a cultura e a religião do grupo minoritário sejam seriamente ameaçadas.
Em outras palavras: esse grupo terá sido essencialmente colonizado pela maioria. Ele será assimilado e submetido aos caprichos do que é um poder culturalmente alienígena que, por acaso, está localizado geograficamente numa mesma comunidade.
Limitando o significado da autodeterminação
No entanto, os regimes têm o cuidado de ignorar esse problema ou negar que as populações colonizadas existam dentro das fronteiras das próprias metrópoles. Em seu ensaio “Autodeterminação Nacional: O Surgimento de uma Norma Internacional”, Michael Hechter e Elizabeth Borland observam a inconsistência e como os regimes criam uma distinção arbitrária entre colônias externas e internas:
Que o domínio culturalmente alienígena seja considerado ilegítimo nas colônias, mas legítimo quando ocorre dentro de estados soberanos (como nas colônias internas) parece lógica e eticamente inconsistente, mas não é necessariamente assim. Como a descolonização não tende a alterar as fronteiras internacionais, ela não ameaça diretamente os estados soberanos existentes. No entanto, a secessão de uma região provoca uma mudança nas fronteiras internacionais, portanto, representa uma ameaça potencial à integridade territorial de muitos, se não da maioria, dos estados existentes. Esse fato fornece uma justificativa política para o que, de outra forma, parece ser uma inconsistência gritante. Embora poucos estados soberanos, se houver, pudessem estar preparados para endossar um princípio que pudesse ameaçar sua própria integridade territorial, uma maioria poderia votar (e votou) a favor dessa concepção muito mais restritiva de autodeterminação. (grifo nosso)[4]
Acho que Hechter e Borland aqui erram ao concluir que a inconsistência foi superada. Ela ainda está lá. Só que os regimes conseguiram criar a impressão de que foram superadas criando uma distinção arbitrária entre vários tipos de colônias. Assim, quando o regime dos Estados Unidos conquistou e anexou o Novo México e o Havaí, o regime teve o cuidado de defini-los como territórios domésticos não coloniais.
Não é uma colônia, é a pátria
Os franceses fizeram algo semelhante com a Argélia, embora a estratégia tenha fracassado: para o estado francês, a Argélia não era uma colônia, mas era uma “parte integrante da França”. Depois de 1848, a Argélia foi projetada para se tornar como qualquer outra região francesa, completa com representação no legislativo nacional. Assim, a França lutou arduamente contra a independência argelina tanto na própria Argélia quanto em fóruns internacionais como as Nações Unidas. A França insistiu que a perda da Argélia significaria a perda do território central francês.
A situação foi semelhante no sudoeste americano. A única diferença é que os colonos anglo-americanos acabaram sobrepujando as populações mexicanas e indígenas no Novo México, garantindo assim que as populações colonizadas nunca pudessem esperar afirmar independência ou autonomia.
De fato, a arbitrariedade da concepção limitada de autodeterminação dos regimes é ainda mais destacada pela presença e situação das populações indígenas dentro de nações de maioria colona (por exemplo, Canadá, EUA, Argentina, México).
Nesses casos, encontramos muitos grupos que ainda se caracterizam por uma cultura e uma língua separadas da população majoritária. Além disso, esses grupos muitas vezes estão até mesmo ligados a áreas geográficas específicas. Nos EUA, por exemplo, vemos isso com populações “nativas americanas” em terras indígenas.
No entanto, o regime dos EUA tem o cuidado de nunca se referir a essas terras indígenas como “colônias” ou áreas colonizadas, embora isso seja claramente o que elas são. Como sugerido por Hechter e Borland, a razão reside no fato de que rotular essas áreas como colônias daria combustível à noção de que, como acontece com as colônias africanas e asiáticas, essas áreas merecem autodeterminação, seja por meio da secessão total ou, pelo menos, por meio de uma mudança radical em direção à autonomia regional. Fazê-lo representaria uma ameaça à “integridade territorial” do próprio EUA.
A democracia vai consertar isso!
Assim, não é surpreendente que os regimes de hoje rejeitem a noção de que a negação da autodeterminação é mesmo possível nos moldes estabelecidos por Mises. Se um grupo religioso, étnico ou ideológico se encontra em minoria, os regimes insistem que a autodeterminação pode, no entanto, ser alcançada através da democracia, dentro das formas políticas preferidas pelos regimes. Contudo, esta não é uma esperança realista para grupos que estão em estado de minoria permanente.
Embora regimes ocidentais como os Estados Unidos gostem de falar muito sobre autodeterminação para outros fora do próprio EUA, o regime e seus apoiadores negam firmemente que a nação contenha quaisquer grupos minoritários – ideológicos, religiosos ou outros – que deveriam receber autonomia à maneira das populações colonizadas na África ou na Ásia. Mesmo quando a esquerda enfatiza a existência de “minorias oprimidas”, a resposta está sempre em um regime maior e mais ativo, e em promessas de mais democracia.
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Notas
[1] Alberto Alesina e Enrico Spolaore, “What’s Happening to the Number and Size of Nations?” E-International Relations, aos 9 de Novembro de 2015.
[2] Ludwig von Mises, Liberalism: A Socio-Economic Exposition (Kansas City, Mo.: Sheed Andrews e McMeel, 1962), p. 119.
[3] Ibidem, pp. 119-20.
[4] Michael Hechter e Elizabeth Borland, “National Self-Determination: The Emergence of an International Norm”, in Social Norms, eds. Michael Hechter e Karl-Dieter Opp (Nova York: Russell Sage Foundation, 2001), p. 199.