InícioUncategorized7. Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade

7. Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade

“Muitas pessoas descartam automaticamente a moeda eletrônica como uma causa perdida por causa de todas as empresas que faliram desde a década de 1990. Espero que seja óbvio que foi apenas a natureza centralmente controlada desses sistemas que os condenou. Acho que esta é a primeira vez que estamos tentando um sistema descentralizado e não baseado em confiança.”

– Satoshi Nakamoto

 

Apesar do incrível sucesso das criptomoedas, a questão de saber se o livre mercado pode estabelecer um sistema monetário viável ainda surge. Muitas vezes é sugerido que a cripto é viável apenas porque existe em paralelo com a moeda fiduciária, com a qual é conversível e sobre a qual se baseia. Mas será que a instituição do dinheiro, em última análise, exige supervisão confiável de terceiras partes e o envolvimento do estado? (Uma instituição é uma lei, prática ou costume estabelecido dentro de uma sociedade).

A questão pode ser reduzida a uma mais fundamental: como surge qualquer instituição dentro da sociedade e como ela declina? A resposta está dentro dos conceitos de descentralização e centralização.

 

O que é Centralização? O que é Descentralização?

 

A centralização concentra o controle de uma atividade ou organização sob uma única autoridade para coordenar os resultados. Em termos de monopólio monetário, a atividade é a sociedade; a autoridade é o estado que coordena o fluxo de finanças com o objetivo declarado de produzir uma economia eficiente e produtiva. Outro termo para o controle centralizado da sociedade é “engenharia social”. O estado aplica as teorias da ciência social à gestão de seres humanos para controlar o posicionamento e funcionamento de cada um. O controle social visa alcançar uma sociedade que seja justa ou efetiva de acordo com a visão dos responsáveis.

Nem toda centralização dispensa a escolha individual. Empresas privadas podem centralizar-se sob uma equipe de gerenciamento para aumentar os lucros, por exemplo. Quando o fazem, muitas vezes são chamadas de corporações. A diferença crucial entre esse cenário e a centralização estatal é que as empresas são voluntárias e os indivíduos envolvidos são livres para ir embora e se juntar a um concorrente. Com o controle social, os indivíduos não têm escolha. Afastar-se significa infringir a lei, e não há concorrente.

A descentralização é a difusão do poder de uma autoridade central para suas unidades constituintes. Na arena política, isso significa passar o controle do nível nacional para o local. A discussão da descentralização geralmente começa e termina na esfera política, com o poder ainda investido em uma autoridade coordenadora. Um governo local pode ser melhor do que um remoto porque é mais responsivo à comunidade, mas o ponto final lógico da descentralização é o indivíduo, que é o alicerce de toda a sociedade e sua unidade constituinte mais básica. Esse arranjo é tanto um método quanto um objetivo. O método é o empoderamento do indivíduo. O objetivo é uma sociedade saudável, na qual cada membro faça suas próprias escolhas de acordo com seu próprio interesse.

A centralização está tão entrelaçada no tecido da cultura que muitas pessoas acreditam ser necessária para o funcionamento da sociedade. Escolas públicas, bancos centrais, sistema judiciário, obras públicas, estradas governamentais, tarifas … A maioria das pessoas não consegue visualizar a sociedade através de qualquer outra lente que não a do controle estatal centralizado; é tudo o que conhecem e tudo o que aprenderam.

Ao longo da maior parte da história, a sociedade foi vista como o resultado do projeto de alguém. O designador pode ser Deus, um chefe tribal, um monarca, um comitê de socialistas ou comunistas, uma equipe de especialistas ou alguma outra entidade que também era o estado, só que com outro nome. A sociedade era vista como uma construção artificial criada e gerida pelas autoridades. A sociedade era considerada dependente de uma autoridade coordenadora para sua lei, moralidade e prosperidade.

Em sua obra de três volumes Law, Legislation and Liberty, o teórico social Friedrich Hayek se refere a essa posição como “racionalismo construtivista”. Uma crença construtivista central é que o homem pode e deve inventar conscientemente instituições sociais, como a lei, através da aplicação da razão e da ciência social. Hayek argumenta vigorosamente contra essa perspectiva, alegando que os construtivistas não compreendem o processo pelo qual as instituições da sociedade surgem e evoluem. De fato, ele acredita que a abordagem construtivista é antitética com o processo real, e dificulta as instituições sociais que deveriam evoluir em vez de seguir um plano. Em uma palestra no Memorial do Nobel de 1974 intitulada “The Pretense of Knowledge”, Hayek expressa uma objeção epistemológica básica ao construtivismo – isto é, uma objeção baseada em uma teoria do conhecimento humano. Ele afirma que nenhum comitê pode predizer as escolhas em evolução e os resultados não intencionais de uma massa de pessoas que interagem ao longo do tempo. A preferência humana é muito variável e muda de forma a frustrar todo o planejamento.

Para reciclar uma citação anterior no livro:

“O reconhecimento dos limites insuperáveis para esse conhecimento deve […] ensinar ao estudante da sociedade uma lição de humildade que deveria protegê-lo de se tornar um cúmplice da batalha fatal do homem para controlar a sociedade – uma batalha que não apenas o fará um tirano sobre seus semelhantes, mas que pode muito bem fazê-lo o destruidor de uma civilização a qual nenhum cérebro designou, mas sim que cresceu dos esforços livres de milhões de indivíduos.”

Contemporâneo de Hayek, Ludwig von Mises chega à mesma conclusão de um ângulo menos epistemológico e mais econômico em sua obra-prima Human Action:

“A ação humana origina a mudança. Na medida em que há ação humana, não há estabilidade, mas alteração incessante […] Os preços do mercado são fatos históricos expressivos de um estado de coisas que prevaleceu em um instante determinado do processo histórico irreversível. […] No imaginário e, claro, estado irrealizável de rigidez e estabilidade, não há mudanças a serem medidas. No mundo atual de mudanças permanentes, não há pontos fixos […]”

Tanto Hayek quanto Mises acreditam que o conhecimento buscado pelos construtivistas é inatingível. Não é possível planejar a dinâmica de amanhã com base na de ontem porque as preferências das pessoas e outras circunstâncias são imprevisíveis, mesmo pelas pessoas envolvidas; suposições são possíveis, mas o conhecimento não é. Mesmo uma coisa pequena, como o preço do pão ontem, não dá conhecimento do preço do pão amanhã, porque pode disparar devido à falta de farinha ou a uma mudança nas prioridades das pessoas.

Usar uma foto estática da sociedade de ontem para projetar o futuro vai contra um princípio básico da ação humana e da natureza humana: mudança inevitável. A mudança inevitável é uma diferença fundamental entre os seres humanos e os objetos físicos examinados pelas ciências exatas sobre as quais os construtivistas baseiam sua teoria social. Um cientista pode aprender tudo o que precisa saber para prever o comportamento de uma rocha porque a rocha é estática ao longo do tempo. A água continua a ter a mesma estrutura molecular e continua a ser definida por constantes, como a lei da gravidade, por exemplo. Mas a sociedade não consiste em objetos invariáveis. O comportamento dos seres humanos é baseado na alteração de preferências, emoções e respostas psicológicas que podem ser conflituosas ou ocultas até mesmo das pessoas que estão agindo. Os seres humanos não podem ser categorizados, empilhados e obrigados a obedecer às leis da ciência. A sociedade consiste em indivíduos imprevisíveis, que reagem a mudanças nas circunstâncias. Não são rochas ou água.

Há duas maneiras de os teóricos sociais abordarem a desobediência do homem imprevisível. Eles podem aceitar a natureza dos seres humanos e trabalhar suas teorias em torno dela, ou podem tentar mudar a natureza do homem para que ele se adeque às teorias deles.

Os construtivistas escolhem a segunda opção, com o novo Homem Soviético ou Pessoa Soviética sendo uma manifestação de suas teorias. O novo homem soviético foi considerado a evolução lógica dos seres humanos sob o regime comunista. Em seu livro The Mass Psychology of Fascism (1933), o psicanalista alemão Wilheim Reich pergunta: “O novo sistema socioeconômico se reproduzirá na estrutura do caráter das pessoas? Se sim, como? Suas características serão herdadas por seus filhos? Será ele uma personalidade livre e autorregulada? Os elementos de liberdade incorporados à estrutura da personalidade tornarão desnecessárias quaisquer formas autoritárias de governo?”

A natureza humana, assim como a sociedade, seria reconstruída por aqueles que estão no poder. O novo homem soviético era um arquétipo ou ser humano ideal com características específicas que seriam projetadas e que evoluiriam a partir do comunismo. A nova natureza humana seria compartilhada por todos os povos soviéticos, independentemente de fatores como diferentes origens culturais ou étnicas. As características comunistas incluíam altruísmo, entusiasmo pelo comunismo, saúde física, coletivismo e disciplina. Também haveria uma nova mulher soviética, como o mundo nunca tinha visto antes – abnegada e dedicada aos ideais revolucionários.

Em contraste, Hayek trabalha desapaixonadamente com a natureza humana como ela se mostra a ele: interessada por si mesma e individualista. Ele vê a engenharia social como sendo mais que meramente impossível: é também tremendamente destrutiva, porque é a antítese de uma sociedade natural e destrói as instituições liberais que evoluíram para servir aos indivíduos, e não ao estado.

Hayek conhecia em primeira mão as terríveis consequências do planejamento central. Ele havia testemunhado a devastação do liberalismo clássico por duas guerras mundiais, mas especialmente pela Primeira Guerra Mundial, que despedaçou os moldes do livre mercado. O governo em tempo de guerra havia fixado o controle centralizado sobre o setor privado para garantir o fluxo de armamentos e outros bens “necessários”. O dinheiro havia sido drasticamente inflacionado e reduzido em valor para pagar por maciços aumentos militares. A guerra estrangulou o fluxo do livre comércio, que os liberais clássicos pensavam ser um pré-requisito para a paz entre as nações, bem como para a prosperidade dos indivíduos. Hayek viu como a máquina centralizadora do estatismo do século XX destruiu a promessa do liberalismo clássico do século XIX.

Em refutação ao construtivismo, os economistas austríacos descrevem como as instituições em uma sociedade saudável surgem espontaneamente. As descrições geralmente começam com modelos simplistas para ilustrar um princípio básico ou ponto – o jeito como um caminho é forjado através de um campo, por exemplo. Uma pessoa toma o caminho mais curto através de um campo coberto de mato, e sua passagem deixa um rastro tosco de grama pisada para trás. Por uma questão de conveniência, a próxima pessoa que cruza o campo usa o caminho áspero, que fica mais claramente estabelecido como resultado. Cada pessoa que cruza posteriormente contribui para tornar o caminho mais visível e mais fácil de percorrer. Ninguém constrói o caminho intencionalmente ou como um serviço a outras pessoas; é simplesmente do interesse de cada pessoa usar a rota mais fácil através do campo. No entanto, o reforço auto interessado do caminho beneficia a todos os que percorrem o campo depois.

Uma das primeiras obras de Mises, Nation, State and Economy (1919) analisa o quanto fenômenos sociais mais complexos – como a linguagem – também foram consequências não intencionais de interações individuais. Nenhum comitê ou autoridade central decidiu inventar a fala humana ou publicar um dicionário, muito menos projetar uma linguagem específica como o inglês. De maneira completamente alheia ao benefício da lei, os indivíduos começaram a se comunicar para obter o que queriam uns dos outros. Os sons emitidos gradualmente se tornaram mais redefinidos e variados, mesmo quando os significados de sons específicos se tornaram mais amplamente reconhecidos. A linguagem evoluiu.

Hayek desenvolve um sistema similarmente sofisticado de teoria social para explicar como todas as instituições da sociedade evoluem naturalmente de baixo para cima – das interações voluntárias e não planejadas dos indivíduos – e não de cima para baixo – de especialistas ou poderosos que impuseram sua vontade. As instituições naturais, sustenta Hayek, são os resultados coletivos, mas não intencionais, da interação humana: “é resultado da ação humana, e não da projeção humana”. Mesmo fenômenos sociais complexos – como a escrita, a religião ou o dinheiro – são consequências não intencionais da interação humana. A suposta eficiência dos programas governamentais empalideceu em comparação, para dizer o mínimo.

Os construtivistas contra-argumentam que uma sociedade não planejada é caótica e esbanjadora. Com conhecimento suficiente e uma abordagem científica, eles acreditavam que uma sociedade perfeitamente eficiente poderia ser projetada. Sem excedentes, sem escassez, sem desperdício, sem desemprego. Os mercados de ações não entrariam em colapso e as moedas não flutuariam, exceto quando deveriam fazê-lo. A sociedade poderia ser construída de modo que seus membros caminhassem em uníssono em direção aos mesmos objetivos sociais supostamente desejáveis, assim como haviam marchado em uníssono como soldados rumo à vitória na guerra.

A resposta de Mises aos construtivistas reformularia o conceito de individualismo.

 

 

O Novo Individualismo Austríaco

 

Uma nova concepção de individualismo surgiu em resposta a uma teoria que acompanhava o construtivismo. O holismo social tornou-se popular no início do século XX. O holismo social afirma que os sistemas devem ser vistos como totalidades e não como coleções de suas partes, e a dinâmica de um todo difere da soma de suas partes. Em suma, o coletivo é maior e diferente das unidades que o compõem. Uma análise holística da sociedade geralmente começa com um estudo do coletivo, e não do indivíduo, e assume que o comportamento do indivíduo é determinado pelo coletivo. O comportamento individual é definido pelas categorias e propriedades da classe que compõem seu contexto. A sociedade é mais do que a soma total dos indivíduos que a constituem.

Economistas austríacos afirmam o contrário. A sociedade resulta de e é explicada pelo comportamento dos indivíduos que, coletivamente, são a sociedade. A sociedade não tem existência independente de seus membros individuais, todos os quais agem em seu próprio interesse. No entanto, o interesse próprio não é equivalente ao egoísmo, pois os atos tradicionalmente altruístas – doar para a caridade, ajudar o próximo, sacrificar-se pela família – são frequentemente vistos pelos indivíduos como um comportamento que enriquece a vida. No que parece um paradoxo para alguns, atos tradicionalmente altruístas são muitas vezes realizados como uma questão de interesse próprio.

Os marxistas acusam aqueles que reduzem a sociedade a indivíduos de serem atomistas; isto é, diz-se que eles fragmentam a sociedade em unidades desconexas e isoladas, de modo que a sociedade não existe verdadeiramente. Em resposta, alguns marxistas chegam ao ponto de afirmar que é o indivíduo, e não a sociedade, que é a verdadeira abstração. Ou seja: os indivíduos não existem sem uma sociedade envolvente, que os defina e os construa. Mises fez uma observação sobre essa posição: “A noção de um indivíduo, dizem os críticos, é uma abstração vazia. O homem real é necessariamente sempre um membro de um todo social”.

Karl Marx argumenta um ponto semelhante a este usando um cenário de Robinson Crusoé, que é uma maneira popular de construir um argumento sobre a natureza humana a partir de seus fundamentos absolutos: o homem isolado. Um indivíduo que nasce e é abandonado em uma ilha deserta, afirma Marx, será mais um ser humano em potencial do que um ser humano real. (Alguns socialistas, como Hegel, argumentam que o próprio homem era uma abstração.) Marx faz uma distinção entre a “natureza humana em geral” e “natureza humana modificada” por períodos históricos de épocas. Existem dois tipos de impulsos humanos: aqueles que são fixados, como a fome, e aqueles que “devem sua origem a certas estruturas sociais e a certas condições de produção e comunicação”. O ponto de Marx é que, além de características inerentes ao instinto, a natureza humana é uma construção social definida pelo contexto social; a sociedade cria a essência humana de seus membros individuais. Isso significa que a sociedade poderia construir o que Marx considera ser o tipo certo de humanidade – como o novo homem soviético – caso as instituições da sociedade fossem totalmente orientadas para alcançar esse objetivo.

Os liberais clássicos argumentam o contrário: uma pessoa criada isoladamente ainda será um ser humano realizado com características humanas que vão muito além de um impulso para as necessidades básicas de sobrevivência. Por exemplo: Crusoé terá uma escala de preferências que os economistas chamam de utilidade marginal decrescente, e ele agirá para atingir primeiro a mais alta; ele obterá água para beber antes de se banhar. Ele terá curiosidade e capacidade de sentir tristeza. Sem interação social, grandes partes de seu potencial nunca se desenvolverão, é claro, mas isso não o torna menos humano ou vazio de vontade e personalidade individuais. Os coletivos oferecem incentivos para comportamentos específicos, mas não definem a humanidade dos indivíduos. São os seres humanos e sua natureza inata que definem o coletivo. Sob a análise de Mises, esse argumento simples evolui para uma nova e abrangente abordagem do individualismo.

Como uma teoria social geral, o individualismo significa a defesa da liberdade individual em oposição ao poder de um coletivo, especialmente o estado. Como uma questão pessoal, significa que as pessoas fazem suas próprias escolhas pacíficas e assumem a responsabilidade por elas. Embora um individualista às vezes seja caracterizado como solitário, o oposto geralmente é verdadeiro, porque os seres humanos são animais sociais – eles anseiam por interação quase tanto quanto por comida e abrigo. A cooperação e o comércio são a realização do individualismo, porque permitem que o indivíduo expresse preferências e satisfaça necessidades. “Uma vez percebido que a divisão do trabalho é a essência da sociedade”, observa Mises, “nada resta da antítese entre indivíduo e sociedade. A contradição entre o princípio individual e o princípio social desaparece”.

Um conceito central da filosofia individualista de Mises é a “praxeologia” – uma palavra [práxis] que significa “obra” ou “ação”, e que deriva do grego antigo. Seu significado moderno é “o estudo da ação humana, baseado na crença de que o comportamento humano é proposital em oposição a não intencional ou reflexivo, como piscar”. Exceto pelo comportamento reflexivo, as pessoas agem, e o fazem porque é de seu interesse fazê-lo, mesmo que seja apenas para remover aquilo que Mises chama de “sensação de insatisfação”. Isso acontece tanto para mudar de cadeira, visando aliviar um músculo dolorido, quanto para investir no mercado de ações para garantir a aposentadoria. Toda ação humana é individual, intencional e auto interessada.

Mises então esboça a teoria mais associada a ele. Sua obra-prima Human Action descreve o individualismo metodológico:

“Primeiro devemos perceber que todas as ações são realizadas por indivíduos. Se examinarmos o significado das várias ações realizadas por indivíduos, devemos necessariamente aprender tudo sobre as ações do todo coletivo. Um coletivo social não tem existência ou realidade fora das ações dos membros individuais. Por exemplo: os indivíduos que compunham uma família interagiam uns com os outros dentro de um contexto específico; a soma dessas interações individuais era o que constituía a abstração ‘família’.”

Mises usa a ideia não ideológica e neutra do individualismo metodológico para descrever a natureza básica da ação humana, bem como para desconstruir a abstração do estado. Se apenas os indivíduos agem, então tudo o que o estado faz ou é pode ser reduzido a ações tomadas pelos indivíduos que coletivamente constituem o estado. Em um exemplo famoso, Mises explica: “É o carrasco, e não o estado, que executa o criminoso. É o significado dessa ação que simboliza, na ação do carrasco, uma ação do estado”. Indivíduos que olham para o carrasco veem o estado, mas apenas porque aceitaram a abstração chamada “o estado” como uma estrutura de compreensão do comportamento do carrasco. Sem o contexto do estado, o carrasco seria visto como um assassino, e não como um instrumento de justiça.

Mises admite prontamente que o carrasco age em relação a outros indivíduos, como os juízes, que também constituem o estado; o carrasco faz parte do sistema penal. Ele também pode agir sob coerção, porque a recusa em executar um criminoso pode causar demissão e dificuldades para sua família. Mas a praxeologia está preocupada apenas com o comportamento de um indivíduo, que é o ponto de partida e a única prova observável da preferência individual. A praxeologia não trata das influências sociais ou psicológicas sobre a ação humana; esse trabalho pertence a “outro departamento”. Mises simplesmente afirma que todas as ações são iniciadas e realizadas por indivíduos que agem para promover seus próprios interesses. Explicado de outra forma: não é o estado, mas o carrasco individual que levanta o machado mortal. É o braço do carrasco, e ele não pode escapar da responsabilidade pelas ações que escolhe tomar. (Claro, isso não exonera outros indivíduos envolvidos, como os juízes, por exemplo).

Se apenas os indivíduos agem, então o comportamento coletivo nada mais é do que a soma total das ações e interações dos membros individuais. É comum falar de coletivos ou abstrações como se fossem entidades separadas, que são mais importantes que seus membros. É comum falar dos indivíduos como se agissem e pensassem como um grupo. Quando um homem é preso, por exemplo, o noticiário informa que ele foi apanhado pela polícia. Na realidade, o homem foi algemado por um único policial, e só depois de um único juiz ter assinado o mandado de prisão. Quando ocorre uma batalha, o jornal relata um avanço militar, quando na verdade foram aqueles soldados específicos os únicos a terem de fato avançado. Grupos não agem ou pensam; os indivíduos o fazem; e, às vezes, os indivíduos optam por obedecer a uma autoridade central, que acaba dando a impressão de pensamento coletivo.

O individualismo metodológico soa antissocial para alguns. A impressão também pode ser reforçada pelo uso que Mises faz do exemplo de Robinson Crusoé – o homem isolado – para explicar a praxeologia. No entanto, este uso não sugere que os seres humanos sejam antissociais. Muito pelo contrário. O experimento mental de Crusoé destina-se apenas a remover o fator complicador das relações interpessoais enquanto busca a questão “o que é a ação humana qua ação humana?” É semelhante a um cientista voltando aos princípios fundamentais para entender uma dinâmica. As conclusões de Crusoé são então aplicadas ao mundo real da sociedade.

O Human Action explica:

Se a praxeologia fala do indivíduo solitário, agindo apenas em seu próprio nome e independente dos outros, o faz em prol de uma melhor compreensão dos problemas da cooperação social. Não afirmamos que tais seres humanos autárquicos isolados já tenham vivido, e nem que o estágio social dos ancestrais não humanos do homem, assim como o surgimento dos laços sociais primitivos, tenham se efetivado no mesmo processo. O homem apareceu na cena dos acontecimentos terrenos como um ser social. O homem a-social, isolado, é um constructo fictício. (Nota: Autarquia é a característica da autossuficiência).

A sociedade aumenta o individualismo porque afasta o ser humano do nível animal, permitindo que cada pessoa alcance seu potencial e realize objetivos que seriam impossíveis se buscados de maneira isolada. A interação também é um mecanismo de sobrevivência. A riqueza produzida em conjunto pode ser muito mais abundante do que a riqueza produzida de forma privada, por exemplo, o que deixa todos os envolvidos mais ricos e mais propensos a prosperar. É justamente esse tipo de cooperação que levou a humanidade a dominar o planeta. Os seres humanos são profundamente sociais e as recompensas da sociedade são imensas.

Mises argumenta que os coletivos – como a família ou a sociedade – são abstrações de valor inestimável, pois permitem que as pessoas entendam e descrevam suas interações com outros indivíduos. Os coletivos fornecem o contexto específico para dar sentido à ação individual e à mudança da dinâmica do grupo. Ele explica: “O individualismo metodológico, longe de contestar o significado de tais totalidades coletivas, considera como uma de suas principais tarefas descrever e analisar as origens e as ruínas dessas totalidades, assim como suas estruturas cambiantes e seu funcionamento. E ele o escolhe como o único método adequado para resolver satisfatoriamente esse problema”. O individualismo é a chave para entender os coletivos. É a descentralização aplicada à vida real e cotidiana.

E, ainda assim, se apenas os indivíduos agem, como podem surgir instituições coletivas? A resposta volta ao conceito de ordem espontânea desenvolvida por Hayek e outros.

 

Ordem Espontânea na Produção Econômica

 

A análise até agora se concentrou em como as instituições e a sociedade podem surgir – arguivelmente, como um sistema saudável deve surgir – em função do livre mercado e da livre associação. A dinâmica é bem fácil de ser descrita se usada como referência uma tribo isolada. Mas será que a estrutura do individualismo pode ser expandida do nível local ao global, a fim de fornecer mecanismos complexos, como o comércio internacional, onde os indivíduos geralmente não se conhecem nem interagem diretamente?

No nível local, a cooperação geralmente é intencional. Os agricultores vendem os produtos para os mercados locais; uma equipe de programadores projeta o melhor e mais recente aplicativo; um hospital coordena os horários dos funcionários, com médicos consultando os pacientes; caminhoneiros entregam mercadorias em determinado endereço; um negócio de startup contrata um especialista em marketing. Estes são contatos intencionais e diretos dentro do contexto limitado de uma sociedade.

Como podem indivíduos, de países estrangeiros, que não se conhecem e nem falam a mesma língua, esperar cooperar na criação de alguma coisa? Por acaso não é necessária uma autoridade suprema para a coordenação de estranhos no comércio global? Se assim for, então a autoridade suprema – isto é, o estado – também é necessária internamente, porque todas as nações modernas vivem ou morrem no comércio global. A exigência de centralização reintroduz o estado como um poderoso e legítimo policial da economia.

Mas o comércio global não requer supervisão. Pode parecer paradoxal dizer que estranhos irão cooperar inconscientemente para benefício mútuo porque é do seu próprio interesse fazê-lo. Mas é isso o que acontece. A cooperação não visa a criação de sociedades ou instituições. Cada participante visa enriquecer-se.

“Eu, o Lápis” é um breve ensaio de Leonard Read, fundador da Foundation for Economic Education. É uma curta história contada a partir da perspectiva de um lápis, que narra sua própria criação. A saga começa com a colheita, mineração e formação de matérias-primas em terras distantes, incluindo cedro, cola, cera, grafite, laca e pedra-pomes. Os trabalhadores estrangeiros vendem quantidades definidas para uma variedade de negócios estrangeiros, e o fazem visando ganhar dinheiro para alimentar suas famílias. Podem desconhecer o destino ou finalidade das matérias-primas; eles podem não se importar, mas eles o fazem mesmo assim.

As tripulações de navios estrangeiros transportam os materiais para um destino específico, onde os estivadores descarregam os contêineres e os caminhoneiros os transportam para uma fábrica de lápis. Os indivíduos da tripulação e os do cais provavelmente são indiferentes ou ignoram o conteúdo da carga, porque recebem os mesmos salários independentemente da remessa. Até este ponto, todos os envolvidos na fabricação de pré-lápis não se importam com os próprios lápis; eles nem mesmo sabem o papel que desempenham no processo da fabricação dos lápis. Seu propósito é, pura e simplesmente, ganhar a vida.

A matéria-prima chega a uma fábrica de lápis, onde pode começar a cooperação autoconsciente para a criação do lápis. Embora as fábricas de lápis hoje sejam provavelmente automatizadas, isso não diminui a cooperação humana necessária para produzir um lápis. Mesmo as fábricas automatizadas exigem supervisão administrativa, assim como fornecedores de equipamentos, reparadores, zeladores, investidores e uma série de outros indivíduos para produzir um único lápis. No entanto, isso não significa que essas pessoas se conheçam, nem necessariamente que se importem com lápis. O que isso tudo de fato significa é que eles querem lucrar com salários e retornos.

O produto de uma multidão de estranhos que agem apenas segundo seus próprios interesses isolados é um lápis.

Em sua introdução a “Eu, o Lápis”, o economista ganhador do Nobel Milton Friedman escreve:

Nenhuma das milhares de pessoas envolvidas na produção do lápis executou sua tarefa porque queria um lápis. Alguns deles nunca viram um lápis e não sabem para que serve. Cada um vê seu trabalho como uma forma de obter os bens e serviços que deseja: bens e serviços que produzimos para obter o lápis que desejamos. Cada vez que vamos à loja e compramos um lápis, estamos trocando um pouco de nossos serviços pela quantidade infinitesimal de serviços; os serviços que cada um dos milhares de indivíduos prestaram para conseguir o que queriam, e que acabaram por produzir o lápis.

É ainda mais surpreendente que o lápis tenha sido produzido. Ninguém sentado em um escritório central deu ordens a essas milhares de pessoas. Nenhum policial militar fez cumprir as ordens que não foram obedecidas. Essas pessoas vivem em países diferentes, falam línguas diferentes, praticam religiões diferentes e podem até se odiar – e ainda assim, nenhuma dessas diferenças os impediu de cooperar para, sabendo ou não, produzir um lápis. Mas como foi que isso pôde acontecer? Adam Smith nos deu a resposta […] há duzentos anos.

A resposta de Smith foi a “mão invisível”. O termo é introduzido no livro que Smith considera sua obra-prima: A Teoria dos Sentimentos Morais, e reaparece em sua obra subsequente, A Riqueza das Nações. A Mão Invisível refere-se aos benefícios não intencionais, mas imensos para a sociedade, que fluem de pessoas que agem em seus próprios interesses, especialmente no interesse econômico, da maneira descrita pelo conto “Eu, o Lápis”. Quase que invisivelmente, a ordem surge das ações auto interessadas de indivíduos, que cooperam com outros de maneira intencional ou não, consciente ou não. A ordem natural declina quando a interação voluntária é prejudicada pela interferência do estado. Em suma, a liberdade traz civilização e prosperidade; o poder produz conflito e pobreza.

“Eu, o Lápis” e “A Mão Invisível” esclarecem outra confusão que pode advir de discussões de ordem espontânea; ou seja: a definição de ordem espontânea como o “resultado da ação humana, mas não da projeção humana” é um pouco ambígua. Claramente, há uma ordem planejada dentro da cadeia de atividades necessárias para fazer um lápis. Os trabalhadores que coletam as matérias-primas trabalham para uma empresa que tem, projetado, um objetivo específico, e o mesmo vale para os trabalhadores dos navios e das docas. A fábrica é uma máquina altamente projetada.

A frase “o resultado da ação humana, mas não da projeção humana” não nega que a produção requer projeção. “Não da projeção humana” significa que nenhum planejador central organiza e coordena qualquer etapa da produção. Toda a organização e estrutura são fornecidas por aqueles indivíduos que, em diferentes etapas, projetam, gerenciam ou trabalham de maneira independente, dentro de suas próprias etapas, para os empreendimentos que resultam, na soma total dessas etapas, em um lápis. Sem uma autoridade de supervisão, eles se coordenam e funcionam bem. De fato, uma autoridade supervisora seria um obstáculo à sua eficiência. A frase “o resultado da ação humana, mas não da projeção humana” procura explicar como redes complexas podem surgir da cooperação “não intencional”: uma cooperação da qual a vida moderna depende.

“Não da projeção humano” refere-se ao exército de estranhos, cujas ações auto interessadas e ostensivamente descentralizadas entregam, sem a necessidade de intenção, uma variedade impressionante de mercadorias. Eles só precisam agir (e sempre agem) em seu próprio interesse. Como resultado, a pessoa média desfruta hoje de um padrão de vida mais alto do que os nobres no passado, incluindo frutas fora de época e uma magnífica variedade de vinhos para acompanhá-las. A cooperação também une as pessoas em paz, porque elas têm interesse em continuar a lucrar umas com as outras por meio do comércio. Multiplique essa cooperação pelos muitos milhões de interações que criam milhões de produtos e serviços, e a dinâmica coletiva se torna uma cola que mantém as sociedades unidas e permite que o comércio global surja: comércio esse que é o motor da paz.

Até agora, a ordem espontânea foi aplicada à economia – a base da sociedade. Dentro da ordem espontânea, a economia é muitas vezes chamada de cataláxia.

Wendy McElroy
Wendy McElroy
Wendy McElroy é escritora, conferencista, articulista freelancer, e membro sênior do Laissez Faire Club.
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