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6 Transgênicos

 

Uma história antiga

 

Voltando do trabalho no final da tarde, você vê um aglomerado de pessoas na praça central da sua cidade, bradando palavras de ordem: “Diga não aos transgênicos! Comida para o povo, não para o lucro!” Em seus cartazes, você pode ler: “Não somos um experimento científico!”, “Não queremos alimentos frankenstein!”, entre outros. Prestando atenção ao pacote de bolacha que está comendo, você nota na embalagem um triângulo amarelo com um T bem grande no meio, feito uma placa de trânsito alertando para um perigo iminente: “contém transgênicos”. Tudo isso lhe deixa cabreiro. Você fica receoso de colocar mais uma bolacha em sua boca.

Por vida das dúvidas, você para de comer e coloca o pacote de volta em seu bolso. Pensativo, você continua caminhando em direção à sua casa: “Será que esse pessoal está certo?” Você já entendeu que o lucro é belo e moral e que esse discurso “contra o capitalismo” é só encenação de virtude, mas a preocupação com a saúde sua e de seus entes queridos existe. “Será que essa inquietação é justificada ou é apenas mais uma histeria de luditas sendo usados como massa de manobra?” — você se questiona. Chegando à sua casa, você abre o computador e começa a ler sobre os tais dos transgênicos.

Transgênicos são organismos geneticamente modificados pelo uso de alguma técnica de engenharia que leva à introdução de genes oriundos de outras espécies. A ideia é que esses genes introduzidos levem a uma maior produtividade, seja por um aumento da biomassa, por uma maior eficiência no uso de recursos naturais, por uma maior tolerância a defensivos agrícolas ou por uma maior resistência a pragas e doenças. As técnicas que usamos hoje começaram a se desenvolver rapidamente a partir dos anos 1970, mas modificações genéticas em espécies domesticadas vêm sendo feitas pela humanidade há mais de 30.000 anos.

Para elaborar sua teoria da evolução, um dos fenômenos que Charles Darwin notou foi justamente a “seleção artificial” feita pelo homem em espécies domesticadas. Esse processo envolve escolher indivíduos com características de interesse e fazer com que se reproduzam entre si. Ao longo de algumas gerações, o uso dessa prática leva a mudanças radicais na espécie. Embora essa seleção artificial não seja o que consideramos engenharia genética hoje, ela é a precursora das técnicas modernas e ilustra como seres humanos vêm alterando o arcabouço genético de outras espécies há milênios.

Um caso interessante de seleção artificial é o do milho. Ainda que cultivado em larga escala e ingrediente de inúmeros itens alimentares, o milho não é encontrado em ambientes naturais em lugar nenhum. Como ele surgiu afinal? Quem resolveu esse mistério foi o geneticista estadunidense George Wells Beadle, que, ainda estudante de pós-graduação, postulou que o milho havia se originado de uma gramínea selvagem chamada de “teosinto”. A espiga do teosinto – curta, pequena e com poucos grãos – é tão diferente da do milho que, inicialmente, a espécie foi considerada aparentada com o arroz.

Entretanto, Beadle observou que os cromossomos do milho e do teosinto eram tão similares que era possível produzir híbridos entre as duas espécies. Ele também conseguiu estourar os grãos do teosinto como pipoca. As grandes diferenças fenotípicas – isto é, na aparência – pareciam ser explicadas por apenas cinco genes. Experimentos posteriores feitos por John Doebley indicaram que a domesticação do milho a partir do teosinto ocorreu no sul do México há 9.000 anos. Portanto, o milho que cultivamos hoje, com mais de 800 grãos em cada espiga, foi selecionado artificialmente a partir do teosinto, com seus 10 grãos por espiga.

Ainda que a seleção artificial seja uma técnica usada há milênios, a polêmica atual relacionada a organismos geneticamente modificados envolve um processo mais moderno de manipulação. O grande salto tecnológico aconteceu em 1973, quando Herbert Boyer e Stanley Cohen conseguiram recortar de uma bactéria um gene que conferia resistência a antibiótico, inserindo-o em outra, que passou também a ser resistente. Por um lado, essa técnica abriu várias possibilidades de pesquisa, mas, por outro, levantou imediatamente uma série de dúvidas sobre possíveis impactos em nossa saúde e no meio ambiente.

De todo modo, as pesquisas continuaram e novas aplicações foram desenvolvidas. Em 1980, a General Electric desenvolveu uma linhagem de bactéria geneticamente alterada para quebrar moléculas de óleo cru e mitigar impactos de derramamentos. Dois anos depois, foi desenvolvida uma linhagem de bactéria geneticamente modificada para sintetizar insulina, permitindo a produção do hormônio em maior quantidade e a menor preço para pacientes diabéticos. Em casos como esses, as vantagens são óbvias o bastante para não serem polêmicas. No caso dos alimentos, porém, a história é um tanto diferente.

 

Medos justificados ou medos infundados?

 

Os primeiros experimentos de campo com plantas genetica-mente modificadas começaram em 1987. Cinco anos mais tarde, após testes intensos, a variedade de tomate Flavr Savr passou a ser comercializada. Essa variedade tinha uma seqüência introduzida que inibia a produção de uma proteína natural do tomate, tornando-o mais firme e estendendo o seu tempo nas prateleiras. Em 1995, uma variedade de batata com o gene para a produção da toxina Bt, extraído da bactéria Bacillus thuringiensis, passou a ser comercializada. Essa batata Bt produzia o seu próprio pesticida biológico e, logo, demandava menos defensivos agrícolas.

No ano seguinte, a Monsanto lançou uma variedade de soja geneticamente modificada para resistir ao glifosato, um herbicida de contato extremamente eficiente, à época também produzido apenas pela empresa. A vantagem dessa variedade é que, por ser resistente ao herbicida, ela tornava o controle de ervas daninhas pelos agricultores muito mais fácil. Logo depois, variedades de outras espécies – como beterraba, canola e milho – resistentes ao glifosato também foram desenvolvidas e lançadas. Elas implicavam não só menores custos para os produtores, como também produtos mais baratos nos pratos dos consumidores.

Manipulando a estrutura genética de bactérias, plantas e animais, é possível aplicar essas técnicas para adiantar o amadurecimento, aumentar o valor nutricional, biodegradar poluentes, conferir resistência a vírus, produzir energia limpa, entre outros. Até aqui, só vantagens, não? Então, por que tanta controvérsia em relação a esses organismos geneticamente modificados? Perceba que esses transgênicos incorporam genes de espécies completamente distantes do ponto de vista evolutivo. Notadamente pelo fato de essa manipulação envolver espécies nada aparentadas é que surgem tantas preocupações.

Essas controvérsias decorrem normalmente de uma abordagem utilitarista, empirista: coletam-se dados em campo ou em laboratório, a partir dos quais se induzem conclusões. Utilitarismo sempre é problemático, pois, como nossas preferências são subjetivas, o que é útil para um não o é para outro. Além disso, muitas vezes, os experimentos são mal delineados, com poucas réplicas, sem aleatorização das unidades amostrais ou sem os controles adequados. As análises estatísticas, como vimos, facilmente nos enganam, especialmente em situações com muitas variáveis, como é o caso. Vejamos dois exemplos.

Primeiro, um estudo liderado pelo entomologista John Losey, publicado em 1999, afirmou, com base em testes conduzidos em laboratórios, que o pólen do milho Bt representava um sério risco a populações da borboleta-monarca, diminuindo sua taxa de crescimento e aumentando sua taxa de mortalidade. Na época, a repercussão desse artigo foi enorme, levando muitos a se oporem ao cultivo de plantas Bt. Porém, estudos subsequentes, feitos em campo, sustentaram que essas variedades geneticamente modificadas eram seguras e não colocavam em perigo populações de insetos selvagens.

Segundo, no final do século passado e início deste, suspeitou-se que colheitas fracas de algodão transgênico na Índia tinham levado muitos agricultores à bancarrota e, em alguns casos, ao suicídio. Novamente, isso provocou um grande comoção na população, que passou a exigir que fossem tomadas medidas severas contra os transgênicos. Mais tarde, essa suspeita foi rechaçada: a introdução do algodão geneticamente modificado não havia alterado a taxa de suicídio e, na verdade, tinha trazido uma série de benefícios econômicos para a imensa maioria dos agricultores indianos.

Em ambos os casos, mesmo que as conclusões dos estudos iniciais, que apontavam riscos dos transgênicos, tenham sido refutadas posteriormente, o estrago já estava feito. O receio de muitos a esses organismos geneticamente modificados já estava incutido em suas mentes. A repercussão dos artigos subsequentes foi infinitamente menor do que a dos artigos originais. Isso é normal e está relacionado com um comportamento de “aversão ao risco” que carregamos conosco: tendemos muito mais a reter informações negativas do que positivas, superestimando riscos, o que afeta a maneira como tomamos decisões e agimos.

Ainda que não haja evidências contundentes de que os transgênicos sejam mais perigosos do que os cultivos tradicionais, não faltam opositores à tecnologia. Embora a transferência de genes em espécies selvagens ocorra naturalmente, há consequências desconhecidas relacionadas à introdução artificial de genes. Ela pode alterar o metabolismo do organismo modificado e sua resposta a fatores bióticos e abióticos, o que, por sua vez, pode impactar o ambiente em que vive. Riscos à saúde humana incluem a exposição a novos alergênicos e a transferência para nossa flora intestinal de genes resistentes a antibióticos.

Tais preocupações são legítimas. O ceticismo é até certo ponto desejável, e o debate é bem-vindo. Da mesma forma que pode haver vieses em estudos que alertam para os riscos dos organismos geneticamente modificados, pode haver vieses em estudos que os consideram seguros. Obviamente, os mais críticos aos transgênicos podem fazer seus protestos – desde que pacíficos – e podem tentar convencer os outros, usando os argumentos que lhe parecem convincentes, mesmo que sejam argumentos utilitaristas. Uma linha é cruzada, porém, quando se começa a ameaçar de agressão aqueles que estão quietos em seus cantos.

 

O culpado de sempre

 

Essa linha é cruzada quando se pede a interferência do nosso vilão usual, do nosso mordomo dos romances policiais, o estado. Ainda que com boas intenções, quem clama por intervenção estatal está pedindo que sua estrutura coercitiva seja usada contra pessoas que estão simplesmente tentando levar suas vidas sem atacar ninguém. Nesse caso, por meio de agressão ou ameaça de agressão, essas pessoas são forçadas a fazer o que não querem ou a deixar de fazer o que querem. Isso é uma clara violação do direito natural delas à autopropriedade e, portanto, é antiético.

Além disso, quem clama por intervenção estatal está defendendo distorções econômicas que, em última instância, vão prejudicar especialmente os mais pobres. Como já discutimos, essa intervenção encarece os produtos, desestimula a inovação, impõe barreiras de entrada e favorece as grandes corporações, que têm condições de arcar com os custos elevados e de pagar lobistas para convencer políticos a aprovarem o que lhes é conveniente. Hoje em dia, transgênicos são fortemente regulados pelo estado e, em alguns países, sua comercialização e seu plantio até são proibidos.

Com isso, muitos sequer têm a chance de aproveitar os benefícios que esses alimentos podem trazer. Há situações em que transgênicos podem ser uma questão de vida ou morte, como no caso da desnutrição. Por exemplo, o “arroz dourado” é uma variedade geneticamente modificada para produzir betacaroteno. Quando ingerido, o betacaroteno é convertido em vitamina A, que é essencial para preservar nossa visão e manter nosso sistema imunológico, entre outros benefícios. Cerca de 250 milhões de crianças em idade pré-escolar sofrem de deficiência de vitamina A, das quais quase três milhões chegam a morrer.

Pois bem, apesar de o arroz dourado ter o potencial de ser a solução para esse problema, ele encontrou uma oposição ferrenha, especialmente por parte de algumas organizações não-governamentais, como o Greenpeace. Elas alegam que há várias outras alternativas já disponíveis, mais baratas e que não usam transgênicos. Até aqui, nenhum problema, elas estão exercendo sua liberdade de expressão, apresentando argumentos e procurando convencer as pessoas a usarem outros produtos. O problema surge quando essas organizações pressionam governos e exigem que eles proíbam o arroz dourado e outros transgênicos.

Esse tipo de pressão tem dado resultado, e muitos países vêm impondo fortes regulações aos organismos geneticamente modificados. Já há pelo menos 64 países que obrigam a rotulagem de alimentos com ingredientes transgênicos, entre os quais Austrália, Brasil, China, Japão e a maioria dos países da Europa. Os que defendem essa rotulagem obrigatória alegam que os consumidores devem ter acesso a essa informação para que possam decidir se querem consumi-los. Há ainda países que proibiram tanto seu cultivo quanto sua importação, como Argélia, Butão, Madagascar, Peru, Quênia e Rússia.

Talvez na Europa é que essa pressão seja mais forte. Não por acaso, em 2015, foi aprovada uma legislação que permite aos países da União Européia banir o cultivo de transgênicos em seus territórios. Entre os que optaram pelo banimento estão a Alemanha, Áustria, Bélgica, França, Itália e Polônia. Apesar disso, quase todos os países europeus permitem a importação de alimentos transgênicos. Inclusive, boa parte das rações usadas na criação de animais e dos alimentos industrializados contém ingredientes de variedades geneticamente modificadas. Ah, as incoerências das legislações positivistas!

Aqui no Brasil, políticos também se julgam no direito de decidir o que pode e o que não pode ser feito em relação a esses organismos. Uma legislação sobre a “biossegurança nacional” foi aprovada em 2005, estabelecendo “normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados”. Em outras palavras, transgênicos são pesadamente regulados no país.

Mas aí o justiceiro ambiental exclama: “A população não tem capacidade para avaliar os riscos de algo tão complexo quanto os transgênicos! Por isso, precisamos do estado para avaliar se eles são seguros ou perigosos!” Ah, meu caro justiceiro, achar que políticos e seus sectos de tecnocratas serão capazes disso é, no mínimo, muita ingenuidade. Esses que pedem intervenção estatal no assunto estão considerando que as pessoas não são capazes de decidir sozinhas quais alimentos vão consumir, mas são capazes de eleger políticos suficientemente iluminados para salvá-las delas mesmas. Isso não faz o menor sentido.

 

O vilão insuspeito

 

Antes de discutirmos as soluções reais, vamos pensar um pouco em algo que é frequentemente negligenciado, mas que contribui bastante para o surgimento de problemas relacionados aos transgênicos: a “propriedade” intelectual. Veja, a defesa do nosso direito natural à propriedade privada é a base da civilização. Quanto mais uma sociedade defendê-lo, mais ela prosperará. Qual é o problema então com a “propriedade” intelectual? Simples: ela não é propriedade. Lembre-se, o conceito de propriedade privada decorre do fato de que recursos são escassos, isto é, não há de tudo para todos a todo momento.

Assim, uma maçã é um recurso, porque duas pessoas não podem juntas comê-la toda. Esta maçã em particular é minha, porque eu a troquei com um feirante por dinheiro. Ao fazer isso, o título de propriedade desta maçã passou a ser meu, enquanto que o daquelas cédulas que estavam em meu bolso passou a ser do feirante. Ele tinha algo que eu preferia em relação às cédulas e vice-versa. Voluntariamente fizemos a troca e, com isso, evitamos um conflito. Se eu tivesse simplesmente pegado a maçã de sua barraca, isso seria roubo, porque eu estaria me apropriando indevidamente de seu trabalho e impedindo que ele usasse aquele recurso.

E eis o cerne do problema: uma ideia não é escassa. O fato de alguém usar uma ideia não impede que outro a use também. Pensemos na brilhante ideia que alguém um dia teve de inventar a roda. O fato de eu ter usado essa ideia para construir um carrinho de rolimã ontem não impede que um engenheiro a use para projetar um carro amanhã. Felizmente, essa ideia da roda não é protegida, e podemos usufruir seus benefícios livremente, mas há várias outras ideias hoje protegidas por marcas, patentes, direitos autorais e outros absurdos positivistas. Como toda legislação positivista, isso é algo arbitrário e instituído de cima para baixo.

Dada sua contradição lógica, restam aos defensores do conceito de “propriedade” privada argumentos utilitaristas: “Mas quem vai criar novas marcas se elas não puderem ser registradas? Quem vai projetar novos computadores se não houver patentes? Quem vai compor músicas se não houver direitos autorais?” — talvez você se questione. Primeiro, algo ser útil ou conveniente para alguém não o torna necessariamente ético. Segundo, ao contrário, sem as amarras impostas por esse conceito, todos nós teríamos muito mais liberdade para inventar e criar sem medo de sermos agredidos.

E esse ponto é notadamente importante: o conceito de “propriedade” intelectual envolve a agressão. Aquele que consegue do estado um documento que ateste sua “propriedade” sobre uma determinada ideia pode explorá-la exclusivamente, ou seja, de forma monopolista, por um certo período, aproveitando-se dos fuzis estatais. Trocando em miúdos, “propriedade” intelectual nada mais é do que o uso do aparelho coercitivo estatal para proteger uma ideia por meio de agressão ou ameaça de agressão. Não por acaso, portanto, esse conceito favorece especialmente os amigos do rei, como as grandes corporações.

No caso dos organismos geneticamente modificados, corporações podem deter o monopólio de uma variedade transgênica graças à legislação sobre “propriedade” intelectual. Tais corporações podem financiar campanhas eleitorais, pagar lobistas para terem projetos de seu interesse aprovados por políticos e usar o sistema judiciário estatal para perseguir os que as questionam. E isso só pode acontecer porque vivemos em uma desordem socialista, em que políticos têm o poder de mandar em nossas vidas, mesmo que não agridamos ninguém. Usando uma linguagem clara, os que pagam o “pizzo” ganham a proteção da máfia.

O que essa legislação sobre “propriedade” intelectual faz é criar barreiras de entrada ao setor dos transgênicos, encarecendo os alimentos e tornando tanto os produtores rurais quanto os consumidores finais reféns dessas grandes corporações. No caso das variedades resistentes a herbicidas, é possível inclusive que, além da semente, o herbicida também seja patenteado pela mesma companhia, tornando a dependência quase completa. Isso, por sua vez, favorece latifundiários, que têm condições de arcar com os custos de produção maiores, em detrimento de pequenos proprietários rurais.

O problema não são os transgênicos em si, nem a motivação pelo lucro. O problema é o uso dos mecanismos estatais de agressão para proteger grandes empresas da concorrência e perseguir judicialmente cidadãos pacatos, usando a desculpa da “propriedade” intelectual. Há um caso emblemático, que rendeu dois filmes, “David contra Monsanto” de 2009 e “Percy” de 2019, envolvendo o agricultor canadense Percy Schmeiser. Em 1998, Schmeiser foi processado pela Monsanto por violação de patente. Segundo a empresa, ele estava usando a variedade de canola “Roundup Ready”, resistente ao glifosato, sem sua autorização.

Schmeiser, por sua vez, alegou que as sementes geneticamente modificadas haviam chegado à sua fazenda por acidente e que eram suas porque estavam em suas terras. Em uma decisão apertada, cinco votos a quatro, a corte federal canadense deu ganho de causa à Monsanto. Não cabe aqui entrar nos meandros jurídicos do caso, mas o mero fato de uma companhia poder processar um agricultor simplesmente porque havia sementes de uma certa linhagem nas terras dele é em si um absurdo tão grande que só o sistema legal positivista a que estamos submetido pode proporcionar. O que fazer então?

 

A fácil solução

 

O caso dos transgênicos nos fornece um bom modelo de como questões polêmicas podem ser facilmente resolvidas em uma sociedade libertária. A solução, como sempre, é a ética da propriedade privada, ou seja, é o respeito ao nosso direito natural à autopropriedade. Essa ética leva ao princípio de não-agressão, segundo o qual não devemos agredir ou ameaçar agredir uma pessoa pacífica. Isso inclui não só o corpo dessa pessoa como também os bens que ela adquiriu por meio do seu trabalho ou de trocas voluntárias. Esse é o único sistema ético possível, válido para qualquer pessoa, em qualquer lugar, a qualquer momento.

Pois bem, pensemos em um exemplo. Em Mineiros, no sul de Goiás, há dois fazendeiros, S. Francisco e S. Osvaldo, que têm terras lado a lado. Há muitos anos, Francisco conquistou a então namorada de Osvaldo e se casou com ela, gerando uma rivalidade entre os dois que ainda não foi completamente esquecida. Enquanto o primeiro é um fervoroso defensor da soja transgênica, o segundo é mais cético e prefere cultivar variedades não modificadas geneticamente. Usando argumentos utilitaristas, mas talvez também por ressentimento, Osvaldo vem apoiando políticos que prometem endurecer a legislação sobre transgênicos.

Se uma legislação mais dura for aprovada, Osvaldo pode se dar bem, tanto economicamente, porque não vai precisar competir com a soja transgênica de Francisco e dos demais fazendeiros que a plantam, quanto pessoalmente, pois vai ter sua vingança, ainda que menos do que ele acha que Francisco merece. Na desordem socialista em que vivemos, o incentivo é para isso, é para usar essa “via política”. Melhor seria se estivéssemos em uma ordem libertária, e o incentivo fosse para que se usasse a “via econômica”. Nesse caso, a regra é clara: nas suas respectivas terras, Francisco e Osvaldo plantam o que quiserem.

Agora, digamos que Francisco esteja cultivando soja transgênica e Osvaldo, soja tradicional. Como suas fazendas são vizinhas, naturalmente há, entre elas, fluxo de grãos de pólen e sementes provocado pelo vento ou por animais. Normalmente, isso não é um problema, mas um dos receios que os críticos aos transgênicos possuem é que esses grãos de pólen e sementes tenham algum efeito tóxico na saúde ou no ambiente. Se, por algum motivo, os grãos de pólen e as sementes transgênicas de Francisco provocarem de fato algum dano à família ou ao cultivo de Osvaldo, teremos um caso de poluição.

Se for esse o caso, no nosso sistema judiciário positivista atual, Osvaldo terá uma batalha jurídica muito árdua pela frente. Como, embora regulados, transgênicos são aprovados pela legislação brasileira, Francisco poderá alegar: “Fiz tudo dentro da lei. Se houve algum problema, não foi culpa minha”. Ele ainda contará com a arbitrariedade da legislação positivista e a morosidade da justiça estatal para se eximir de uma eventual culpa. E, por outro lado, se as alegações de Osvaldo forem infundadas, este poderá contar com esse sistema judiciário estatal para prolongar o conflito e buscar alguma punição injusta.

Seria muito diferente em um sistema judiciário naturalista, em que os dois teriam de concordar voluntariamente com um tribunal privado, de boa reputação, para examinar o caso e decidir quem tem razão. Esse tribunal teria todos os incentivos possíveis para resolver a disputa justa e rapidamente. “Mas e se Francisco se recusasse a levar o caso para um tribunal privado?” — você se questiona. A dúvida é pertinente, mas isso não seria uma boa ideia. Sua recusa implicaria que ele não reconhece o sistema de justiça e que, portanto, não poderia acioná-lo quando se sentisse prejudicado por qualquer motivo.

E os consumidores, como ficam? Enquanto hoje políticos decidem se, quais e como produtos com ingredientes derivados de transgênicos podem ser consumidos, em um ordenamento libertário essa decisão caberia única e exclusivamente ao consumidor: cada um consumiria o que quisesse. Como já nos diz a sabedoria popular, “cada um sabe onde o calo aperta”. Logo, caberia a cada um decidir o melhor para si, buscando as informações necessárias, ponderando os prós e os contras dos alimentos transgênicos e não-transgênicos e optando por consumir estes ou aqueles.

Em relação às informações disponíveis nas embalagens, a rotulagem não pode ser obrigatória, pois isso é uma clara violação do direito à autopropriedade do fabricante. Contudo, demandas dos consumidores levam naturalmente a selos de certificação. Portanto, se hoje temos aquele triângulo amarelo ameaçador colocado de forma obrigatória nas embalagens que contêm ingredientes transgênicos, em uma sociedade libertária teremos selos de certificação, emitidos por entidades privadas competindo entre si, atestando, por exemplo, que determinado produto não contém ingredientes modificados geneticamente.

Esse tipo de certificação, por sinal, já existe. Uma dessas certificadoras é a NSF International, localizada em Michigan, nos Estados Unidos, que analisa toda a cadeia logística de um dado produto e, se não houver ingredientes transgênicos usados nela, confere a tal produto um selo de “não modificado geneticamente”. Ou ainda a companhia A Greener World, que oferece um selo de certificação nos mesmos moldes. A necessidade de competir por clientes e possuir uma boa reputação incentiva certificadoras como essas a analisarem com rigor os produtos que receberão seus selos.

Em uma sociedade libertária, isto é, em um ambiente de livre-mercado, todas as preferências subjetivas dos consumidores se refletem no sistema de preços. Se a demanda por transgênicos for baixa, porque os consumidores acreditam que os riscos são altos, o preço tenderá a diminuir, desincentivando os pecuaristas e os agricultores – até o S. Francisco! – a produzi-los. Se a demanda for alta, porque os consumidores acreditam que os benefícios sobrepujam os riscos, o preço tenderá a aumentar em um primeiro momento, estimulando a oferta e levando em um segundo momento a um barateamento.

Da mesma forma, se os consumidores considerarem a certificação importante, eles se disporão até a pagar mais por um produto com um selo de “não-transgênico”, caso o considerem mais saudável, assim como o fazem com produtos orgânicos. O sistema de preços refletirá fielmente as preferências dos consumidores em relação a alimentos transgênicos e não-transgênicos de um modo que nenhum planejador central é capaz de fazer. Sem agredir ninguém, a propriedade privada nos dá um critério ético, simples e claro para dirimir conflitos e resolver eventuais disputas. Esta é a beleza do livre-mercado.

 

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Fontes

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Marco Batalha
Marco Batalha
é biólogo, com mestrado e doutorado em Ecologia. Professor titular da Universidade Federal de São Carlos. Tem mais de 90 artigos científicos, publicados em revistas como Diversity and Distributions, Ecology, Oecologia, Oikos e Plant Ecology. É autor do livro 'O Ambientalista Libertário'.
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