InícioUncategorized5. Quando a Privacidade é Criminalizada, Apenas os Criminosos têm Privacidade

5. Quando a Privacidade é Criminalizada, Apenas os Criminosos têm Privacidade

“Eu cresci entendendo que no mundo em que eu vivia as pessoas desfrutavam de uma espécie de liberdade para se comunicarem umas com as outras em privacidade, sem serem monitoradas, medidas, analisadas ou julgadas por essas figuras e sistemas sombrios que vivem mencionando o tempo todo na mídia.”

– Edward Snowden

Quero a seguinte mensagem escrita em minha lápide: “Eu vivi. Eu morri. Agora cuide da sua maldita vida.” O que eu teria a esconder? Tudo! Que é o mesmo que dizer: qualquer informação que eu seja obrigada a revelar são dados que eu me recuso a divulgar.

No entanto, uma questão fundamental paira sobre essa retórica fervorosa e rebelde:

 

O que é Privacidade?

 

Uma resposta famosa vem de um artigo dos advogados americanos Samuel Warren e Louis Brandeis, que apareceu em uma edição de 1890 da Harvard Law Review. É uma das peças mais influentes na história da teoria jurídica ocidental. “The Right to Privacy” foi chamado de primeiro apelo proeminente para a privacidade como um conceito a ser consolidado na lei.

O artigo começa da seguinte maneira:

“QUE o indivíduo deve ter plena proteção pessoal e patrimonial é um princípio tão antigo quanto o direito comum; mas foi considerado necessário, de tempos em tempos, definir novamente a natureza exata e a extensão de tal proteção.”

Em outros lugares, a privacidade é definida como o direito de ser deixado em paz.

O artigo defende a privacidade como um direito humano “fundamental” ou básico sobre o qual repousam todos os outros direitos. “O direito de propriedade em seu sentido mais amplo, incluindo todos os direitos e privilégios e, portanto, abrangendo o direito a uma personalidade inviolável, justifica sozinho aquela ampla base sobre a qual pode repousar a proteção que o indivíduo exige”. A privacidade é um pré-requisito para todos os outros direitos: liberdade de expressão, sexualidade, liberdade de consciência e segurança financeira dependem disso, porque nenhum direito pode ser exercido na presença de storm troopers batendo à porta. E por isso o direito de trancar essa porta é essencial.

Curiosamente, o artigo de Brandeis-Warren foi uma resposta a desenvolvimentos tecnológicos que ameaçavam a privacidade pessoal. Um dos desenvolvimentos foi a câmera portátil, com a qual jornalistas fotografavam pessoas importantes em locais que antes eram privados, como restaurantes, casamentos e funerais. Hoje, o foco da proteção da privacidade mudou dos jornalistas para o estado, para o qual “privacidade” é sinônimo de “sigilo”. A privacidade não é mais um direito, mas uma provável causa de suspeita. A mudança na definição reflete o quão poderoso o estado se tornou desde a década de 1890 – e o quão enfraquecido se tornou o indivíduo.

Embora a privacidade tenha sido um tema tanto no direito consuetudinário quanto nas sociedades ocidentais, seu status legal tem sido vago. De fato, antes do “Direito à Privacidade”, a proteção legal da privacidade era fragmentada em questões específicas. Leis contra invasão existiam, por exemplo, mas a codificação do conceito amplo de privacidade não existia.

Afinal, o que significa o “direito de ser deixado em paz”? Grande parte deste capítulo explora uma resposta.

Todo mundo sabe que a bolsa de uma mulher não deve ser roubada, nem sua janela espiada e tão pouco sua casa assaltada. Esses são obviamente e intuitivamente casos de violações de privacidade, mas não são o tipo de violação que os usuários de criptomoedas provavelmente enfrentarão. Os usuários de criptos lidarão com suas informações pessoais sendo extraídas e monitoradas – muitas vezes secretamente – para serem usadas contra eles de alguma maneira. Com o estado, o objetivo da extração de dados e do monitoramento é o controle social, a tributação, o confisco e a prisão. Com criminosos, o objetivo é o roubo, a chantagem e a extorsão.

Espiar pela janela do quarto pode ser uma violação óbvia de privacidade, mas e os bisbilhoteiros que acessam informações públicas, como as incorporadas à blockchain? O registro financeiro aberto da blockchain permite que partes indesejadas monitorem transações financeiras que os usuários tornam públicas voluntariamente. Se um bisbilhoteiro analisa o padrão de transferências e desmascara a identidade de um usuário, então a privacidade foi violada? A blockchain é uma rede pública, onde as pessoas trocam voluntariamente de uma maneira que sabem ser transparente e registrada. Espionagem é semelhante a ouvir pessoas que estão falando audivelmente em público. Mas será que ouvir é um ato culposo, especialmente quando feito por agentes do estado ou outros maus agentes? De fato, o estado e outros criminosos usam a informação de maneira maléfica, mas essa questão é irrelevante para definir se o ato de simplesmente ouvir é errado em si.

Avaliar essa questão significa colocar a privacidade no contexto de outros direitos humanos.

 

O contexto dos direitos humanos à privacidade

 

Murray Rothbard afirma que todos os direitos humanos são direitos de propriedade. Ou seja, todos os direitos se resumem à questão de quem controla adequadamente o uso e o descarte de uma coisa, seja a coisa uma ferramenta, uma ideia ou um corpo humano. É sempre possível usar a força para usurpar o controle de qualquer coisa, é claro, mas a questão de quem é o proprietário adequado permanece.

Rothbard responde: O proprietário é o indivíduo que detém o título válido da coisa. A verdadeira propriedade não é uma questão de puro controle, que pode ser adquirido através da força bruta, mas de controle legítimo, que vem da aquisição pacífica do título. Não pode haver título mais óbvio ou válido do que aquele que os indivíduos têm sobre seus próprios corpos. De fato, tentar negar esse título se reduz à obscenidade ou ao absurdo. Existem apenas três posições possíveis sobre quem possui o corpo de uma pessoa: a própria pessoa (liberdade), outra pessoa (escravidão), ou é bagagem não reclamada. Aqueles que valorizam a liberdade e os direitos humanos defendem a autopropriedade.

Novamente, a definição clássica de autopropriedade: todo ser humano tem jurisdição moral e lógica sobre seu próprio corpo e o uso pacífico dele, incluindo os produtos de seu trabalho. Nenhum direito é mais fundamental do que a autopropriedade, porque ela é a própria fonte de todos os outros direitos. A liberdade de consciência e de expressão só existe porque os indivíduos têm a capacidade de pensar e falar, e ambos são aspectos do corpo humano. O direito de autodefesa existe apenas porque as pessoas são donas de seus corpos e têm o direito de proteger sua propriedade. O outro lado dos direitos é o dever. Assim como todos os outros seres humanos são moral e logicamente proibidos de iniciar a força contra você, você tem o dever de desistir de iniciar a força contra eles.

Se existe um direito à privacidade, então ele deve estar enraizado na autopropriedade. Deve ser o que se chama de direito natural. E, se a privacidade é um direito, outras pessoas têm o dever de desistir de violá-la.

A questão não é trivial. A propriedade de si mesmo e a privacidade estão ambas sob o constante ataque do maior bisbilhoteiro da história: o estado. O estado, com extremo preconceito, pretende usar os dados que coleta contra as pessoas. Em seu livro, Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed, o cientista político James C. Scott comenta o papel que apenas uma forma de coleta de dados desempenhou na ascensão do estado moderno: o censo. “Se imaginarmos um estado que não tem meios confiáveis de enumerar e localizar sua população, medir sua riqueza e mapear suas terras, recursos e assentamentos, estamos imaginando um estado cujas intervenções nessa sociedade são necessariamente brutas.” O estado atual é sofisticado e complexo.

Informação é poder, tanto para o indivíduo quanto para o estado. Uma razão pela qual o estado consegue adquirir dados é que a privacidade é um conceito mal definido que as pessoas não entendem como parte do contexto mais amplo dos direitos. Outra razão é que a informação é efêmera e parece menos propensa à posse do que uma mesa ou um carro.

A avaliação de se a privacidade de dados é um direito natural depende de duas questões. Como um prelúdio para considerá-las, pondere se você tem o direito de propriedade sobre seus pensamentos e sua expressão, incluindo a expressão de informações pessoais. Essa ampla indagação é fundamental para a questão da propriedade intelectual, que é a afirmação de que as ideias e suas expressões podem ser possuídas. As pessoas chegam a conclusões dramaticamente diferentes, e a propriedade intelectual é frequentemente reivindicada como um direito natural. A mesma questão confronta a privacidade, que também aborda a propriedade das informações pessoais e a expressão delas.

Pergunta # 1: Quem é o dono do que está na sua mente?

A maioria das pessoas declararia em voz alta: “ninguém é dono do que está em minha mente!”. Seus pensamentos são seus pela mesma razão que seus dedos e olhos; eles são parte de seu corpo, e seu corpo é quem você é. É você. Ninguém mais tem o que clamar ao reivindicar jurisdição sobre seu corpo. Mas e se o pensamento em sua mente for uma fórmula química originada por um colega de trabalho e escrita em um quadro-negro durante uma palestra que você assistiu? A fórmula agora faz parte da sua mente, assim como da dele e, se ele pode reivindicar o direito de usá-la porque faz parte do corpo dele, você não deveria poder fazer a mesma reivindicação?

Nesse ponto, o argumento do colega de trabalho geralmente muda de terreno. Ele originou a ideia, diz ele; a fórmula é um produto de seu trabalho, e possuir os produtos de seu trabalho é uma extensão da propriedade de si mesmo. Não importa se a ideia está em sua mente agora; é ideia dele. Ele a encontrou primeiro.

Deixando de lado o fato de que o colega de trabalho provavelmente utilizou as ideias e o trabalho de centenas de pessoas antes dele – ou seja, a fórmula também é produto do trabalho deles – vamos supor que ele adicionou um refinamento totalmente original. O que é que tem? No instante em que você vislumbrou a fórmula, o conceito mudou. A fórmula foi integrada a todos os outros conceitos que você tem sobre química, tecnologia e vida em geral. A fórmula em sua mente é ligeiramente ou consideravelmente diferente daquela no quadro-negro ou na mente de seu colega de trabalho. Como então ele pode reivindicar direitos de propriedade em uma ideia baseada no trabalho anterior de outras pessoas enquanto nega seus direitos de propriedade em uma ideia baseada em seu trabalho anterior?

A linha de chegada do cenário: ninguém tem direito ao que está em sua mente. O que é chamado de privacidade nesta circunstância se reduz à autopropriedade. Você é dono daquilo que está sob sua pele, incluindo as suas ideias. O libertário do século XIX James Walker afirma: “Meus pensamentos são minha propriedade, assim como o ar em meus pulmões é minha propriedade […]” Quando você expira, no entanto, você perde todo o direito de propriedade do ar expelido. O mesmo vale para ideias ou informações que são lançadas na esfera pública; você perde todas as reivindicações de privacidade, exceto e a menos que haja um acordo prévio de confidencialidade em vigor. Nessas circunstâncias, sua reivindicação de privacidade ou propriedade de informações não é uma questão de direitos naturais, mas de direitos contratuais.

O paralelo com as informações financeiras: os usuários de cripto perdem qualquer expectativa razoável de privacidade ou propriedade das informações quando elas entram na blockchain ou em outra esfera pública. Um bisbilhoteiro que acessa os dados nada mais faz do que ver aquilo que é de conhecimento e acesso público. O bisbilhoteiro pode usar o conhecimento de forma que prejudique um usuário, mas o uso da informação é uma questão diferente de como ela foi obtida.

Pergunta #2: Como os dados foram obtidos?

A resposta a esta pergunta é distinguir entre a espionagem legítima e o ato criminoso. Bisbilhoteiros legítimos não fazem mais que acessar informações divulgadas publicamente ou livremente e, ainda que sejam inconvenientes, de forma alguma violam direitos. Por outro lado, bisbilhoteiros criminosos violam direitos de propriedade privada para acessar dados. Tocar em um telefone ou computador é como invadir a casa de uma pessoa para vasculhar um arquivo ou uma mesa. Um recenseador que ameaça uma pessoa que não responde com multas ou prisão está usando meios criminosos para acessar informações. O teste decisivo para distinguir entre espionagem legítima e espionagem crime é se a aquisição de dados envolve uma violação de direitos.

Rothbard argumenta que “não existe direito à privacidade, exceto o direito de proteger a propriedade de uma invasão”. Em outras palavras, não há direito natural à privacidade per se. A informação é privada em virtude de estar protegida por outros direitos. Uma pessoa tem o direito de ocultar informações, por exemplo, porque o direito à liberdade de expressão inclui o direito de permanecer em silêncio, e quebrar um determinado silêncio requer ameaças ou violência. Da mesma forma, uma pessoa tem o direito de fechar a porta atrás de si, e as informações nos papéis em sua mesa são protegidas de intrusos por seu direito de propriedade sobre a casa. A privacidade da informação é protegida pelo muro de direitos que a cerca, mas isso não faz da privacidade um direito em si.

Por outro lado, se uma pessoa grita informações pessoais em praça pública ou se joga seus papéis pela janela ao vento, seus dados não estão mais protegidos por seus direitos de propriedade. A pessoa os colocou na esfera pública e abandonou a reivindicação de controle exclusivo.

A abordagem Satoshi da privacidade tem um pé em ambos os mundos – abandono público de informações junto com privacidade protegida por direitos naturais. Uma blockchain transparente funciona com usuários anônimos ou pseudônimos que empregam chaves públicas e privadas. Os dados sobre as transações foram jogados ao vento, mas as identidades são protegidas por outros direitos. Em outras palavras, desmascarar a identidade de alguém ou sua chave privada requer uma violação dos direitos de propriedade que os cercam e protegem – o direito da pessoa ao seu computador, por exemplo. A propriedade consiste no direito exclusivo de controlar e usar uma coisa; se o estado acessar um computador sem considerar o consentimento do proprietário real, então o estado está usurpando a propriedade do computador e violando descaradamente os direitos do proprietário real.

 

Uma mudança dramática no paradigma da privacidade

 

A abordagem Satoshi pode confundir algumas pessoas. Enquanto elas se apegarem ao velho paradigma de privacidade – isto é, privacidade é igual a ocultação – a transparência da blockchain continuará a soar como uma sentença de morte. Mas o novo paradigma da privacidade é a transparência das informações e a proteção da identidade. O foco mudou de informações sobre atividades para informações sobre nomes verdadeiros.

A transparência das transações serve a um propósito vital. Por uma questão de honestidade e eficiência, a blockchain publica todas as suas atividades. A proteção dos Nomes Verdadeiros também serve a um propósito vital. Por uma questão de liberdade pessoal, os participantes mascaram suas identidades à vontade e com facilidade. A blockchain exige a verificação de identidade tanto quanto uma mercearia exige o registro dos nomes daqueles que compram leite nela. Que todos vejam, que todos verifiquem a veracidade da transação. Que ninguém exija informações pessoais sobre quem é o porquê da troca. Tanto a honestidade quanto a privacidade são preservadas, mas o vínculo entre uma transação e um Nome Verdadeiro é quebrado. O restabelecimento forçado desse vínculo ameaça a riqueza e a liberdade dos usuários.

No passado, o foco do estado era a divulgação ou vigilância forçada de informações sobre atividades, porque o estado havia encurralado a “indústria da identidade”. Desde o nascimento, as pessoas são registradas, certificadas, gravadas e processadas de acordo com os números e outros identificadores emitidos pelo estado. David Friedman observa em seu ensaio “The Case for Privacy”, “É difícil passar pelo mundo sem deixar rastros. Em algum lugar há um registro de todos os carros que comprei, todos os formulários de impostos que paguei, dois casamentos, um divórcio, o nascimento de três filhos, milhares de postagens em fóruns on-line sobre uma ampla variedade de assuntos, quatro livros publicados, registros médicos e muito mais.”

A identidade e o Nome Verdadeiro dos indivíduos são muito mais conhecidos do que suas interações, muitas das quais podem ocorrer em segredo e silêncio. O modelo Satoshi inverte essa situação. Ele torna todas as interações públicas com todas as identidades permanecendo privadas a critério dos indivíduos. O estado não controla mais a identidade e, sem esse controle, o acesso a todas as outras informações têm pouco valor. E o estado sabe muito bem disso.

A era digital mudou o Zeitgeist cultural, político e psicológico da privacidade. “Cuide da sua maldita vida!” já foi uma atitude respeitada, mas o estado lentamente corrompeu a ideia de que pessoas inocentes precisam de privacidade. Eis o novo Zeitgeist: apenas aqueles que têm algo a esconder se recusam a responder a perguntas ou a serem observados. “Só os criminosos temem a vigilância do estado” é uma resposta comum para quem defende a privacidade hoje. Mas toda pessoa pacífica é agora um criminoso com algo a esconder. Por quê? Porque todos ultrapassaram o limite de velocidade, usaram drogas ilegais, contrabandearam bebidas baratas ou cigarros através da fronteira, fizeram acréscimos “não autorizados” a um imóvel, enganaram um agente do estado, sonegaram sua renda ou violaram uma das dezenas de milhares de leis estatais que criminalizam o comportamento inofensivo de maneira onipresente. A maioria das pessoas não está ciente de quantas leis eles quebram no decorrer de uma vida cotidiana pacífica.

Em seu livro Three Felonies A Day: How the Feds Target the Innocent, o advogado Harvey Silverglate detalha como o americano médio acorda e segue sua rotina diária, sem saber que provavelmente cometerá vários crimes federais ao fazê-lo. O número de crimes federais aumentou exponencialmente nas últimas décadas e os promotores agora podem escolher entre uma infinidade de crimes vagamente definidos para acusar indivíduos pacíficos de todas as origens, profissões e status. Uma combinação de leis amplas e mal definidas, a guerra às drogas e promotores de carreira que são imunes às consequências transformaram a justiça em uma burocracia livre de consciência, onde parece não haver espaço para a inocência ou culpa. Silverglate observa um procedimento padrão para os burocratas da justiça:

Os promotores são capazes de estruturar acordos de delação premiada, de maneira que torna quase impossível para pessoas normais, racionais e calculistas se arriscarem a ir a julgamento. A pressão sobre réus inocentes para se declararem culpados e “cooperar” testemunhando contra outros em troca de uma sentença reduzida é enorme – tão grande que essas testemunhas que cooperam muitas vezes deixam de dizer a verdade, dizendo, em vez disso, o que os promotores querem ouvir.

O livro de Silverglate evoca uma assustadora citação infame da era soviética, dita pelo desprezado Beria, chefe da polícia secreta de Stalin. “Mostre-me o homem, e eu encontrarei o crime para você.” Quando alguém lhe perguntar: “O que você tem a esconder?”, você deve responder: “De Beria e sua laia, tudo, especialmente minha identidade (o homem).”

Ou, como Ayn Rand explicou certa vez: “O único poder que qualquer estado tem é o poder de reprimir os criminosos. Bem, quando não há criminosos suficientes, eles os criam. Declara-se que tantas coisas são crime que se torna impossível para os homens viverem sem infringir as leis.”

Os usuários de cripto que exigem privacidade são especialmente vulneráveis a suposições culturais e políticas que favorecem fortemente o controle estatal em vez da liberdade individual.

As fortes suposições contra a privacidade incluem:

  • A presunção da inocência pertence ao estado, e não aos indivíduos.
  • Um duplo padrão de moralidade é aplicado ao estado e aos indivíduos.
  • A privacidade é equiparada à ocultação.

 

A Presunção da Inocência. O termo legal “presunção da inocência” às vezes é expresso pela frase latina “ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat”, que significa que o ônus da prova é do acusador, e não do acusado. O acusado é presumido inocente até que se prove o contrário. A doutrina jurídica baseia-se na crença de que a maioria das pessoas não são criminosas, de modo que a criminalidade não pode ser presumida; ela deve ser demonstrada. A doutrina também reconhece um princípio fundamental da lógica: por ser impossível provar uma negativa, o ônus da prova recai sobre a pessoa que faz uma afirmação positiva. Alguém pode alegar que você é um ladrão. E mesmo evidências massivas de sua honestidade não dissiparão a acusação, porque você pode estar mentindo sobre um delito passado ou ocultando evidências. É por isso que o acusador é solicitado a especificar o que você roubou e a fornecer provas do crime.

A presunção da inocência é a pedra angular do devido processo legal e um muro de proteção contra processos arbitrários por parte do estado. É uma característica definidora de uma sociedade livre em oposição a uma totalitária. O renomado advogado britânico Sir John Clifford Mortimer – mais conhecido como o criador do amado advogado de defesa fictício Horace Rumpole – estava longe de ser o único a ver a presunção da inocência como “o fio de ouro” que une a justiça.

Mas o fio de ouro foi rompido.

Em nome da segurança, o público perdeu a presunção da inocência mesmo na ausência de acusações. Agentes de fronteira e aeroporto tiram impressões digitais, revistam, interrogam e ladram “Seus documentos!” para hordas enfileiradas. Indivíduos que não cumprem são automaticamente retirados da linha e processados ​​como criminosos. Os policiais exigem identidade e prendem aqueles que se recusam, independentemente de a prisão ser legal ou não. Afinal, supõe-se que os agentes estatais protejam a segurança e imponham a paz. Isso significa que aqueles que resistem são contra a segurança e a paz. Poucas pessoas perguntam de onde a imposição da lei obtém o direito de exigir obediência de pessoas que não estão causando danos. A presunção de inocência foi transferida dos indivíduos para os agentes estatais, o que inverte a intenção original do conceito legal de proteger os indivíduos do estado.

O princípio lógico de ser incapaz de provar uma negativa foi substituído pela falácia conhecida como “o argumento ou apelo à ignorância”. Aqui, “ignorância” refere-se à falta de evidência contrária – uma situação considerada suficiente para provar a verdade de uma afirmação. Em suma, uma acusação é verdadeira porque não se prova que seja falsa. A criminalidade de um indivíduo torna-se um dado porque não é refutada. Por que mais, pergunta o estado, ele se recusaria a cooperar com as autoridades?

É difícil exagerar a importância da mudança na presunção da inocência do indivíduo para os agentes estatais. Assim como a presunção da inocência é o fio de ouro da justiça, a presunção da culpa para os indivíduos é sua morte. Isso oblitera o devido processo e leva a sociedade diretamente para o totalitarismo. Esse é o significado político e a consequência da “inocente” pergunta: “O que você tem a esconder?”. A identidade emitida pelo estado é crucial para o processo. Depois que seu Nome Verdadeiro é conhecido, então todos os outros controles sociais se tornam possíveis.

Um duplo padrão de moralidade. Existem dois pesos e duas medidas em ação na sociedade – um para os indivíduos e outro para o estado. O que é imoral para um indivíduo, tornou-se moral para o estado. Se você pegar dinheiro de um vizinho sob a mira de uma arma, é um ato de roubo pelo qual você é preso com justiça. Se um agente do estado faz o mesmo, é um ato de tributação, pelo qual o malfeitor paga sua “justa parte” dos ganhos e pelo qual o agente recebe um salário e uma pensão. A moralidade moderna é agora definida por quem está realizando o ato, não pelo ato em si. O sigilo impenetrável do estado é prudente, enquanto a privacidade dos indivíduos é criminosa.

Nenhuma voz foi mais clara contra um duplo padrão de moralidade do que a do editor libertário Raymond Cyrus Hoiles, que criou a rede midiática Freedom Communications. Hoiles acreditava que o duplo padrão era mais destrutivo para a sociedade do que qualquer outro conceito, e seus ataques ferozes contra ele explodiam com frequência em seus jornais.

Em um editorial intitulado “O erro mais prejudicial que a maioria das pessoas honestas cometem” (17 de dezembro de 1956), publicado no Santa Ana Register, Hoiles explica o erro: “É a crença de que um grupo ou um estado seja capaz de fazer coisas que seriam prejudiciais e perversas se feitas por um indivíduo e produzir resultados que não sejam prejudiciais, injustos e perversos. É a crença de que um número de pessoas fazendo algo que é errado para um indivíduo pode resultar em algo correto e justo.” Hoiles mais frequentemente criticou o erro com referência à tributação. Novamente, se era errado um vizinho roubar seus bens, então era igualmente errado para um grupo de vizinhos ou seu representante designado (estado) realizar o mesmo ato.

A crítica de um duplo padrão não começou com Hoiles, é claro. Um panfleto de 1657 atribuído ao rebelde Coronel Titan argumenta: “O que pode ser mais absurdo na natureza e contrário a todo bom senso do que matar e chamar de Ladrão aquele que vem sozinho […] e obedecer e chamar de Lorde Protetor aquele que vem com regimentos e tropas? Se aquele que rouba e comanda dois ou três navios é chamado de pirata, por que aquele que rouba e comanda cinquenta é chamado de almirante?”. É esse o absurdo que o estado impõe quando faz algo que não seria tolerado caso fosse feito por um único indivíduo.

Mais uma vez, ninguém pergunta onde o estado adquire esses chamados direitos abrangentes. Como os únicos direitos que existem são os individuais, contra os quais ninguém pode legitimamente agredir, se o estado deseja reivindicar a propriedade legítima das informações privadas de terceiros deve apresentar prova de divulgação voluntária, transferência ou compartilhamento de título. Caso contrário, os chamados direitos nada mais são do que a afirmação da pura violência.

O que se aplica à tributação se aplica não menos à violação da privacidade. Se é errado um vizinho revistar seu corpo e o de seu filho sem consentimento, então é errado um agente do estado fazer isso em um aeroporto. Se é errado um vizinho grampear seu telefone, registrar suas transações financeiras e espiar pelas janelas, então é errado o estado fazê-lo. Os indivíduos de um grupo não renunciam à responsabilidade pessoal porque os atos são sempre cometidos por um indivíduo e são sempre uma questão de responsabilidade pessoal. O estupro coletivo não é menos que o estupro individual e os estupradores não são menos particularmente responsáveis porque foram o segundo ou o terceiro na fila.

No entanto, as pessoas aceitam um duplo padrão de moralidade, que isenta os agentes estatais de responsabilidades morais e legais. Se os agentes do estado, do presidente aos funcionários dos correios, estivessem sujeitos aos mesmos padrões de decência e responsabilidade legal que os indivíduos, o atual estado desmoronaria.

A privacidade é equiparada à ocultação. Redefinir “privacidade” como “ter algo vergonhoso a esconder” é um truque de mágica. Em seu excelente ensaio “I’ve Got Nothing to Hide’ and Other Misunderstandings of Privacy”, o professor Daniel J. Solove explica a mágica por trás da metamorfose da privacidade em ocultação: “O argumento de que não existe problema de privacidade se uma pessoa não tem nada a esconder é frequentemente feito. […] Quando o governo se envolve em vigilância, muitas pessoas acreditam que não há ameaça à privacidade, a menos que o governo descubra atividades ilegais, caso em que uma pessoa não tem justificativa legítima para alegar que isso deve permanecer privado”. Curiosamente, as pessoas que usam o argumento de não ter “nada a esconder” também penduram cortinas nas janelas e as fecham ao se despir. Eles não dão suas carteiras ou bolsas para estranhos vasculharem. Eles fecham a porta antes de fazer sexo e se opõem que suas fotos nuas sejam postadas online. O que eles estão escondendo? Como Solove comenta: a privacidade “não é sobre nada a esconder, é sobre as coisas que não são da conta de ninguém.”

O ataque à privacidade individual é tóxico para a sociedade como um todo.

Considere a liberdade de expressão. Lembro-me de estar em um restaurante quando um parente fez um discurso pós 11 de setembro sobre como a atmosfera nos EUA estava começando a parecer a da Cuba da qual ele havia fugido. Sua esposa tentou silenciá-lo, declarando em um sussurro inflexível: “Você não pode dizer essas coisas em público”. Ela estava nervosa enquanto olhava ao redor para ver quem poderia ter ouvido. A vigilância e os informantes tornam as pessoas relutantes em expressar opiniões que podem ser usadas contra elas de maneira legal ou política. Propriedades podem ser apreendidas, famílias destruídas e pessoas presas. Por que alguém falaria o que pensa se como resultado seus filhos podem perder o pai deles?

Até recentemente, muitas incursões contra a privacidade não ocorriam apenas por serem difíceis de executar. Então a tecnologia chegou. A vigilância agora é muito mais eficiente, e requer menos esforço. Mesmo burocracias notoriamente incompetentes são capazes de vigiar como nunca. Muitas pessoas estão com medo ou complacentes em relação à vigilância. Alguns simplesmente não acreditam mais na possibilidade de privacidade. O estado se beneficia imensamente da Grande Mentira de que a privacidade agora é impossível devido à onipotência e onisciência do estado. Isso é besteira. Em primeiro lugar, a tecnologia quase sempre empodera o indivíduo tanto ou mais do que o estado. Em segundo lugar, há um mundo de diferença entre o mais difícil e o impossível. A privacidade pode ser mais difícil do que antes ou, talvez, seus requisitos tenham apenas mudado e sejam necessárias proteções diferentes do que as de antes. Talvez a privacidade exija mais inovação e trabalho.

 

O valor da privacidade para a sociedade

 

Uma sociedade saudável requer privacidade. Quando um estado monitora a comunicação geral, as pessoas não interagem livremente. Isto é especialmente verdadeiro para dissidentes, os pacificamente aberrantes, escritores, delatores, usuários de drogas, críticos do estado, céticos, advogados de defesa, artistas … Quem é diferente no estilo de vida ou na opinião sente o calafrio de ser observado por autoridades que acenam com armas e celas de prisão. A sombria sociedade cinzenta da União Soviética e de outros estados comunistas fornecem uma lição de moral sobre como o medo esmaga a criatividade e a discussão. A vigilância despoja a sociedade de cor e vibração porque drena a vida dos indivíduos, e os indivíduos são, coletivamente, a sociedade.

Também impede que as pessoas se levantem contra a injustiça. A defesa da privacidade é uma defesa dos direitos humanos. Ainda assim, a privacidade financeira pode não ser a questão com a qual entrar na discussão desse vínculo, porque o dinheiro desperta cinismo imediato. Mas o vínculo deve ser estabelecido.

Considere a liberdade de religião e o devido processo legal. Uma insurreição do século XVI definiu a evolução desses dois, bem como sua conexão com a privacidade. A revolta girava em torno do direito de uma pessoa manter suas crenças religiosas privadas para que não pudessem ser usadas contra ela em um tribunal. Uma versão atual desse direito é chamada de “clamar a quinta” – invocando o devido processo legal contra a autoincriminação. É chamado de “clamar a quinta” porque a Quinta Emenda da Declaração de Direitos dos EUA estabelece: “Nenhuma pessoa será obrigada em qualquer caso criminal a ser testemunha contra si mesma”. Embora este pilar do devido processo seja frequentemente retratado como um recurso para o culpado, o grande beneficiário é o homem inocente na rua, que é protegido contra o exercício do poder arbitrário, quer ele perceba ou não.

A insurreição do século XVI: Henrique VIII negou a autoridade papal e estabeleceu a Igreja da Inglaterra, que reivindicou nova autoridade sobre as almas das pessoas. Os protestantes, chamados dissidentes, eram frequentemente julgados por heresia com tortura, geralmente acompanhando o julgamento. No final da década de 1530, o protestante John Lambert foi queimado vivo por heresia. Durante seu julgamento, Lambert se tornou o primeiro inglês conhecido a proclamar que era ilegal sob Deus e a lei comum obrigar um homem a se acusar. Ele apelou para a privacidade da consciência.

Em 1563, o dissidente John Foxe publicou o imensamente influente Book of Martyrs, um livro de história e martirológio protestante, que foi chamado de “cartilha libertária” sobre direitos processuais. Ele defende o direito de permanecer em silêncio para manter as informações pessoais privadas. Notoriamente, o leveller e libertário John Lilburne empregou os procedimentos de Foxe em 1637, quando foi levado ao Tribunal da “Star Chamber” (Câmara Estrela) por distribuir livros puritanos (o termo “Star Chamber” tornou-se sinônimo de tribunais elitistas e abusivos que se reúnem em segredo). Recusando-se a fazer o juramento costumeiro, Lilburne negou-se a responder perguntas que testemunhassem contra si mesmo. Ele foi multado, chicoteado, humilhado e condenado à prisão até que ele obedecesse. Enquanto estava lá, ele escreveu um relato de seu tratamento brutal, intitulado The Work of the Beast. Alguns anos depois, a tão odiada Star Chamber foi abolida e o direito de permanecer em silêncio – o direito à privacidade – foi estabelecido.

O direito contra a autoincriminação – o direito à privacidade das informações pessoais – está no cerne do devido processo legal. Está historicamente ancorado na busca pela liberdade religiosa, mas não se aplica menos a outras liberdades, inclusive às econômicas. A demanda por privacidade não apenas protegeu os indivíduos, mas também impulsionou as sociedades em direção à liberdade.

É apenas um pequeno exagero dizer que a Revolução Americana poderia não ter ocorrido se os colonos não tivessem exigido o direito à privacidade pessoal e de propriedade. A privacidade é um princípio e uma virtude revolucionária que levou os colonos americanos a fechar a porta na cara das autoridades britânicas, literal e figurativamente. A Terceira Emenda da Constituição dos EUA, por exemplo, proíbe a prática então generalizada de alistar soldados à força em residências particulares, mesmo em tempos de paz. A Emenda soa antiquada aos ouvidos modernos, mas a violação foi importante o suficiente para que os revolucionários a colocassem em terceiro lugar na lista de liberdades declaradas pela Declaração de Direitos. A Terceira Emenda afirma o direito à privacidade contra a intrusão do estado no mais pessoal de todos os reinos: o lar. Por mais ultrapassada que essa emenda possa parecer, não é necessário um grande salto para aplicar seu princípio ao atual ataque contra todas as outras formas de privacidade.

A Quarta Emenda também afirma a privacidade. Começa defendendo “[o] direito do povo à segurança de suas pessoas, casas, papéis e pertences contra buscas e apreensões irrazoáveis”. Em termos de privacidade, a palavra importante é “papéis”, porque pode ser extrapolada para se aplicar a e-mails e outros dados de computador, incluindo identidades reais.

A Quinta Emenda defende a privacidade ao decretar o direito de um indivíduo de não prestar “testemunha contra si mesmo” em casos criminais.

No linguajar do século XVIII, quando o estado vigia computadores e contas de cripto, ele está realizando uma apreensão de “papéis”. No entanto, as regras de provas físicas nem sempre se aplicam de forma clara às provas digitais, e as decisões inconsistentes dos tribunais sobre privacidade das criptos causam confusão. A compreensão da crescente confusão legal sobre privacidade pode estar na palavra da Quarta Emenda – “papéis”. A Emenda afirma que tanto “papéis quanto pertences [estão protegidos] contra buscas e apreensões irrazoáveis”. Mas o direito consuetudinário, no qual se baseia a jurisprudência ocidental, tende a conceder maior proteção aos “papéis” do que aos “pertences”, talvez porque os documentos sejam vistos como uma violação da pessoa e não da propriedade.

O professor de direito Donald A. Dripps abre seu ensaio pioneiro “‘Dearest Property’: Digital Evidence and the History of Private ‘Papers’ as Special Objects of Search and Apprehension” com duas perguntas. “Por que a Quarta Emenda se refere distintamente a ‘papéis’ antes de ‘pertences’? Por que devemos nos importar?” Dripps pede para “fundar regras especiais da Quarta Emenda para evidências digitais” dentro da lei estatal para restringir “o volume de informações inocentes e íntimas que devem ser expostas [ou exigidas] antes que o material criminal seja descoberto”. Mais uma vez, a Revolução Americana fornece uma visão.

Na década de 1760, os mandados britânicos para documentos começaram a ser emitidos contra autores e editores coloniais suspeitos de sedição. Entick V. Carrington (1765) é provavelmente o caso jurídico mais influente da época. Os fatos básicos do caso: John Entick publicou um jornal que se opunha à Coroa. Em 1762, oficiais invadiram a casa de Entick e roubaram centenas de papéis em busca de evidências de traição. Entick processou. Entick ganhou. O juiz presidente, Lorde Camden, ofereceu um famoso ditado: “Se for lei, será encontrado em nossos livros. Se não for encontrado aqui, não é lei”. O suposto direito do estado de apreender papéis não estava nos estatutos, portanto, não era lei.

A análise subsequente do caso Entick descobriu que quatro aspectos do ataque do estado eram legalmente desagradáveis; todos eles se aplicam à atual vigilância e apreensão de informações financeiras. O mandado foi indiscriminado. A apreensão expropriou os papéis, negando seu uso ao autor. O mandado foi desregulado porque não havia supervisão neutra ou via de apelação. A apreensão foi inquisitorial porque deu ao estado informações sobre o funcionamento privado da mente de Entick. O advogado de Entick declarou: “Nenhuma potestade pode invadir legalmente a casa de um homem e investigá-la para buscar provas contra ele; isso seria pior do que a inquisição espanhola, pois saquear as gavetas e caixas secretas de um homem para obter provas contra ele é como torturar seu corpo para descobrir seus pensamentos secretos.” A apreensão de papéis era um ataque contra a pessoa, não contra a propriedade.

Qualquer juiz que posteriormente considerasse emitir um mandado de busca de documentos tinha que considerar a decisão de Lorde Camden: de que uma suposta ofensa precisava estar nos livros de estatuto para que existisse na lei. Além disso, mandados sobre documentos cada vez mais entravam em conflito com as constituições estaduais.

A guerra muda as leis, especialmente as leis que protegem os direitos individuais. Dripps continua: “A América se recusou a modificar a proibição da lei comum por estatuto até a Guerra Civil”. O imposto de consumo era a principal fonte de financiamento do governo federal para a guerra, mas a evasão fiscal era desenfreada. Em resposta, um estatuto único foi aprovado. “[Este] ato de 1863 foi o primeiro ato neste país […] ou na Inglaterra, até onde pudemos apurar, que autorizou a busca e apreensão de documentos particulares de um homem, ou a produção compulsória deles, para usá-los como prova contra ele em um processo criminal, ou em um processo para executar o confisco de seus bens”. A apreensão de papéis estava agora nos estatutos.

A questão dos papéis versus pertences ziguezagueou juridicamente após a Guerra Civil. Indiscutivelmente, a mudança mais importante ocorreu em 1886, quando o Boyd v. United States foi decidido pela Suprema Corte dos EUA. “A história do caso Boyd”, escreve Dripps, “começa corretamente com um estatuto que autoriza os funcionários da alfândega a apreender os livros e papéis de importadores suspeitos de evasão de impostos”. A Suprema Corte decidiu a favor de Boyd, dizendo:

“Os princípios estabelecidos neste parecer afetam a própria essência da liberdade e da segurança constitucionais. Aplicam-se a todas as invasões por parte do estado e seus funcionários à santidade da casa de um homem e das privacidades da vida. Não é o arrombamento de suas portas e o remexer de suas gavetas que constitui a essência da ofensa, mas sim a invasão de seu direito irrevogável de segurança pessoal, liberdade pessoal e propriedade. É a invasão desse direito sagrado que fundamenta e constitui a essência do julgamento de Lord Camden.”

A decisão de Boyd restabeleceu maior proteção constitucional aos papéis do que aos pertences, e incide diretamente sobre os papéis digitais. A proteção nunca foi absoluta, no entanto, e foi severamente corrompida. Dripps explica: “Durante o último quarto do século XX, a Suprema Corte começou efetivamente a equiparar ‘papéis’ e ‘pertences’. Outra linha de casos modernos estabeleceu regras de ‘linhas-claras’, que deram o mesmo tratamento constitucional a todos os ‘pertences’”. Os papéis não apenas perderam seu status especial sob o direito comum e constitucional, mas também chegaram mais perto de se tornarem legalmente intercambiáveis ​​com todos os outros pertences. Isso oferecia uma proteção muito mais fraca. No entanto, o precedente de Boyd prevaleceu por quase um século e ainda não envelheceu.

A importância dos papéis está intrinsecamente ligada ao valor da privacidade para os indivíduos. Quando o estado rouba dados, não viola “propriedades” no sentido legal da palavra; ele viola a pessoa.

A privacidade faz parte de uma vida saudável, criativa e autorreflexiva. Desde a infância mantenho um diário no qual coloco esperanças, confusões, decepções e desejos. Quando leio páginas do passado, me conecto visceralmente com quem eu era aos dez anos e entendo melhor a pessoa que sou hoje. Esses diários são privados, não porque eu tenha vergonha deles, mas porque são pessoais. Em seu romance distópico 1984, George Orwell enfatiza a importância dos diários:

“A única coisa que ele estava prestes a fazer era abrir um diário. Isso não era ilegal (nada era ilegal, já que não havia mais leis), mas se detectado era razoavelmente certo que seria punido com a morte.”

O protagonista de 1984 descobre seu individualismo. Nesta jornada, o diário representa a liberdade de expressão e consciência que são essenciais para um senso de identidade – tão essencial que o estado matará por esse ato de privacidade.

Toda violação de privacidade corrói o espírito humano. Uma palavra não é dita por medo de ser ouvida; um pensamento não se forma por medo de se tornar uma palavra; um sentimento nunca é expresso e, talvez com o tempo, nem mesmo sentido. Então, um dia, o silêncio exterior torna-se interior através do hábito agora automático da autocensura. As pessoas não questionam mais. Talvez nem percebam mais que não questionam mais. Eles desenvolveram o hábito de não ser um indivíduo e, em vez disso, tornaram-se parte de uma vontade coletiva.

Todo mundo tem áreas de privacidade para proteger. Alguns usam medalhões com fotos de parentes mortos; outros abrigam um amor proibido; alguns trancam a porta para deleitar-se com um banho quente sem serem incomodados, ou escondem uma preferência sexual incomum. Todo ser humano tem o direito de traçar linhas que não prejudicam ninguém, linhas que ninguém mais deveria cruzar sem ser convidado. Bata a porta na cara de quem disser o contrário!

O foco das criptomoedas na privacidade é mais do que o desejo de reter riqueza, como geralmente é acusado. É um desejo de manter a individualidade, o espírito humano e a liberdade.

Wendy McElroy
Wendy McElroy
Wendy McElroy é escritora, conferencista, articulista freelancer, e membro sênior do Laissez Faire Club.
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