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31. A demanda por moeda e a estrutura temporal da produção

Jörg Guido Hülsmann

[Jörg Guido Hülsmann (jgh@guidohulsmann.com) é Professor de Economia na Universidade de Angers, França; um membro sênior do Ludwig von Mises Institute; e o autor de Mises: The Last Knight of Liberalism (2007) e The Ethics of Money Production (2008). Ele gostaria de agradecer a Nikolay Gertchev pelos comentários sobre uma versão anterior do presente artigo]

 

Hans-Hermann Hoppe é famoso por seus estudos inovadores sobre a epistemologia das ciências sociais, sobre a ética do capitalismo e sobre a democracia. Mas ele também fez contribuições originais e importantes em vários outros campos, como a economia monetária.[1] Moeda e serviços bancários eram, na verdade, nosso interesse comum de pesquisa há muitos anos, quando tive contato com ele pela primeira vez. É, portanto, apropriado oferecer um ensaio sobre este tema ao meu querido amigo Hans, um grande mentor e uma magnífica fonte de inspiração.

I. Introdução

Os economistas clássicos rejeitaram a noção de que a oferta e a demanda por moeda tinham qualquer impacto sistemático sobre a riqueza agregada. De acordo com Adam Smith, os verdadeiros fatores determinantes do crescimento econômico eram a divisão do trabalho e a acumulação de capital – fatores reais, não monetários. Os economistas austríacos sempre estimaram e se apegaram a esses insights centrais, embora os tenham qualificado e contextualizado em vários aspectos. Notavelmente, Menger e Böhm-Bawerk introduziram a dimensão do tempo na teoria do capital, mostrando, entre outras coisas, que a teoria clássica do fundo de salários é imprecisa em aspectos importantes.[2] Mises, por sua vez, enfatizou que a moeda não é neutra. Embora a oferta e a demanda de moeda não tenham impacto sistemático sobre o crescimento agregado, essas forças afetam, sim, a distribuição e a alocação de recursos. Elas moldam o tipo e as quantidades relativas dos bens produzidos. Em suma, elas determinam a estrutura, mas não o nível de produção.[3]

O objetivo do presente artigo é analisar o impacto da demanda por moeda sobre a taxa de juros pura e, portanto, sobre a estrutura temporal da produção. A teoria monetária austríaca convencional sustenta que, embora a oferta de moeda tenha um impacto sistemático sobre a taxa de juros, a demanda por moeda não tem. Esta última é, por assim dizer, “temporalmente neutra “. Iremos criticar esta afirmação e proceder da seguinte forma: após repassar alguns conceitos básicos (seção II), iremos reafirmar brevemente a tradicional análise austríaca da dimensão temporal da relação monetária (seção III), e então oferecer uma crítica, enfatizando que a demanda por moeda não é neutra em relação ao tempo no caso da moeda natural, ao passo que o é no caso da moeda fiduciária (seção IV). Finalmente, discutiremos algumas implicações de nossas descobertas (seção V).

II. A demanda por moeda

Definição

A demanda por moeda pode ser definida como a demanda por pagamentos monetários (fluxo) ou como a demanda por saldos de caixa (estoque). No que diz respeito à determinação do nível de preços, ambas as definições levam ao mesmo resultado.[4] Trabalharemos com a segunda definição (a demanda de moeda diz respeito aos saldos de caixa) porque destaca o fato crucial de que a moeda presta seus serviços não apenas no momento em que é usada para gastar, mas também durante todo o período em que está sendo mantida ou “acumulada.” A moeda é a mercadoria mais comerciável. Assim, os saldos de caixa, mesmo quando não estão sendo gastos, fornecem serviços de liquidez a seus proprietários.

Os saldos de caixa são demandados pelos serviços de liquidez que prestam. Eles são demandados por seu poder de compra. A única exceção é a demanda por moeda por parte dos colecionadores, meramente nominal. Estes últimos não estão interessados ​​no poder de compra das notas e moedas que colecionam. Eles estão interessados ​​apenas nas notas e moedas em si – é por isso que os chamamos de colecionadores. Mas os verdadeiros usuários de moeda não demandam meros saldos de caixa nominais, e sim saldos de caixa reais. Eles demandam um certo poder de compra.[5]

A demanda por moeda e o nível de preços

A análise padrão da demanda e da oferta mostra que qualquer aumento da demanda acarreta um aumento do preço do bem em questão. Esse aumento de preço não é contingente (acidental), mas sistemático (necessário), que é o que queremos dizer quando afirmamos que o aumento da demanda causa o aumento do preço. Agora, no caso da moeda, seu “preço” pode ser definido como o conjunto total de bens e serviços que podem ser trocados por uma unidade de moeda.[6] Em outras palavras, o preço da moeda é o poder de compra de uma unidade monetária. Se a demanda por moeda aumenta, portanto, o poder de compra da moeda tende a aumentar além do nível que teria atingido de outra forma, o que significa que o nível geral dos preços em dinheiro tenderá a diminuir. Inversamente, quando a demanda por moeda diminui, o poder de compra da moeda tende a cair abaixo do nível que teria atingido de outra forma, ou, o que dá na mesma, o nível geral dos preços em dinheiro tenderá a aumentar.

A demanda por moeda e a taxa de juros pura

A questão agora é se existe uma relação sistemática entre a demanda por moeda, por um lado, e a taxa de juros pura (pure rate of interest – PRI) por outro. Esta última pode ser definida como o puro retorno sobre o investimento tal como existiria no equilíbrio intertemporal geral ou, de forma equivalente, como a taxa de câmbio pura entre os bens presentes (moeda e bens de consumo) e os bens futuros (bens de produção e títulos financeiros).[7] Segue-se que a demanda por moeda poderia afetar a PRI apenas sob uma condição, a saber, se ela tivesse um impacto sistematicamente diferente sobre os bens presentes e sobre os bens futuros. Por exemplo, se os aumentos na demanda por moeda tendessem a reduzir as receitas de vendas mais do que as despesas de custo, então haveria uma relação negativa entre a demanda por moeda e as taxas de juros (como mantido na análise keynesiana padrão).

III. A dimensão temporal da relação moeda na teoria convencional

A dimensão temporal da “relação monetária” – da demanda e oferta de moeda – foi negligenciada na análise econômica contemporânea. Apenas os economistas austríacos a consideraram digna de qualquer consideração sistemática. A teoria monetária austríaca convencional sustenta que, embora a oferta de moeda tenha um impacto sistemático sobre a taxa de juros, a demanda por moeda não tem.

A dimensão temporal da oferta monetária

Mises e a literatura austríaca depois dele se concentraram no lado da oferta. Mises analisou em particular o impacto dos aumentos da oferta de moeda na estrutura temporal da produção, distinguindo entre efeitos sistemáticos e efeitos não sistemáticos (acidentais).

Por um lado, aumentos da oferta de moeda provocam sistematicamente reduções artificiais da taxa de juros – “artificiais” porque não resultam de uma menor preferência temporal dos participantes do mercado, mas de aumentos (imprevistos) da oferta de moeda. Tais reduções artificiais da taxa de juros acarretam má alocação intertemporal de recursos e, portanto, ciclos econômicos.[8]

Por outro lado, os aumentos da oferta monetária também podem afetar a taxa de juros sem acarretar erros de alocação, ou seja, na medida em que modificam a distribuição da renda e da riqueza. O aumento da oferta de moeda beneficia os primeiros usuários do novo dinheiro às custas dos usuários posteriores. Assim, se os primeiros usuários têm uma preferência temporal menor do que os posteriores, então a preferência temporal média ou social diminuirá, acarretando uma redução da taxa de juros. Da mesma forma, se os primeiros usuários do novo dinheiro tiverem uma preferência temporal maior do que os posteriores, a preferência temporal média aumentará, provocando assim uma taxa de juros mais alta.

No entanto, esses efeitos de distribuição não são sistemáticos. Os primeiros usuários do novo dinheiro não têm necessariamente uma preferência temporal inferior ou superior à dos usuários posteriores. O aumento da oferta de moeda pode, portanto, resultar em uma taxa de juros mais baixa; mas também pode resultar em uma taxa de juros mais alta ou não afetar a taxa de juros de forma alguma.[9]

Concepções análogas prevalecem no caso de mudanças na demanda por moeda.

A dimensão temporal da demanda por moeda

Mises lidou com a dimensão temporal da demanda por moeda apenas incidentalmente. Ainda assim, pode-se argumentar claramente que, aos seus olhos, as mudanças na demanda por moeda não têm um impacto sistemático na estrutura temporal da produção. Um aumento da demanda por moeda (entesouramento de moeda) apenas acarreta uma tendência à queda de preços para todos os bens, mas este evento “não requer um ajuste das atividades de produção” – ele “apenas altera os itens de moeda a serem usados ​​no cálculo monetário.”[10] Mudanças na demanda por moeda podem afetar a taxa de juros apenas na medida em que têm impacto na distribuição de renda e riqueza. Mas, novamente, esses efeitos de distribuição podem funcionar de uma forma ou de outra – seu impacto “depende dos dados específicos de cada caso.”[11]

Rothbard analisa essa questão de forma muito mais detalhada, e chega à mesma conclusão. Ele afirma que um “homem pode alocar seu dinheiro para consumo, investimento ou adição ao seu saldo de caixa” e segue a mostrar que, à luz dessa distinção, a demanda por moeda é temporalmente neutra. Mudanças na demanda por dinheiro não afetam sistematicamente a preferência temporal e, portanto, não determinam a PRI. Citemo-lo aqui detalhadamente:

    Suas preferências temporais governam a proporção que um indivíduo dedica aos bens presentes e futuros, ou seja, ao consumo e ao investimento. Agora, suponha que a tabela de demanda por moeda de um homem aumente e ele, portanto, decida alocar uma proporção de sua renda em moeda para aumentar seu saldo de caixa. Não há razão para supor que esse aumento afete a proporção consumo/investimento. Poderia, mas, se assim fosse, significaria uma mudança em sua tabela de preferência temporal, bem como em sua demanda por moeda.

Se a demanda por moeda aumenta, não há razão para que uma mudança na demanda por moeda afete a taxa de juros nem um pouco. Não há necessidade de um aumento na demanda por moeda para aumentar a taxa de juros, ou um declínio para diminuí-la – não mais do que o contrário. Na verdade, não há conexão causal entre os dois; um é determinado pelas valorações de moeda e o outro por valorações de preferência temporal.

… Uma maior demanda por moeda, então, tende a baixar os preços em geral, sem alterar a preferência temporal ou a taxa de juros pura. Portanto, suponha que a renda social total seja 100, com 70 alocados para o investimento e 30 para o consumo. A demanda por moeda aumenta, de modo que as pessoas decidem acumular um total de 20. As despesas agora serão 80 em vez de 100, sendo 20 adicionados aos saldos de caixa. A receita no próximo período será de apenas 80, uma vez que as despesas em um período resultam em receita idêntica a ser destinada ao próximo período. Se as preferências temporais permanecerem as mesmas, então a proporção entre investimento e consumo na sociedade permanecerá aproximadamente a mesma, ou seja, 56 investidos e 24 consumidos. Os preços, os valores monetários nominais e as rendas caem ao longo do processo, e ficamos com a mesma estrutura de capital, a mesma renda real, a mesma taxa de juros, etc. As únicas coisas que mudaram foram os preços nominais, que caíram, e a proporção dos saldos de caixa totais para a receita de moeda, que aumentou.[12]

Ele conclui:

    Dessa forma, o único resultado certo de uma mudança na tabela da demanda por moeda é precisamente uma mudança, na mesma direção, da proporção dos saldos de caixa total para a renda monetária total, e no valor real dos saldos de caixa. Dado o estoque de moeda, uma corrida por reservas líquidas simplesmente reduzirá as receitas monetárias até que o aumento desejado nos saldos de caixa reais seja alcançado.[13]

No entanto, o escrupuloso Rothbard não deixou de observar que essa conclusão se apoiava em fundamentos um tanto duvidosos. Em uma nota final, ele escreveu:

    Estritamente, a condição ceteris paribus tenderá a ser violada. Uma maior demanda por moeda tende a diminuir os preços em moeda e, portanto, diminuir os custos monetários para a mineração de ouro. Isso estimulará a produção de mineração de ouro até que o retorno dos juros sobre a mineração seja novamente o mesmo que em outras indústrias. Assim, o aumento da demanda por moeda também exigirá moeda nova para atender à demanda.[14]

Essa observação será o ponto de partida para nossa discussão a seguir.

IV. A dimensão temporal da demanda por moeda reconsiderada

A demanda por moeda mercadoria não é temporalmente neutra

Rothbard está correto ao apontar que as mudanças na demanda por moeda não têm quaisquer implicações sistemáticas diretas para os gastos relativos com bens de consumo e correspondentes bens de produção. Mas, como ele admite, elas têm implicações para o retorno sobre o investimento (ROI) da produção de moeda, pelo menos no caso de moedas mercadorias como prata ou ouro. Uma maior demanda por prata aumentará o ROI da produção de prata, porque os fatores de produção necessários para produzir uma determinada quantidade de prata agora tendem a se tornar disponíveis a preços mais baixos em termos da própria prata. Isso, por sua vez, modificará os gastos com todos os outros bens. Especificamente, o capital será movido de outras indústrias para a indústria da prata, fazendo com que o ROI da produção de prata caia e o ROI de todas as outras indústrias aumente, até que o ROI de todas as linhas de negócios seja igual. Assim, haverá uma nova PRI maior do que a PRI que prevalecia antes de o aumento da demanda por moeda ser precificado no mercado.

Em outras palavras, existe uma relação causal positiva entre a demanda por moeda-mercadoria e a PRI. A demanda por moeda mercadoria não é temporalmente neutra. Aumentos da demanda por moeda mercadoria tendem a aumentar a PRI. As diminuições da demanda por moeda mercadoria tendem a diminuí-la.[15]

Essa relação se mantém não apenas durante um período de ajuste, durante o qual mais prata está sendo produzida de acordo com a maior demanda. Também se mantém no equilíbrio final, porque a perda de prata pelo desgaste físico aumenta junto com o maior suprimento de prata. A produção de prata aumentará permanentemente e, portanto, a PRI também será permanentemente maior do que teria sido de outra forma.

A estrutura temporal da produção tenderá a ser modificada. Uma maior demanda por moeda cria incentivos para encurtar a estrutura e torná-la mais espessa do que seria de outra forma. E uma menor demanda por moeda tenderá a alongar a estrutura e torná-la mais delgada do que antes. Em suma, a demanda por moeda afeta a estrutura temporal da produção.

Os mesmos efeitos acontecem no caso de aumentos temporários da demanda por moeda, como é frequentemente o caso no início e no meio da fase de queda deflacionária do ciclo econômico, quando os participantes do mercado procuram vender seus ativos não monetários por preços descontados (portanto, o aumento da PRI), mas com um desconto menor do que o esperado para o futuro próximo. Em tais casos, o aumento da demanda por moeda dura apenas até que a estrutura de preços seja ajustada ao seu novo nível de equilíbrio final (mais baixo).[16]

A demanda por moeda fiduciária tende temporalmente neutra

As coisas são muito diferentes no caso da moeda fiduciária. A característica marcante da moeda fiduciária é que sua demanda é pelo menos parcialmente determinada por violações de direitos de propriedade, em particular por leis de monopólio ou de curso legal. Como consequência, o produtor da moeda fiduciária pode escolher para seu produto um meio físico barato, como papel ou dados eletrônicos.

Papel-moeda e moeda eletrônica são moeda fiduciária por excelência, porque

  1. seu custo marginal de produção é próximo de zero e
  2. eles precisam ser impostos ao mercado para que tenham alguma circulação, ao passo que outros tipos de moeda, como os metais preciosos, não precisam de apoio fiduciário para serem usados.

Normalmente, portanto, a moeda fiduciária está sendo produzida monopolisticamente, e o produtor desfruta de total liberdade para maximizar seus lucros ao longo do tempo, de acordo com suas escalas de valor intertemporais.[17]

Aqui, o mecanismo causal que, no caso da moeda mercadoria, vincula a demanda por moeda à PRI desaparece. Uma maior demanda por moeda quase não terá impacto sobre os custos da moeda fiduciária e, portanto, sobre a lucratividade de sua produção. Portanto, não irá atrair recursos adicionais e, consequentemente, aumentar o ROI em outras indústrias. A PRI de longo prazo não é modificada – a demanda por moeda fiduciária tende a ser temporalmente neutra.

Além disso, no caso de aumentos temporários da demanda por moeda, sua tendência de redução do nível de preços pode ser compensada, sem limitações técnicas ou comerciais, por um aumento correspondente da oferta de moeda, evitando assim a necessidade de vender ativos a preços descontados. Como é sabido, não se trata de uma mera possibilidade teórica. Os atuais produtores de moeda fiduciária – os bancos centrais – seguem uma política de estabilização do nível de preços e lutam vigorosamente contra qualquer forma de deflação de preços. Assim, podemos dizer que, sob os atuais regimes de moeda fiduciária, quaisquer aumentos na demanda por moeda estão, na verdade, causando aumentos correspondentes na oferta de moeda. É verdade que tais aumentos da oferta monetária criarão uma tendência de aumento do nível de preços, acarretando, assim, mais cedo ou mais tarde, um prêmio de preço dentro da taxa de juros bruta. Mas o ponto crucial é que a PRI não precisa aumentar. Segue-se que, mesmo no caso de aumentos temporários da demanda por moeda, a moeda fiduciária tende a ter consequências diferentes das da moeda mercadoria.

Distinção enganosa entre moeda e bens presentes

Assim, vemos que a posição austríaca tradicional, segundo a qual a demanda por moeda é neutra no tempo, só se aplica ao caso da moeda fiduciária. Não se aplica ao caso da moeda mercadoria. Por que os austríacos, e Mises e Rothbard em particular, ignoraram esse fato? A principal razão parece ser que eles definem a moeda sem referência às suas características físicas. Eles veem a moeda como uma classe particular de bens “incorpóreos” que, portanto, não está sujeita às leis que regem as relações temporais no mercado. Mudanças na demanda por moeda não afetam as tabelas de preferência temporal porque as últimas dizem respeito apenas a bens não monetários (“bens reais”), a saber, bens de consumo e bens de produção. Em contraste, a moeda é um bem em uma classe própria.

Mises segue o economista alemão Carl Knies ao classificar todos os bens econômicos em três categorias mutuamente exclusivas: bens de consumo, bens de produção e meios de troca.[18] A taxa de juros pura é a taxa de câmbio intertemporal entre os bens presentes (bens de consumo) e os bens futuros (bens de produção). A demanda por moeda não afeta essa taxa de câmbio de forma alguma. Como vimos, essa afirmação é correta no caso da moeda fiduciária. Aqui, os custos marginais de produção de papel-moeda são virtualmente zero e, portanto, os gastos de investimento na produção de moeda não dependem de forma alguma das mudanças de demanda. Segue-se que as mudanças na demanda de papel-moeda não têm nenhum impacto a priori na proporção entre consumo e investimento e, portanto, nas escalas de valor intertemporais e na taxa de juros. Mas, como também vimos, as coisas são diferentes no caso da moeda-mercadoria.

Surpreendentemente, esse fato também foi esquecido por Murray Rothbard. No capítulo 11 de Homem, economia, e estado, ele modifica a análise dos bens presentes e futuros declarada nos capítulos anteriores, para levar em conta o impacto do entesouramento de moeda.[19] Rothbard aqui abandona sua classificação anterior de todos os bens em exatamente duas classes (bens presentes e futuros). Como Knies e Mises, ele passa a defender a distinção de três níveis entre bens de consumo, bens de produção e saldos de caixa.

Claramente, pode-se argumentar que a moeda não é um bem de consumo nem de produção. No entanto, para a determinação da PRI, isso não vem ao caso. Aqui, a única distinção relevante é entre bens presentes e bens futuros. A moeda só poderia ser considerada temporalmente neutra se cair em uma terceira classe de bens que não seriam nem presentes nem futuros. No entanto, Rothbard não faz nenhuma demonstração com este objetivo, mas simplesmente afirma que a moeda cai em uma classe própria – uma afirmação que, além de tudo, contradiz sua própria ênfase anterior de que a moeda é “o bem presente par excellence“.[20]

Assim que se admite que a moeda é um bem presente, embora não seja um bem de consumo, o impacto da demanda por moeda sobre os gastos relativos entre bens presentes e futuros é óbvio. Relembremos o argumento de Rothbard, citado acima.

    Uma proporção maior de fundos acumulados pode ser retirada de três fontes alternativas: (a) de fundos que anteriormente iam para consumo, (b) de fundos que iam para investimento, e (c) de uma mistura de ambos que deixa inalterada a antiga proporção consumo-investimento.[21]

Se a moeda é um bem presente, então a condição (a) não implica nenhuma mudança nas escalas de valor intertemporais, mas simplesmente uma composição diferente dos bens presentes possuídos por alguém. Segue-se que o entesouramento (um aumento na demanda por moeda), neste caso, não afeta a PRI, enquanto em todos os outros casos – condições (b) e (c) implica um aumento da PRI.

V. Algumas implicações da dimensão temporal da demanda por moeda

A demanda por moeda mercadoria não é neutra em termos de tempo, mas positivamente relacionada à taxa de juros pura (PRI). Em contraste, a demanda por moeda fiduciária tende a ser neutra no tempo. Esses resultados de nossa análise parecem implicar que a moeda fiduciária, apesar de suas inúmeras deficiências conhecidas, traz vantagens bem definidas sobre a moeda mercadoria, particularmente ao facilitar o crescimento econômico.[22] Vamos, portanto, discutir brevemente algumas dessas implicações.

Em primeiro lugar, devemos salientar que nossa análise anterior do impacto comparativo da demanda por moeda sobre a PRI não fornece informações sobre seu impacto quantitativo. Considerando que a demanda de longo prazo por moeda representa apenas uma pequena fração da riqueza agregada, e que varia apenas marginalmente, é muito bem possível que o impacto quantitativo de longo prazo das mudanças na demanda por moeda na PRI seja, afinal, insignificante. Por outro lado, há poucas evidências empíricas sobre o comportamento dos poupadores sob um padrão de moeda-mercadoria puro. Se, e na medida em que, a poupança ocorrer de forma significativa na forma de entesouramento de moeda, o impacto quantitativo sobre a PRI poderá aumentar proporcionalmente.

É óbvio que essas mudanças induzidas por moeda na PRI podem ser muito úteis, especialmente se considerarmos as razões de uma mudança na demanda agregada por moeda. Pessoas atuantes normalmente têm uma maior demanda por moeda quando estão preocupadas com a deterioração iminente do ambiente político e econômico em geral. Por exemplo, elas podem esperar problemas nos mercados financeiros ou más decisões de política econômica, como aumento de impostos. O aumento da acumulação de moeda fornece uma proteção parcial contra tais eventos. Mais importante ainda, o aumento resultante da PRI cria incentivos para ajustar a estrutura de produção ao ambiente percebido como mais arriscado. Projetos de investimento mais indiretos (e, portanto, mais arriscados) tenderão a ser abandonados, enquanto projetos de investimento mais curtos serão incentivados. Isso ajuda a preservar o importante estoque de capital agregado. Inversamente, uma demanda reduzida por moeda, que normalmente reflete uma perspectiva mais positiva do ambiente econômico e político geral, irá induzir um alongamento da estrutura de produção em detrimento de projetos de investimento mais curtos (menos produtivos fisicamente).

No entanto, como vimos, esse mecanismo de proteção do estoque de capital só existe no caso da moeda-mercadoria. No caso da moeda fiduciária, não há incentivos semelhantes para ajustar a estrutura de produção, nem para mudá-la para o “modo de segurança” sob o impacto de um aumento da demanda por moeda, nem no sentido oposto quando a demanda por moeda diminui. Segue-se que os regimes de moeda fiduciária tendem a desperdiçar mais capital do que os regimes de moeda mercadoria. As taxas de crescimento e os padrões de vida, portanto, tenderiam a ser menores sob a moeda fiduciária do que com a moeda mercadoria.

Da mesma forma, devemos enfatizar novamente o papel benéfico das variações de curto prazo da PRI, decorrentes de aumentos da demanda por moeda-mercadoria, na aceleração do ajuste da estrutura de produção após uma fase de expansão, ou em reação a uma crise iminente resultante de guerra, intervencionismo governamental ou desastres naturais. Esses ajustes não ocorreriam tão rápida e automaticamente sob um regime de moeda fiduciária, como discutido acima. Conclui-se que, longe de ser vantajosa do ponto de vista macroeconômico, a tendência de compensar o impacto da demanda por moeda sobre a PRI é, na verdade, mais uma das grandes deficiências da moeda fiduciária.

Finalmente, como mostramos em uma contribuição recente, não há uma relação sistemática entre o volume agregado de poupança-investimento e a PRI.[23] Conclui-se que a demanda por moeda também não está relacionada ao nível agregado de poupança-investimento. Dadas as escalas de valores intertemporais individuais, segue-se por necessidade lógica que tanto a demanda quanto a oferta de bens presentes sejam exclusivamente determinadas por essas escalas de valor e que estas últimas sejam, portanto, a causa única da PRI. Uma maior demanda por moeda não apenas implica em um aumento na demanda por bens presentes no mercado de tempo, mas também em uma oferta reduzida. Portanto, a única consequência necessária de uma maior demanda por moeda é o aumento da PRI. Mas não há impacto sistemático sobre o volume do mercado (poupança agregada trocada por bens futuros agregados). Dependendo da elasticidade (contingente) da oferta e da demanda no mercado de tempo, o novo equilíbrio final pode envolver um volume um pouco maior de poupança agregada, mas também pode, e com igual probabilidade, envolver um volume um tanto reduzido de poupança agregada. Da mesma forma, uma redução da demanda por moeda tem apenas uma implicação necessária, a saber, uma redução da taxa de juros. No entanto, não tem impacto sistemático sobre a poupança agregada e, portanto, sobre o investimento agregado.

VI. Conclusão

Na presente contribuição, mostramos que a demanda por moeda mercadoria não é temporalmente neutra. Afeta a taxa de juros pura e, portanto, a estrutura temporal da produção. Em contraste, a demanda por moeda fiduciária tende a ser neutra em termos de tempo – em outras palavras, ela tende a não afetar a estrutura temporal da produção. Argumentamos que essa diferença básica reforça ainda mais o argumento tradicional austríaco a favor da moeda-mercadoria e contra a moeda fiduciária. De fato, a demanda por moeda-mercadoria é uma forma muito básica para o cidadão não sofisticado alinhar a estrutura da produção com sua avaliação do ambiente macroeconômico. A moeda fiduciária tira esse poder de suas mãos. A consequência é uma tendência maior ao desperdício de capital.

 

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Notas

[1] Ver em particular Hoppe, “Banking, Nation States and International Politics. A Sociological Reconstruction of the Present Monetary Order,” The Economics and Ethics of Private Property (Boston: Kluwer, 1993), cap. 3, pp. 61–92; idem, “How is Fiat Money possible? —or, The Devolution of Money and Credit,” Review of Austrian Economics 7, no. 2 (1994); idem com Jörg Guido Hülsmann e Walter Block, “Against Fiduciary Media,” Quarterly Journal of Austrian Economics 1, no. 1 (1998): pp. 1–50.

[2] Ver Carl Menger, Grundsätze der Volkswirtschaftslehre (Viena: Braumüller, 1871); Eugen von Böhm-Bawerk, Positive Theory of Capital (1959 [1921]); ver também W.S. Jevons, Theory of Political Economy (1871).

[3] Ver Ludwig von Mises, Theory of Money and Credit (Indianapolis: Liberty Fund, 1980 [1924]), cap. 19; idem, Human Action (Auburn, Ala .: Ludwig von Mises Institute, 1998), caps. 17–20. Nem é preciso dizer que a demanda e a oferta de moeda dizem respeito aos saldos de caixa; não se referem a empréstimos de curto prazo feitos no chamado “mercado monetário” (ver ibid., p. 400).

[4] Ver Rothbard, Man, Economy, and State (3ª ed., Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1993), p. 662. A própria moeda é definida como um meio de troca de uso generalizado; ver ibid., p. 165; ver também Menger, Grundsätze der Volkswirtschaftslehre, pp. 253f .; Mises, Human Action, pág. 395.

[5] Para uma discussão detalhada dos fatores que determinam a demanda por moeda, incluindo uma crítica completa da abordagem keynesiana, ver Rothbard, Man, Economy, and State, pp. 671-98. Ver também Philipp Bagus, “The Quality of Money” (Working paper, Universidad Rey Juan Carlos, 2008).

[6] Ver Rothbard, Man, Economy, and State, pp. 204f.

[7] Ver ibid., p. 299.

[8] Ver Mises, Human Action, cap. 20.

[9] Ver ibid., pp. 545–47.

[10] Ibidem, p. 519.

[11] Ibidem, p. 417.

[12] Rothbard, Man, Economy, and State, pp. 678f.

[13] Ibidem, p. 679. Da mesma forma, ele afirma, algumas páginas depois:

Uma proporção maior de fundos acumulados pode ser obtida de três fontes alternativas: (a) de fundos que anteriormente iam para consumo, (b) de fundos que iam para investimento, e (c) de uma mistura de ambos que deixa a antiga proporção consumo-investimento inalterada. A condição (a) causará uma queda na taxa de juros; a condição (b) um aumento na taxa de juros, e a condição (c) deixará a taxa de juros inalterada. Assim, o entesouramento pode refletir um aumento, uma queda ou nenhuma mudança na taxa de juros, dependendo de as preferências temporais aumentarem, caírem, ou permanecerem as mesmas concomitantemente. (Ibid., P. 690)

[14] Ibidem, p. 916, nota final 10.

[15] Pode-se levantar a questão de saber se aumentos da demanda por moeda, por acarretarem uma redução do nível de preços e, portanto, um correspondente efeito de riqueza para os proprietários de moeda, na verdade não reduziu a PRI. Alguns economistas austríacos, como Hoppe (Democracy — The God that Failed, p. 2), sustentam que o aumento da riqueza tende a diminuir as tabelas de preferência temporal. Parece resultar que um aumento da demanda por moeda tende a diminuir as tabelas de preferência temporal e, portanto, implica uma redução da PRI. No entanto, a conexão entre riqueza e tabelas de preferência temporal não se mantém a priori, mas é uma relação historicamente contingente, como Barnett e Block argumentaram em “The Relationship between Wealth or Income and Time Preference is Empirical, Not Apodictic: A Critique of Rothbard and Hoppe,” Review of Austrian Economics 19 (2006).

[16] Este impacto temporário da demanda por moeda na PRI foi enfatizado por Rothbard, ver Man, Economy, and State, pp. 692, 864f.

[17] Ver Hülsmann, The Ethics of Money Production (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 2008), cap. 1, seções 5 e 6; idem, Logik der Währungskonkurrenz (Essen: Management Akademie Verlag, 1996).

[18] Veja Mises, Theory of Money and Credit, pp. 96–102; Knies, Geld und Credit (2ª ed., Berlin: Weidmann, 1885), vol. 1, pp. 20ss. Mises argumentou (1) que a moeda nem sempre é “necessária” nos processos de produção. “Não há necessidade de moeda nem na casa isolada nem na comunidade socializada. Em nenhum lugar podemos descobrir um bem de primeira ordem do qual poderíamos dizer que o uso da moeda era uma condição necessária para sua produção” (p. 99 ) Além disso, ele sustentou (2) que a moeda não é útil de um ponto de vista agregado. Enquanto mudanças na oferta de bens de consumo ou bens de produção tornam a “humanidade” mais pobre ou mais rica, “o mesmo não pode ser dito da perda ou ganho de moeda” (p. 101).

Ambos os argumentos são fracos. Em Socialism (1922) e Human Action (1949), Mises enfatizou que apenas uma economia monetária permitia uma divisão de trabalho complexa e indireta. Claramente, portanto, a moeda é necessária para a maioria dos projetos de produção. Da mesma forma, a alegação de que o suprimento de moeda não tem implicações positivas ou negativas para o bem-estar da “humanidade”, mesmo se verdadeira, não tem qualquer fundamento científico, enquanto não formos capazes de comparar os julgamentos de valor subjetivos de diferentes indivíduos.

[19] Ver Rothbard, Man, Economy, and State, p. 678. Anteriormente, ele havia identificado o entesouramento como uma das fontes da “moeda que [os capitalistas] economizam e investem” – as outras duas fontes sendo a venda de recibos da produção atual, e a produção de moeda (ver ibid., p. 351). Essa classificação peticiona o princípio de os depósitos de moeda não serem, na verdade, uma das formas de se economizar e investir seu capital.

[20] Rothbard, Man, Economy, and State, p. 320. A definição de Rothbard de bens presentes enfatiza o ato de consumo (destruição). Seria mais apropriado definir um bem presente como aquele que não precisa de nenhuma transformação física adicional para prestar os serviços pelos quais é desejado. A moeda no saldo de caixa de uma pessoa não precisa mais de nenhuma transformação física para ser usada, mas não é destruída por meio desse uso.

[21] Ibidem, p. 690.

[22] Para uma análise das consequências econômicas, sociais e culturais do papel-moeda (respectivamente da moeda eletrônica), ver Hülsmann, The Ethics of Money Production, caps. 12 e 13.

[23] Ver Jörg Guido Hülsmann, “Time Preference and Investment Expenditure,” Procesos de Mercado 5, no. 2 (2008): 13–33.

Jörg Guido Hülsmann
Jörg Guido Hülsmann
Jörg Guido Hülsmann é membro sênior do Mises Institute e autor de Mises: The Last Knight of Liberalism e e The Ethics of Money Production. Ele leciona na França, na Université d'Angers.
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