Robert Higgs
[Robert Higgs (RHiggs2377@aol.com) é um pesquisador sênior em economia política do Independent Institute e editor do The Independent Review: A Journal of Political Economy.]
Nenhuma instituição da vida moderna é tão venerada quanto a democracia. Está mais perto do que qualquer outra coisa de ser o objeto supremo de adoração em uma religião global. Qualquer um que nega sua virtude e desejabilidade logo se torna um pária. Alguém pode ser perdoado se falar mal da maternidade ou da torta de maçã, mas não se falar mal da democracia, que é hoje o principal ícone da vida política e social em todo o mundo. Muitas pessoas são ateias, mas poucas são antidemocratas.
No entanto, a adoração desse arranjo político específico surgiu há relativamente pouco tempo, e em épocas anteriores os filósofos políticos eram mais propensos a condenar a democracia do que a elogiá-la. Aristóteles, cujas opiniões receberam grande peso por milênios, não tinha uma opinião elevada da democracia. Junto com muitas outras críticas a este tipo de governo, ele escreveu em seu Política:
1313b: 32-41: A forma final de democracia tem características de tirania: as mulheres dominam a casa para que possam denunciar seus maridos, os escravos não têm disciplina e os bajuladores – demagogos – são considerados honrados. O povo deseja ser um monarca.
1295b: 39-1296a5: É melhor para os cidadãos de uma cidade-estado possuírem uma quantidade moderada de riqueza, porque onde alguns têm muito e outros nada, o resultado é a democracia final ou oligarquia sem mistura. A tirania pode resultar de ambos os extremos. É muito menos provável que surja de sistemas moderados de governo.
1276a: 12-14: Algumas democracias, como as tiranias, baseiam-se na força e não são direcionadas para a vantagem comum.
1312b: 35-38: A democracia final, assim como as oligarquias final e não misturada, é realmente uma tirania dividida [entre uma multidão de pessoas].[1]
Os fundadores dos Estados Unidos da América tinham opiniões divergentes sobre a democracia. Quase todos eles pareciam temê-la mais do que respeitá-la. Eles reconheceram que concessões a uma participação bastante ampla na política poderiam ter de ser feitas para apaziguar as massas – que, afinal, tinham servido como bucha de canhão na recém-concluída guerra de secessão do Império Britânico – mas projetaram um sistema em que o voto seria restrito e limitado, de modo que as pessoas comuns seriam impedidas de dar vazão direta às suas paixões, tomando o controle do governo e usando-o para saquear os ricos. Os fundadores temiam visivelmente o “governo da turba” e o associavam a uma democracia sem entraves. Todos os novos estados independentes exigiam a posse de propriedade e outras qualificações para votar e, na prática, o direito a voto era limitado na maioria dos lugares a uma pequena minoria da população – um subconjunto dos homens brancos adultos. A Constituição dos Estados Unidos não contém a palavra democracia, embora estipule certos protocolos para a eleição de funcionários públicos; em vez disso, depende do federalismo e da separação de poderes para preservar a liberdade.
Embora a democracia tenha feito avanços ideológicos gigantescos no século XIX, alguns escritores tiveram a coragem de condená-la até mesmo em pleno século XX. Entre os mais astutos deles estava Joseph A. Schumpeter. Em Capitalismo, Socialismo e Democracia, ele postula como ponto de partida para análise a concepção clássica de democracia: “o método democrático é aquele arranjo institucional para chegar a decisões políticas que busca realizar o bem comum fazendo com que o próprio povo decida as questões por meio da eleição de indivíduos que devem se reunir a fim de cumprir sua vontade”.[2] Ele então passa a demolir a pretensão de que essa concepção faz sentido.
Schumpeter argumenta,
Se quisermos argumentar que a vontade dos cidadãos per se é um fator político que deve ser respeitado, ela deve primeiro existir. Ou seja, deve ser algo mais do que um punhado de impulsos vagos brincando negligentemente com slogans e impressões equivocadas.[3]
Schumpeter chama a atenção para “a ignorância e falta de julgamento do cidadão comum em matéria de política interna e externa” e acrescenta, antecipando o conceito de ignorância racional da teoria da escolha pública, que “sem a iniciativa que vem da responsabilidade imediata, a ignorância persistirá diante das massas de informações, por mais completas e corretas que sejam”.[4]
Além disso, “mesmo se não houvesse grupos políticos tentando influenciá-lo, o cidadão típico, em questões políticas, tenderia a ceder a preconceitos e impulsos extraracionais ou irracionais”. As coisas ficam ainda piores quando reconhecemos as “oportunidades para grupos com interesses próprios”, que “são capazes de moldar e, dentro de limites muito amplos, até de criar a vontade do povo”, deixando que os analistas políticos a ponderarem “uma vontade não genuína, mas fabricada” que é “o produto, e não a força motriz, do processo político.”[5]
Schumpeter admitiu que, no longo prazo, o público em geral pode vir a ter uma visão mais perceptiva do mundo e, com base nela, recompensar ou punir os detentores de cargos públicos com seus votos, mas esse eventual ajuste tem também uma falha fatal, porque a história “consiste em uma sucessão de situações de curto prazo que podem alterar o curso dos acontecimentos de forma definitiva:”[6]
Se todas as pessoas puderem, a curto prazo, ser “enganadas” de forma a apoiar algo que na verdade não querem, e se este não for um caso excepcional que poderíamos nos dar ao luxo de desconsiderar, então nenhuma quantidade de bom senso retrospectivo alterará o fato que na realidade eles não levantam nem decidem questões, mas as questões que moldam seu destino são normalmente levantadas e decididas para eles.[7]
Porque “os eleitorados normalmente não controlam seus líderes políticos de nenhuma forma, exceto recusando-se a reelegê-los ou às maiorias parlamentares que os apoiam”,[8] existe a possibilidade distinta – ou melhor, a grande probabilidade – de que os eleitores estejam sempre preocupados com um cavalo que já fugiu do estábulo e nunca mais será recuperado.
Essa visão desoladora do processo político sob a democracia representativa torna-se ainda mais desolada quando reconhecemos que os candidatos a cargos públicos geralmente falam em generalidades vagas e carregadas de emoção, ou simplesmente mentem sobre suas intenções. Depois de tomar posse, eles podem agir em total desconsideração de suas promessas de campanha, confiando que, ao se candidatarem à reeleição, poderão inventar uma desculpa plausível para sua infidelidade e quebra de confiança. Assim, os eleitores ficam permanentemente imersos em uma névoa de desinformação, manipulação emocional e mentira descarada. Não importa o que o candidato promete, os eleitores não têm meios de mantê-lo fiel a essas promessas ou punir seu mau comportamento, até que seja tarde demais para fazer diferença. Em muitos casos, infelizmente, as decisões dos detentores de cargos geram consequências irreversíveis – resultados que não podem ser desfeitos ex post.
Garet Garrett tinha uma visão semelhante da inutilidade da democracia como meio de tornar o governo responsável perante a “vontade do povo” (ou perante qualquer coisa que não seja os desejos dos próprios governantes). Escrevendo em meados do século, pouco após a morte de Schumpeter, em um ensaio intitulado “Ex América”, Garrett apresentou o seguinte cenário hipotético:
Suponha que uma imagem verdadeira do mundo presente tenha sido apresentada a eles em 1900, o futuro como uma bola de cristal, junto com a pergunta: “Você quer isso?” Ninguém pode imaginar que eles teriam dito sim – que eles poderiam ter sido tentados pelos confortos, os aparelhos, os automóveis e todas as satisfações fabulosas da existência em meados do século – a aceitar os tentáculos penetrantes do governo, o desvanecimento do indivíduo, a bomba atômica, uma vida de medo nauseante, o pesadelo da extinção. A resposta deles teria sido um não aterrorizado.[9]
Depois de definir o cenário, ele perguntou: “Então, como você explica o fato de que tudo o que aconteceu para mudar seu mundo do que era para o que é aconteceu com o consentimento deles?” Ao que ele acrescentou: “Mais precisamente, primeiro aconteceu e depois eles consentiram.”[10]
Garrett pôs-se então a listar e discutir brevemente uma série de eventos políticos cataclísmicos e decisivos na mudança de curso dos Estados Unidos, incluindo entrar na Primeira Guerra Mundial, lançar o New Deal, entrar na Segunda Guerra Mundial e ingressar nas Nações Unidas, observando que em cada caso, o povo não votou a ação do governo; no entanto, “em tudo isso o povo consentiu, não antes, mas depois”.[11]
Pode-se objetar neste ponto, perguntando: “Que diferença faz se as pessoas consentem antes ou depois, contanto que consintam?” Na verdade, Bruce Ackerman escreveu um livro inteiro para argumentar precisamente que as mudanças constitucionais mais profundas na história dos Estados Unidos ocorreram não quando o povo alterou formalmente a Constituição, mas quando o governo agiu fora de sua autoridade constitucional em uma crise e mais tarde recebeu validação eleitoral e judicial de suas ações, e que essas revoluções constitucionais de facto merecem nossa aprovação; na verdade, elas devem servir como modelos para futuras revoluções constitucionais.[12]
A visão de Ackerman pode ser contestada ao notar-se a frequência com que os revolucionários constitucionais forjam a alegada validação ex post de suas ações. Pessoas no poder têm enorme capacidade de manipular as fronteiras dos distritos eleitorais, enviesar as regras das eleições, comprar votos com o dinheiro dos contribuintes, encher as urnas com votos ilegais, ou de alguma maneira garantir que aqueles que estão no poder – independentemente de como chegaram lá – permaneçam no poder. Da mesma forma, as pessoas no poder têm a capacidade de nomear novos juízes, alterar jurisdições judiciais e mudar o tamanho ou o número de tribunais de apelação para garantir que aqueles que estão no poder – independentemente de como chegaram lá – obtenham aprovação judicial para suas (até então inconstitucionais) ações.[13]
Apesar da força das objeções anteriores, Ackerman pode se recusar a considerá-las uma refutação decisiva de sua tese. Mais cedo ou mais tarde, ele pode insistir, o povo poderá votar contra as políticas que considerar ofensivas, e os juízes poderão derrubar a constitucionalidade das leis que vão além da verdadeira autoridade constitucional do governo. Os vencedores políticos não podem manipular o jogo para sempre, então, se o povo e os juízes nunca aproveitarem as oportunidades de expressar sua aversão aos revolucionários constitucionais e suas políticas, podemos presumir que eles na verdade aprovam o que foi feito – nas palavras de Garrett, “primeiro aconteceu e depois eles consentiram.”
Em certo sentido, essa interpretação pode estar correta, mas não creio que o sentido que tenho em mente seja bem-vindo por Ackerman. Se as pessoas nunca aproveitarem a oportunidade de reverter o que foi feito inicialmente sem seu consentimento, elas podem, dessa maneira, revelar apenas que as pessoas que alimentadas com mingau ralo por muito tempo se acostumam a comê-lo, e passam até mesmo a considerá-lo nutritivo.[14] Em termos menos metafóricos, minha afirmação é que a mudança ideológica é muitas vezes dependente do seu caminho: o lugar em que uma ideologia dominante se encontra, e para onde é mais provável que vá no futuro, depende significativamente de onde ela esteve no passado.[15]
Tendo em mente esse aspecto da dinâmica política, social e econômica, podemos vir a compreender melhor como, por exemplo, em cada episódio decisivo da grande transformação da economia política dos Estados Unidos da América entre 1900 e 1950, “primeiro aconteceu e depois consentiram,” e depois o povo relembrou esses episódios não tanto com pesar, mas com orgulho e com a sensação de que a nação havia superado grandes desafios. Além disso, o povo posteriormente elevou ao panteão da “grandeza” os presidentes que se encarregaram de mergulhar a nação nesses caldeirões, e os santificaram na Igreja da Democracia – assim Woodrow Wilson e Franklin D. Roosevelt, e mais cedo, no mesmo molde, Abraham Lincoln.[16]
Depois do estouro da Primeira Guerra Mundial na Europa em agosto de 1914, a esmagadora maioria dos americanos preferia que seu governo permanecesse neutro e não se engajasse na luta. “A aversão a participar da carnificina”, escreve Walter Karp, “era praticamente unânime.”[17] O presidente Wilson se apresentou ao público tentando mostrar que estava se esforçando acima de tudo para encerrar a luta e resistir à tentação de entrar na guerra em reação a várias provocações de ambos os lados do conflito. Temos bom motivo para duvidar da sinceridade de suas declarações de neutralidade, no entanto. Thomas Fleming escreve que “em um momento de descuido, Wilson confessou a um amigo que torcia pela vitória dos Aliados na guerra, mas sua neutralidade pública não permitia dizê-lo.”[18] Não há dúvida, no entanto, de que o presidente e seus assessores eleitorais perceberam que a melhor maneira de obter a reeleição em 1916 era continuar a se apresentar como um homem de paz; daí o slogan da campanha, “Ele nos manteve fora da guerra”.
No entanto, menos de um mês após o início de seu segundo mandato, Wilson pediu ao Congresso uma declaração de guerra, baseando seu pedido na surpreendente tese de que os americanos tinham o direito absoluto de viajar sem serem molestados em alto mar em navios que transportassem munições para uma potência beligerante. “Mesmo depois que Wilson rompeu relações com a Alemanha em fevereiro de 1917”, escreve Karp, “uma esmagadora maioria dos americanos ainda se opunha a entrar na guerra. Mesmo quando os Estados Unidos já estavam em guerra há alguns meses, a maioria dos americanos permaneceu uma oposição silenciada, amuada, e mais profundamente alienada de seu próprio governo do que qualquer maioria americana jamais esteve, antes ou depois.”[19] Karp conclui: “O governo representativo lhes havia falhado a cada passo.”[20] Democracia em ação?
Provavelmente nenhum evento do século passado foi uma fonte tão prodigiosa de males quanto a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial e o Tratado de Versalhes que a entrada dos Estados Unidos tornou possível. As conquistas do bolchevismo, nazismo e do fascismo, e as múltiplas catástrofes conhecidas coletivamente como Segunda Guerra Mundial, para não mencionar os problemas intermináveis no Oriente Médio, podem discutivelmente ser rastreados diretamente até essa fonte.[21] Nos Estados Unidos, a Primeira Guerra Mundial levou o governo a adotar o que os contemporâneos chamavam de “socialismo de guerra” (embora fosse, em uma linguagem mais precisa, “fascismo de guerra” em sua maior parte), que forneceu os esboços para uma imensa variedade de intervenções governamentais na economia e na sociedade, muitas das quais continuaram a empobrecer os americanos e a esmagar suas liberdades noventa anos depois.[22] A guerra pôde ter consequências tão extremas e duradouras porque também trouxe mudanças ideológicas abruptas: muitos americanos ficaram convencidos, através de sua percepção dos controles no tempo da guerra, de que o governo era capaz de engajar-se com sucesso em uma frente ampla de engenharia socioeconômica. Assim, a guerra colocou o prego final no caixão do liberalismo do século XIX, pelo menos aos olhos dos principais atores políticos. Como declarou Bernard Baruch, chefe do Conselho das Indústrias de Guerra durante o conflito: “Ajudamos a enterrar os dogmas extremos do laissez faire, que por tanto tempo moldaram o pensamento político e econômico americano”.[23]
O próximo fracasso colossal da democracia nos Estados Unidos ocorreu em 1932. Na época das eleições presidenciais em novembro, o país havia experimentado mais de três anos de piora no desempenho econômico: queda da produção, aumento do desemprego, aumento do número de falências de empresas e aumento do número de residências e empresas perdidas por execução hipotecária ou apreensão por falta de pagamento de impostos. Não sem razões plausíveis, as pessoas culparam o presidente Herbert Hoover por esses desenvolvimentos terríveis, e deram uma chance a Franklin D. Roosevelt, o adversário democrata.
Roosevelt fez campanha com uma plataforma que os velhos democratas ao estilo de Grover Cleveland do século XIX poderiam ter endossado tranquilamente. Como Jesse Walker resume:
A primeira plataforma exige “uma redução imediata e drástica dos gastos governamentais, abolindo comissões e escritórios inúteis, consolidando departamentos e agências, e eliminando extravagâncias para obter uma economia de não menos de 25% no custo do Governo Federal.” (Também pede que “os estados façam um esforço zeloso para alcançar um resultado proporcional”.) As plataformas subsequentes exigem um orçamento equilibrado, uma tarifa baixa, a revogação da Lei Seca, “uma moeda forte a ser preservada em qualquer situação”, “não interferência nos assuntos internos de outras nações” e “a remoção do governo de todos os campos da iniciativa privada, exceto quando necessário para desenvolver obras públicas e recursos naturais no interesse comum.” O documento termina com uma citação de Andrew Jackson: “direitos iguais para todos; privilégio especial para ninguém”.[24]
Depois de fazer essas promessas, Roosevelt alcançou uma vitória marcante nas urnas.
No entanto, até uma criança sabe que seu New Deal, uma enorme miscelânea de intervenções domésticas, controles, subsídios, impostos, ameaças, apreensões, e outras perturbações se mostrou quase o oposto do que ele havia prometido aos eleitores durante a campanha.
E o que tem demais nisso, podemos ouvir o professor Ackerman perguntando nos bastidores; o povo não endossou essas ações reelegendo Roosevelt com uma margem de vitória ainda maior em 1936? Sim, claro, foi o que fizeram. Mas, àquela altura, o presidente e seu partido haviam transformado o governo federal em um vasto aparelho de compra de votos que cobria todo o país e penetrou em todos os condados, cidades e vilarejos. Como John T. Flynn descreveu a situação:
Os bilhões de Roosevelt, usados com habilidade, quebraram todas as máquinas políticas dos Estados Unidos da América. O patrocínio de que viviam, e o dinheiro local que antes tinham de desembolsar para ajudar os pobres, eram triviais em comparação com as enormes inundações de dinheiro que Roosevelt controlava. E nenhum chefe político poderia competir com ele em qualquer condado dos EUA na distribuição de dinheiro e empregos.[25]
Essa corrupção política corriqueira não era o pior. Muito mais significativo no longo prazo foi a perda de fé no livre mercado entre as massas, e o impulso dado ao apoio ideológico ao fascismo econômico. Devido à Grande Depressão e ao New Deal, as gerações posteriores viveriam com medo crônico da privação econômica e depositariam suas esperanças de segurança na crença fervorosa de que, se a economia caísse, o governo poderia e iria resgatá-las. A Lei de Emprego de 1946 codificou essa dependência pública. O individualismo robusto, na medida em que ele realmente tenha existido, teve uma morte cruel nas mãos do New Deal – exatamente o oposto do que Roosevelt havia prometido quando fez sua primeira campanha para a presidência. Democracia em ação?
Roosevelt ainda estava no cargo quando a próxima grande farsa da democracia ocorreu, em 1940. A guerra entre as grandes potências havia recomeçado na Europa, como todos esperavam que aconteceria depois que o Tratado de Versalhes foi assinado em 1919. Assim como a grande maioria dos americanos havia desejado evitar a luta em 1914, novamente uma grande maioria não queria ter nada a ver com o derramamento de sangue europeu. Roosevelt, como líder da pequena minoria que era favorável a ir à guerra – para salvar os britânicos e (ousamos conjeturar?) para permitir que ele atingisse a “grandeza” que somente a liderança em tempo de guerra traz – teve que jogar suas cartas com cuidado. Por dois anos, a mentira seria seu principal artifício político, enquanto ele tentava manobrar a Alemanha e o Japão para um “incidente” tão ultrajante que chocaria o público, fazendo-o apoiar a entrada dos Estados Unidos na guerra.[26]
A grande ambição de Roosevelt alimentou sua busca pela reeleição a um terceiro mandato sem precedentes. Dada a maciça oposição pública à guerra – oposição, isto é, ao próprio objetivo cuja realização ele buscava acima de todos os outros – o presidente, que já havia começado a envolver o país na guerra de forma discreta, elevou sua desonestidade a um nível mais alto à medida que a eleição se aproximava. Em um discurso de campanha em Boston em 30 de outubro de 1940, ele declarou sem rodeios: “Eu já disse isso antes, mas direi várias vezes: seus filhos não serão enviados para nenhuma guerra estrangeira.” Como David M. Kennedy observa, “Claramente, Roosevelt omitiu a reserva que havia usado em ocasiões anteriores: ‘exceto no caso de ataque.’”[27] Baseando-se nessa promessa aparentemente franca, o eleitorado colocou Roosevelt no cargo por mais um mandato.
Em troca, é claro, eles se viram empurrados cada vez mais para a beligerância aberta dos Estados Unidos, até que finalmente o ataque japonês a Pearl Harbor deu ao presidente o que ele, seus principais subordinados e seus partidários mais próximos buscavam desde o início: envolvimento declarado no maior conflito armado de todos os tempos. Democracia em ação?
Quando a guerra terminou, os americanos haviam sofrido mais de um milhão de baixas, incluindo mais de 400.000 mortes de militares, e quatro anos de fascismo econômico na frente doméstica, com controles extensivos, e nacionalizações que superavam as de qualquer episódio comparável nos Estados Unidos antes ou depois. Além disso, o mundo inteiro havia sido alterado, já que a União Soviética, aliada dos Estados Unidos durante a guerra, agora estava montada sobre toda a Europa Oriental e também em grande parte da Europa Central, tão a oeste quanto a Tchecoslováquia, de modo que quando a violência terminou em 1945, apenas uma tensa pseudo-paz tomou o seu lugar, e o mundo foi condenado a viver com medo da aniquilação nuclear indefinidamente.
Por esse resultado deprimente, podemos dar crédito ao sistema democrático que colocou Franklin D. Roosevelt e seu partido no poder e permitiu que tornassem os Estados Unidos o fator decisivo no resultado da guerra. Sem o envolvimento ativo dos Estados Unidos na guerra, os britânicos poderiam ter sido forçados a pedir a paz, e os alemães e os soviéticos poderiam ter lutado até um empate sangrento – um resultado medonho, certamente, mas teria sido pior do que o que realmente aconteceu? Não podemos saber, é claro; a história não é nossa para reexecutá-la, como um experimento controlado com condições de reinicialização. No entanto, dificilmente podemos negar que o mundo devastado de 1945, com 50 milhões de mortos, dezenas de milhões doentes, feridos ou desabrigados, e um ditador comunista assassino no controle de metade da Europa, dificilmente foi o que a maioria dos americanos procurou realizar quando votaram em Roosevelt em 1940.
A democracia sempre teve seus críticos. Ninguém afirma que seja um sistema perfeito para escolher líderes políticos ou implementar as políticas e leis que o público prefere. Obviamente, quando as preferências individuais diferem, nenhum resultado político pode agradar a todos, e a “tirania da maioria” representa uma ameaça constante às vidas, liberdades e propriedades de minorias impopulares. No entanto, a maioria das pessoas continua a insistir que a democracia, com todas as suas falhas, oferece o melhor arranjo institucional para responsabilizar por seus atos os governantes perante o povo. Enquanto as eleições continuarem a ser realizadas, sempre resta a possibilidade de “expulsar os patifes”.
O que não tem sido amplamente reconhecido, entretanto, é o problema dos faits accomplis (fatos consumados). Uma vez que os governantes eleitos tenham tomado posse, o sistema democrático oferece poucos ou nenhum meio efetivo para que o povo os controle antes da próxima eleição. O grande problema é que, a essa altura, pode ser impossível reverter os resultados que os governantes causaram. Wilson não foi eleito em 1916 para mergulhar a nação na Grande Guerra. Roosevelt não foi eleito em 1932 para impor o New Deal ao país. Nem foi eleito em 1940 para conduzir os Estados Unidos à maior guerra de todos os tempos. Ainda assim, em cada caso, o presidente fez o oposto do que havia prometido fazer, e o povo ficou sem recurso. O mundo de 1919, os Estados Unidos de 1936 e o mundo de 1945 – cada um foi tão maciçamente, tão irrevogavelmente alterado em relação ao status quo anterior que qualquer restauração genuína das condições anteriores era inimaginável. Quer gostassem ou não, as pessoas estavam em grande parte simplesmente presas ao que os políticos enganadores haviam feito.
Pior, devido ao “aprendizado ideológico”, muitas pessoas que inicialmente não haviam desejado essas mudanças acabaram por aprova-las nas circunstâncias em que se encontraram mais tarde – circunstâncias que eles de forma alguma escolheram, nem mesmo indiretamente, mas para as quais haviam sido empurradas à força pelos tomadores de decisão. Contemplando essa situação, lembra-se prontamente da frase de Goethe de que “ninguém é mais irremediavelmente escravizado do que aqueles que acreditam falsamente que são livres”.
Pior ainda, um contexto ideológico alterado prepara o terreno para uma sociedade se afastar ainda mais do curso originalmente preferido, através da próxima rodada de escolha democrática, seguida de decisões irrefreadas dos políticos eleitos, e os faits accomplis resultantes. Se as pessoas acreditam que a democracia é um meio pelo qual as pessoas comuns podem garantir o exercício de algum controle sobre seu próprio destino social, elas estão enganando a si mesmas. Se as pessoas eleitas para o cargo têm carta branca para agir como bem entenderem, então a sensação de que são realmente responsáveis perante o eleitorado é uma ilusão. É mais verdadeiro dizer que o povo está completamente à mercê dos governantes que elegeu.
H.L. Mencken escreveu,
A democracia pode ser uma doença autolimitante, como a própria civilização parece ser. Existem paradoxos colossais em sua filosofia, e alguns deles cheiram a suicídio.[28]
Se será suicida para seus adeptos, só o tempo dirá, mas podemos notar que, até agora, apenas os Estados Unidos da América, cujos líderes e povo apregoam seu país como a maior de todas as democracias, empregaram armas nucleares na guerra. Não é inconcebível que a guerra de Woodrow Wilson para tornar o mundo seguro para a democracia – devido à série de consequências que desencadeou – possa, em última análise, tornar o mundo seguro para a democracia, com certeza, mas não seguro para a humanidade.
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Notas
[1] Thomas R. Martin, com Neel Smith e Jennifer F. Stuart, “Democracy in the Politics of Aristotle,” em Demos · Classical Athenian Democracy · a Stoa Publication (26 de julho de 2003).
[2] Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia, 3ª ed. (Nova York: Harper and Brothers, 1950), p. 250.
[3] Ibidem, p. 253.
[4] Ibid., pp. 261, 262.
[5] Ibidem, p. 263. Para um estudo recente que trata desse problema, consulte Robert Higgs e Anthony Kilduff, “Public Opinion: A Powerful Predictor of US Defense Spending”, em Robert Higgs, Depression, War, and Cold War: Studies in Political Economy (Nova York: Oxford University Press, 2006), pp. 195–207.
[6] Ibidem, p. 264; ênfase adicionada.
[7] Ibid.
[8] Ibidem, p. 272.
[9] Garet Garrett, Ex America: The 50th Anniversary of The People’s Pottage, Introdução de Bruce Ramsey (Caldwell, Idaho: Caxton Press, 2004), p. 70.
[10] Ibid.
[11] Ibid., p. 72.
[12] Bruce Ackerman, We the People 2: Transformations (Cambridge, Mass.: Belknap Press of Harvard University Press, 1998).
[13] Robert Higgs, “On Ackerman’s Justification of Irregular Constitutional Change: Is Any Vice You Get Away With a Virtue?” Constitutional Political Economy 10 (novembro de 1999): 375–83.
[14] Para uma representação visual desse fenômeno, nada pode superar o regime espartano retratado nas primeiras cenas do esplêndido filme Babbette’s Feast (1987).
[15] Robert Higgs, “The Complex Course of Ideological Change”, American Journal of Economics and Sociology 67 (outubro de 2008): 547–65.
[16] Robert Higgs, “Great Presidents?” em Against Leviathan: Government Power and a Free Society (Oakland, Califórnia: The Independent Institute, 2004), pp. 53-56.
[17] Walter Karp, The Politics of War: The Story of Two Wars Which Altered Forever the Political Life of the American Republic (1890–1920) (Nova York: Harper and Row, 1979), p. 169.
[18] Thomas Fleming, The Illusion of Victory: America in World War I (Nova York: Basic Books, 2003), p. 75.
[19] Karp, The Politics of War, p. 169.
[20] Ibidem, p. 324.
[21] Entre as fontes recentes, ver, por exemplo, Jim Powell, Wilson’s War: How Woodrow Wilson’s Great Blunder Led to Hitler, Lenin, Stalin & World War II (Nova York: Crown Forum, 2005); e Patrick J. Buchanan, Churchill, Hitler, and the Unnecessary War: How Great Britain Lost Its Empire and the West Lost the World (Nova York: Crown, 2008).
[22] Robert Higgs, Crisis and Leviathan: Critical Episodes in the Growth of American Government (Nova York: Oxford University Press, 1987).
[23] Bernard M. Baruch, Baruch: The Public Years (Nova York: Holt, Rinehart e Winston, 1960), p. 74.
[24] Jesse Walker, “The New Franklin Roosevelts: Don’t Count on a Candidate’s Campaign Stances to Tell You How He’ll Behave in Office”, Reason Online, 10 de abril de 2008, em http://www.reason.com/news /show/125921.html.
[25] John T. Flynn, The Roosevelt Myth (Garden City, N.Y.: Garden City Books, 1949), p. 65.
[26] Entre as muitas fontes relevantes para essa manobra, ver os trabalhos recentes de Robert B. Stinnett, Day of Deceit: The Truth about FDR and Pearl Harbor (Nova York: Free Press, 2000); Thomas Fleming, Day of Deceit: The New Dealers’ War: F.D.R. and the War within World War II (New York: Basic Books, 2001); e George Victor, The Pearl Harbor Myth: Rethinking the Unthinkable (Dulles, Va.: Potomac Books, 2007).
[27] David M. Kennedy, Freedom from Fear: The American People in Depression and War, 1929–1945 (Nova York: Oxford University Press, 1999), p. 463.
[28] H.L. Mencken, A Mencken Chrestomathy (Nova York: Knopf, 1949), p. 157.