Frank van Dun
[Frank van Dun (Frank.vanDun@Ugent.be) ensina filosofia do direito na Universidade de Ghent. Ele é o autor de Het Fundamenteel Rechtsbeginsel (1983,2008), um livro em holandês que usa a ética da argumentação como base para uma teoria do direito não positivista e libertária.]
Liberdade como propriedade e o princípio da não-agressão
Teóricos libertários gostam de associar os problemas sociais e econômicos com intervenções coercivas no livre mercado, geralmente impostas ou sancionadas pelo governo, ou restrições ao exercício dos direitos libertários de auto-propriedade, apropriação e uso privado de recursos materiais, e troca por consentimento mútuo. Este tipo de análise de problemas sociais e econômicos sugere, com frequência intencionalmente, que em uma situação onde esses direitos sejam totalmente respeitados os problemas não surgiriam, ou poderiam ser e seriam resolvidos eficiente e pacificamente através da negociação, mediação ou arbitragem. Em outras palavras, nem a liberdade econômica nem a pessoal são a causa desses problemas; liberdade é a condição para resolve-los.
Isso está correto, estritamente falando – mas até onde o princípio se aplica? Como veremos abaixo, o respeito pelos direitos libertários mencionados acima não é por si só suficiente para garantir a liberdade de todas as pessoas. Pode haver casos onde exista um conflito entre reivindicações pela liberdade de uma pessoa e reivindicações pela propriedade privada de outra pessoa. Nestes casos, surge a questão: qual reivindicação deveria prevalecer? Inquestionavelmente, a resposta libertária deveria ser liberdade antes da propriedade. Infelizmente, muitos libertários relutam em desistir do conceito de “liberdade como propriedade” que (1) serve tão bem para suas críticas do intervencionismo e do coletivismo e (2) sustenta suas noções de que o direito de uma ordem libertária é apenas a aplicação rigorosa do chamado princípio de não-agressão.
A ligação lógica entre “liberdade como propriedade” e o princípio de não-agressão é a definição de agressão como uma invasão da propriedade de outro por qualquer motivo que não seja obter restituição de sua propriedade desta pessoa, ou obter compensação dos danos resultantes de uma agressão anterior cometida por esta pessoa. Então, de acordo com o princípio de não-agressão, somente invasões agressivas da propriedade de outro são ilegais e todo ato de qualquer outro tipo é legal. Na prática, juízes libertários não têm o direito de autorizar intromissão em atos não-agressivos, e agências libertárias de aplicação da lei não têm o direito de aplicar nenhuma restrição ou proibição unilateral destes atos. No entanto, se a liberdade é o supremo valor libertário, isto não servirá.
Cerco hostil na Semi-Terra libertária
A título meramente argumentativo, suponha que, em algum lugar do universo, exista um planeta – vamos chama-lo de Semi-Terra – que seja fisicamente igual ao nosso planeta Terra. Notavelmente, a Semi-Terra é povoada por seres que são iguais a nós em todos os sentidos, exceto que eles são todos libertários que seguem as leis. Deste modo, diferentemente de nós terráqueos, o semi-terráqueos (1) respeitam incondicionalmente todos os direitos pessoais de auto-propriedade, apropriação privada de recursos sem dono, uso não-invasivo irrestrito de sua própria propriedade, e troca por consentimento mútuo, e (2) cumprem incondicionalmente o princípio de não-agressão quando se trata de problemas interpessoais. Em outras palavras, não existe crime e todo dono de propriedade é livre para fazer o que quiser com sua propriedade e dentro dela, contanto que suas ações não tenham nenhum efeito físico significativo[1] em outras pessoas ou suas propriedades. Consequentemente, não existe a necessidade de nenhum governo político e podemos supor que estados, se algum dia chegarem a existir por lá, esvaneceram há muito tempo. Em resumo, a Semi-Terra é o próprio modelo de uma ordem libertária de acordo com o paradigma “liberdade como propriedade”. Contudo, é fácil imaginar como uma pessoa poderia perder sua liberdade por causa de ações não-invasivas realizadas por outras pessoas.
O caso mais óbvio é o do cerco. Suponha que todo local sobre a Semi-Terra seja propriedade privada de um ou outro indivíduo de modo que todo dono de um pedaço da superfície da Semi-Terra encontre sua propriedade rodeada pelas propriedades de outras pessoas, e possivelmente pela propriedade de uma única pessoa. Sendo os habitantes daquele planeta muito parecidos conosco, podemos esperar que ao menos algumas pessoas possam se encontrar rodeadas por rivais ou inimigos pessoais ou indivíduos maldosos que gostem de incomodar ou intimidar os outros. No entanto, como são todos pessoas que seguem a lei, eles se abstêm judiciosamente de ações agressivas e invasivas.
Obviamente, a capacidade de uma pessoa se mover ou mover seus bens além dos confins de sua própria propriedade sem invadir a propriedade dos outros depende das disposições deles de conceder esse direito de passagem a ela. No entanto, nada no sistema de direitos de propriedade da Semi-Terra obriga-os a conceder a ela o direito de passagem, ou permitir que terceiros cruzem suas propriedades para chegarem na dela (se ela tiver alguma). Consequentemente, devido a uma coincidência de decisões de seus vizinhos ou devido a um acordo entre eles, qualquer pessoa pode se encontrar presa em sua própria propriedade ou impedida de se relacionar com outras fora do círculo de seus vizinhos imediatos.
Já que, de acordo com o conceito libertário de liberdade como propriedade, proibir o acesso de uma pessoa a sua propriedade não é considerado um crime, se os vizinhos fizerem isso, deve-se considerar que eles estão agindo dentro de seus direitos. Eles não infringem os direitos de propriedade dessa pessoa. Além disso, deve-se considerar que é direito deles conceder um direito de passagem sob a condição de essa pessoa obedecer a suas exigências, independentemente do quão onerosas ou humilhantes elas possam ser. Todavia, seria um absurdo considerar que suas ações respeitam a liberdade dessa pessoa, se ao negar a ela o direito de passagem eles tornam o cerco um isolamento impositivo e sua propriedade em uma prisão (se ela estiver em sua propriedade) ou em um recurso inacessível (se ela não estiver). Ademais, devemos ter em mente que na Semi-Terra, estar cercado por propriedades de terceiros é a condição normal de toda pessoa. Assim, dada as similaridades pressupostas entre nosso planeta e este planeta supostamente ideal, deveríamos considerar a possibilidade de que grupos inteiros possam ser colocados em um isolamento impositivo.
Alguns libertários argumentariam que nada nesta situação configura uma ameaça à liberdade de alguém. Eles destacariam, por exemplo, que a pessoa cercada pode cavar um túnel sob as propriedades adjacentes ou arrumar um helicóptero e voar sobre elas.[2] No entanto, estas soluções também estão disponíveis (se é que estão disponíveis para alguém) para pessoas presas em uma prisão normal – e seria ridículo dizer que prender uma pessoa em uma prisão não a priva de sua liberdade meramente porque ela pode ter a oportunidade de fugir. Além disso, o cerco a uma pessoa poderia ser tridimensional, por exemplo, se um de seus vizinhos conduz atividades mineradoras sob a propriedade dela e outros ocupam o espaço aéreo sobre ela com fios de antena, linhas de energia e balões meteorológicos.
Outros libertários tendem a menosprezar o problema com uma referência generalizada ao livre mercado, constatando, por exemplo, que o cerco hostil inclui um custo de oportunidade para os que o praticam e que estes custos irão dissuadir indivíduos que buscam maximizar lucros de exercer tal prática por longos períodos. Esse argumento é puramente acadêmico. Em primeiro lugar, não estamos falando de pessoas sendo excluídas de alguns bares ou shopping centers, mas do único meio de acesso a suas próprias propriedades ou a outros lugares onde eles são bem-vindos. Segundo, mesmo que seja verdadeiro, o argumento apenas confirma a proposição de que, mantendo-se todas as outras condições inalteradas, o cerco hostil tende a desaparecer no decorrer do tempo. Ele não sustenta a proposição de que ele realmente desaparecerá um dia. Além disso, a realidade é que indivíduos que buscam maximizar lucros muitas vezes seguem os preconceitos da maioria da população de sua região, não importa quais sejam esses preconceitos, nem se eles próprios compartilham esses preconceitos. Demasiado frequentemente, o “consumidor soberano” é uma manada ou uma turba. Aceitando para propósitos de análise econômica que “todos os valores sejam subjetivos”, não deveríamos esperar que os efeitos do mercado sejam sempre e necessariamente em prol de valores éticos libertários objetivos, como a liberdade. Deste modo, não deveríamos subestimar os períodos que algumas pessoas estão dispostas a importunar ou boicotar outros, especialmente quando elas são encorajadas pelos aplausos e consentimento de simpatizantes. Nem deveríamos minimizar a facilidade com que algo como uma rua privada pode ser transformada de um mero ativo comercial gerador de receita em um meio de exercer controle unilateral sobre outros e suas propriedades.
Outros libertários ainda são conhecidos por culpar a vítima: qualquer um pode saber que existe um risco de ser cercado por vizinhos hostis; portanto, deve-se saber que é imprudência não tomar precauções contra essa eventualidade. Essa pode não ser uma postura irracional em um planeta como o nosso, que não é um modelo de ordem libertária. Aqui, poucas propriedades são cercadas por todos os lados por outras propriedades privadas, e menos ainda estão a grandes distâncias de espaços abertos sem dono ou públicos. No entanto, na Semi-Terra, todos os espaços acessíveis podem ser convertidos em propriedade privada ou passar para as mãos de outro dono a qualquer momento. Então, que tipo de precauções contra o cerco hostil um indivíduo poderia tomar? Ser o dono de uma via ou canal implica que nunca se deve ser capaz de converter sua propriedade em algum outro uso, se o dono original da via deu garantia de acesso aos primeiros compradores ou donos das propriedades adjacentes a ela? Ter acesso “garantido” a uma via implica que a própria via irá permanecer conectada a outras vias, pertencente ao mesmo ou a outros donos de vias?
Liberdade e propriedade: reivindicações conflitantes
Suponha que uma pessoa reclame de estar isolada do resto do mundo pelas ações não-invasivas de seus vizinhos e apresente sua queixa diante de um juiz. Qual juiz está mais próximo do espírito libertário e mais propenso a contribuir para condições de coexistência pacífica? Um juiz que rejeite a acusação porque os vizinhos não invadiram a propriedade do reclamante, ou um que está disposto a ouvir a reclamação e, se ela se mostrar justificada, disposto a decidir que os vizinhos têm a obrigação de garantir um direito de passagem ao reclamante? Um que meramente considera movimentos visíveis através limites de propriedades, ou um que considere que a proteção da propriedade, por mais vital para a preservação da liberdade que possa ser, ainda assim é apenas um meio para a liberdade e não o seu cumprimento? Qual argumento é mais provável de ser universalizável? Que direitos de propriedade são sacrossantos, ou que a liberdade é sacrossanta?
Supomos que na Semi-Terra o respeito pela propriedade privada é universal. Portanto, espera-se daqueles que forem vitimados pelo isolamento impositivo que carreguem seu fardo com equanimidade, definhando pacificamente em seus guetos e suportando sua exploração por outros. Com certeza, esta suposição não é muito plausível. Todavia, se não levarmos essa suposição à risca devemos contemplar a possibilidade de que grupos isolados recorram à violência para se libertar de seu confinamento e recuperar sua liberdade. Deveríamos condenar esta revolta como criminosa? Faríamos isso? O isolamento por um cerco hostil é uma causa justa para se recorrer à violência ou guerra contra aqueles que o impõem e se recusam a suspende-lo?
A liberdade não é servida pela guerra, e nem a propriedade. Assim como a violência agressiva ameaça estes valores, atos propensos a provocar reações violentas, bem como solidariedade generalizada por essas reações entre os observadores relativamente distantes, similarmente ameaçam as perspectivas de assegurar a liberdade e a propriedade, mesmo que eles não sejam em si mesmos ‘agressões’, i.e., invasões de propriedade. Sendo a natureza humana como ela é, não deveríamos negligenciar a irritabilidade e a irascibilidade do “animal humano”. Os princípios do direito libertário deveriam ser completamente racionais no sentido de serem “ditames da razão” provadamente irrefutáveis.[3] Tanto ao formula-los como ao aplica-los deveríamos, contudo, estar cientes de que, nas turbulências da vida, a voz da razão tem muita concorrência – e que algumas pessoas sabem como tirar vantagem deste fato para o propósito de manipular e provocar outros a darem o primeiro tiro. Em outras palavras, não deveríamos adotar a posição transcendental de santos moralmente superiores, ignorando os aspectos causais físicos e psicológicos disseminados da condição humana.
Se, como acreditam muitos libertários, a liberdade é um direito natural, então deveríamos esclarecer se ela permite que se destrua a liberdade de outros apenas de maneiras que não envolvam interferência direta com a propriedade deles. Se ela permite, então a liberdade dificilmente pode ser considerada um valor fundamental na acepção da filosofia política; se ela não permite, então o princípio de não-agressão dificilmente pode ser considerado um princípio básico do direito libertário. Em ambos os casos, parece haver algo errado em se equiparar o direito libertário à aplicação rigorosa do princípio de não-agressão.
Isto não deveria ser surpresa para ninguém. O princípio não se refere a liberdade, apenas a propriedade; seria adequado como a lei axiomática da liberdade somente se liberdade e propriedade fossem sinônimos – mas elas não são. Parafraseando Anthony de Jasay[4], não precisamos de uma teoria de “liberdade como propriedade privada” mais do que precisamos de qualquer outra teoria de “liberdade como alguma outra coisa”.
Restringindo os direitos de propriedade em prol da liberdade
Existe uma solução simples para os problemas do cerco hostil ou isolamento impositivo. A declaração habitual dos direitos de um dono de propriedade já indicam que esses direitos não são absolutos no sentido literal da palavra. Existe uma cláusula de “efeitos externos” que os libertários passaram a tomar como certa. Mesmo da perspectiva do princípio de não-agressão, ninguém tem o direito de fazer o que quiser com ou na sua propriedade. Estas ações proprietárias estão incluídas na lei de uma ordem libertária somente se elas não tiverem efeitos físicos significativos em outras pessoas ou suas propriedades.[5] A cláusula dos efeitos externos é necessária para unir os conceitos de propriedade e liberdade em um conceito plausível de uma ordem interpessoal envolvendo uma grande variedade de pessoas habitando um mundo de recursos escassos. No entanto, ainda está firmemente dentro do conceito de “liberdade como propriedade” porque ela meramente restringe os direitos de propriedade de uma pessoa ao invocar os de outras.
Como vimos, a cláusula de efeitos externos não é suficiente se a intenção for servir um propósito libertário, i.e., proteger a liberdade de todos, ao invés de uma liberdade proprietária. No mínimo, ela precisa ser suplementada para garantir a todas as pessoas[6] não somente o acesso a suas próprias propriedades como também uma forma de ir dela para qualquer outro lugar onde elas sejam bem vindas. Em resumo, além da cláusula dos efeitos externos, existe a necessidade de haver uma cláusula de “movimento livre” relativa à propriedade de recursos materiais, no sentido de que os direitos de um dono de propriedade não incluem o direito de privar outros da possibilidade de se mover entre suas próprias propriedades e quaisquer lugares onde sejam bem vindos. Claro, “privar” é muito absoluto para efeitos práticos; liberdade de movimento implica que não haja obstáculos artificiais significativos ou irrazoáveis à movimentação.
Duas questões lógicas devem ser destacadas aqui. A primeira é que se jogar uma pessoa inocente em uma cela a priva de sua liberdade, então a mesma coisa vale para construir uma cela em volta dela, mesmo naquelas ocasiões quando se consegue fazer isso sem toca-la ou tocar sua propriedade. Deste modo, a cláusula de movimento livre aparece implícita na própria ideia de liberdade. A outra questão é que a nova cláusula não se encaixa mais no paradigma de “liberdade como propriedade”. Portanto é provável que seja controversa entre os libertários – mas, no mínimo, ela possui o mérito de focar a atenção deles no conceito de liberdade, forçando-os a serem muito mais claros e mais explícitos sobre o que entendem sobre ele.[7]
Pensando sobre espaços públicos em uma ordem libertária
Supondo que a cláusula de movimento livre pudesse ser imposta, ela teria o efeito de conduzir o desenvolvimento e a disposição geográfica de propriedades no padrão familiar de uma rede de rotas, trilhas e caminhos através de espaços abertos sem dono (por exemplo, os mares, terras inabitadas ou não cultivadas) e ruas, estradas, canais, e assim por diante, conectando a propriedade de todos com todo mundo. Vamos usar via como um termo que englobe todos os elementos desta rede de direito de passagem. Parece que esta rede é o meio mais eficiente, talvez até o único viável, de reconciliar os direitos de passagem exigidos pela cláusula do movimento livre e a condição de controle exclusivo associada à propriedade privada.
Sem a cláusula do movimento livre, sob a doutrina de “liberdade como propriedade”, vias seriam eventualmente fornecidas como propriedades privadas. Isto é o que deveríamos esperar ver na Semi-Terra, porque não podemos imaginar muito bem como uma civilização humana funcionaria sem coisas como ruas, estradas e canais navegáveis. No entanto, os donos de vias teriam então exatamente os mesmos direitos dos donos de terras, fábricas ou casas privadas ao longo das vias. Eles teriam direitos de excluir de suas propriedades qualquer um por qualquer motivo ou sem motivo algum, de exigir qualquer preço ou serviço em troca de uma permissão para usa-la, mesmo das maneiras mais inócuas e pelos propósitos mais inofensivos, e de formar carteis com os donos das vias próximas para aumentar seu poder de barganha.
Em resumo, sem a cláusula do movimento livre, a propriedade privada de vias iria exacerbar o problema do cerco hostil e o risco de exploração de alguns por outros. Isto colocaria em risco a liberdade de todas as outras pessoas, e proporcionaria aos donos de vias fundamentos no direito libertário para impor todo tipo de exigências a qualquer um que queira usar a propriedade deles. Isto os instalaria como potenciais “lordes” ou soberanos com um poder legal efetivo de controlar os movimentos e transações de outros donos de propriedades localizados na área servida por suas vias. De fato, no passado, o “direito soberano” dos reis era baseado, entre outras coisas, em sua função autoproclamada ou presumida de provedor da “paz” nos espaços públicos: terras sem dono, rios, ruas, e similares, que estavam disponíveis para uso por todos os seus súditos.[8] Assim, a cláusula do movimento livre anula uma das justificativas mais dadas para a existência do poder do Estado, uma vez que ele deriva o status na lei de espaços públicos inteiramente do direito de liberdade de cada pessoa, ao invés da tomada de posse destes espaços pelo rei.
Com a cláusula do movimento livre, a propriedade de vias não seria mais do que uma semi-propriedade, um direito de administrar um ativo para garantir o direito inviolável de passagem para toda pessoa dentro da lei. Esta semi-propriedade iria presumivelmente incluir o direito de reivindicar o remanescente ou o lucro da administração das vias. Com certeza ela não iria incluir o direito de restringir o acesso às vias para propósitos legais, a menos que as restrições fossem por razões consistentes de segurança ou técnicas (e.g., limitações de peso, comprimento e largura de veículos; transporte de materiais explosivos ou tóxicos; etc.), ou a menos que as vias tivessem se tornado redundantes e não fossem mais usadas.
Observe que a cláusula não exclui a construção de vias totalmente privadas, cujos donos teriam toda extensão dos direitos de exclusão e estipulação de preços que os donos de outros tipos de propriedade possuem. Estas vias podem ser complementações úteis (e lucrativas) à rede de direito de passagem sob a cláusula de movimento livre. No entanto, a cláusula também se aplica a elas. Em outras palavras, embora permitidas em uma ordem libertária, vias totalmente privadas não poderiam romper a rede de direito de passagem em segmentos desconectados, pois isto constituiria uma violação da cláusula de movimento livre e, portanto, da liberdade dos outros.
A implicação mais importante da cláusula do movimento livre é a introdução ou reintrodução na teria libertária do conceito de espaços públicos como distintos de espaços privados exclusivos. Esta é uma área negligenciada na teoria libertária, em parte porque a teoria convencional simplesmente assume a inexistência de espaços públicos, a não ser como fonte de problemas que desapareceriam, sem gerar efeitos colaterais nocivos, tão logo estes espaços fossem “privatizados”. De fato, sob a influência do conceito de “liberdade como propriedade”, que não reconhece a cláusula do movimento livre, teóricos libertários ficam propensos a endossar a posição de que em espaços públicos deveria ser permitido que as pessoas fizessem o que quisessem, contanto que não agridam ou machuquem fisicamente outros. Em contraste, a inclusão da cláusula do movimento livre convidaria os libertários a considerar o uso apropriado da rede de direito de passagem (“espaço público”), que é liberdade de movimento pacífico, e os perigos de outros usos, como disseminação de propaganda, confrontações provocativas, e assim por diante. Já que viajantes e usuários da rede de direito de passagem não são seus donos, vale a pena perguntar quais liberdades eles podem legitimamente reivindicar, e quais obrigações se aplicam a eles enquanto estão “na estrada”. Questões similares podem surgir a respeito dos semi-donos ou administradores da rede de direito de passagem. O fundamento teórico que deve ser usado para abordar essas questões é, logicamente, a obrigação de se respeitar a liberdade de movimento de todas as pessoas (mais precisamente, de toda pessoa que não esteja legalmente confinada por conta de suas próprias ações criminosas ou sua insanidade perigosa).
Claro que existem outras implicações da cláusula de movimento livre, e.g., no que diz respeito a discussões libertárias de assuntos como migração, mas meu objetivo aqui não é explorar todas as suas ramificações; é meramente chamar atenção para ela e sugerir que seja considerada uma parte integral do conceito libertário de direitos de propriedade.
Obviamente, a cláusula de movimento livre é uma profunda restrição do direito de propriedade de donos de vias conforme seria definida de acordo com o conceito de “liberdade como propriedade”, mas ela não é uma restrição arbitrária – na verdade, ela é baseada na ideia de liberdade, que é, ou deveria ser, o valor libertário supremo. Além disso, o próprio objetivo da teoria libertária é desenvolver uma concepção de uma ordem de convivência e cooperação em que as pessoas possam aproveitar suas liberdades e encarar as agruras da vida sem terem que concordar com as exigências de alguém a cada passo que elas derem.
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Notas
[1] Não tratarei do problema de traçar uma linha entre efeitos significantes e insignificantes, embora este seja obviamente um problema prático universal. Uma ordem libertária não pode ser viável a menos que reconheça que algumas partículas de fumaça cruzando os limites entre duas propriedades são diferentes de uma nuvem espessa de fumaça preta, um cheiro sutil seja diferente de um fedor insuportável, e assim por diante.
[2] Deste modo, com respeito a um problema relacionado, veja Walter Block, “Roads, Bridges, Sunlight and Private Property: Reply to Gordon Tullock,” Journal des Economistes et des Etudes Humaines 8, no. 2/3 (junho-setembro de 1998): 315–26.
[3] Esta é a ideia básica da justificativa ética do capitalismo de Hans Hoppe em seu Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo.
[4] Veja o Antony de Jasay, “Justice as Something Else,” em Justice and Its Surroundings (Indianapolis, Ind.: Liberty Fund, 2002), originalmente publicado no Cato Journal 16, no. 2 (outono de 1996): 161–73.
[5] Executar unilateralmente uma ação com efeitos físicos significativos sobre outros ou suas propriedades é ilegal. Argumentei em outro lugar que certas ações não invasivas, como apresentar-se como outra pessoa e alterar unilateralmente o significado convencional dos termos de um contrato, também deveriam ser consideradas ilegais, se o direito libertário pretende servir o seu propósito de gerar uma ordem viável de questões humanas ao invés de ser uma fonte de ressentimento, desconfiança e conflito. Ver meu “Against Libertarian Legalism,” Journal of Libertarian Studies 17, no. 3 (2003).
[6] Sem dúvida exceções podem ser feitas, digamos, para criminosos e loucos perigosos.
[7] Para outras discussões libertárias de assuntos parecidos, veja Stephan Kinsella, “The Blockean Proviso,” Mises.org Blog (September 11, 2007), e Roderick T. Long, “Easy Rider,” Austro-Athenian Empire (Sept. 11, 2007), ambas discutindo a opinião de Walter Block de que alguém que se aproprie originalmente da terra que “cerca” terras sem donos deve garantir um atenuante para permitir o acesso de potenciais apropriadores originais de propriedade sem dono. Veja, e.g, Walter Block, “Libertarianism, Positive Obligations and Property Abandonment: Children’s Rights,” International Journal of Social Economics 31, no. 3 (2004): 275–86.
[8] Este foi um elemento chave na história natural do gênesis da “soberania absoluta” de Jean Bodin (em seu Six Livres de la République [Six Books of the Commonwealth], 1576).