É um clichê dizer que, se não estudarmos o passado, estamos condenados a repeti-lo. Algo praticamente infalível, também, é o fato de que, se há lições a serem aprendidas de um episódio histórico, a classe política irá sempre se ater às erradas – e deliberadamente.
Longe de verem o passado como uma potencial fonte de sabedoria e discernimento, os regimes políticos têm o hábito de utilizar a história como uma arma ideológica, que deve ser distorcida e manipulada sempre a serviço das ambições do presente. Foi isso o que Winston Churchill tinha em mente quando descreveu a história da União Soviética como “imprevisível”.
Por essa razão, não é nenhuma surpresa que os líderes políticos tenham feito um uso tão transparentemente ideológico do passado na esteira da crise financeira que atingiu o mundo em 2008. De acordo com a sabedoria convencional, que é incessantemente repetida, a temida Grande Depressão americana da década de 1930 foi o resultado de um excesso de capitalismo, e somente as sábias intervenções políticos progressistas da época foram capazes de restaurar a prosperidade.
Muitos daqueles que reconhecem que os programas do New Deal não tiveram êxito em retirar os EUA da depressão não hesitam, todavia, em sugerir que o que realmente acabou com a depressão foram os maciços gastos governamentais ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial.[1] (Mesmo alguns autoproclamados livre-mercadistas incorrem nessa última alegação, atitude essa que equivale a apoiar todo o argumento teórico feito pelos defensores dos pacotes de estímulos fiscais).
A conexão entre essa versão da história e os eventos atuais é óbvia: mais uma vez alega-se que o capitalismo desregulado criou uma apavorante bagunça, e mais uma vez alega-se que somente uma combinação de estímulos fiscais e monetários pode salvar o mundo.
A fim de fazer com que essa versão dos eventos se sustente, pouca ou quase nenhuma menção é feita à depressão de 1920-1921. E não é à toa – aquela experiência histórica esvazia completamente as ambições daqueles que prometem soluções políticas aos desequilíbrios reais que existem no âmago de todas as recessões econômicas.
A sabedoria convencional afirma que, na ausência de uma política anticíclica do governo, seja ela fiscal ou monetária (ou ambas), é impossível haver uma recuperação econômica – pelo menos não sem uma longa e intolerável demora. Entretanto, políticas exatamente opostas foram seguidas durante a depressão de 1920-1921 nos EUA, e a recuperação não tardou a vir.
A situação econômica nos EUA em 1920 era sinistra. Naquele ano o desemprego havia pulado de 4% para quase 12%, o PNB havia declinado 17%. Não é de se estranhar, portanto, que o então Secretário de Comércio [equivalente ao nosso Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior] Herbert Hoover – até hoje falsamente descrito como um entusiasta do laissez-faire – tenha instado veementemente o então presidente Warren G. Harding a fazer uma série de intervenções para reativar a economia. Mas Hoover foi ignorado.
Ao invés de um “estímulo fiscal”, Harding reduziu o orçamento do governo praticamente à metade entre 1920 e 1922: os gastos federais declinaram de $6,3 bilhões em 1920 para $5 bilhões em 1921 e $3,3 bilhões em 1922. E o restante da abordagem de Harding foi igualmente laissez-faire: o imposto de renda foi diminuído para todos os grupos de renda e a dívida nacional foi reduzida em 33%.
A atividade do Federal Reserve, o banco central americano, foi praticamente imperceptível. Como um historiador econômico escreveu, “Apesar da severidade da contração econômica, o Fed não utilizou seus poderes para aumentar a oferta monetária e combater a recessão”.[2] No terceiro trimestre de 1921, os sinais da recuperação já eram visíveis. No ano seguinte, o desemprego caiu para 6,7%, e em 1923 já estava em 2,4%.
É bastante instrutivo comparar a resposta americana nesse período à japonesa. Em 1920, o governo japonês introduziu os fundamentos de uma econômica planificada, cujo objetivo era manter os preços artificialmente altos. De acordo com o economista Benjamin Anderson,
Os grandes bancos, as indústrias concentradas e o governo entraram em conluio, destruíram a liberdade dos mercados, interromperam o declínio nos preços das commodities, e mantiveram o nível de preços do Japão acima do declinante nível de preços mundial por sete anos. Durante esses anos, o Japão sofreu uma crônica estagnação industrial e, ao final, em 1927, enfrentou uma crise bancária de tamanha severidade que muitas filiais de grandes bancos foram à falência, assim como várias indústrias. Foi uma política estúpida. No esforço de se impedir que ocorressem prejuízos com os estoques de um ano de produção, o Japão perdeu sete anos.[3]
Os Estados Unidos, em contraste, permitiram que sua economia se reajustasse. “Em 1920-21”, escreveu Anderson,
encaramos nossos prejuízos, reajustamos nossa estrutura financeira, suportamos nossa depressão e, em agosto de 1921, recomeçamos nosso crescimento.. A reação ocorrida na produção e no emprego, que começou em agosto de 1921, foi solidamente baseada em uma limpeza drástica do crédito malfeito, em uma drástica redução nos custos de produção, e na livre concorrência da iniciativa privada. A reação não se baseou em nenhuma política governamental criada para subsidiar os negócios.
O governo americano não fez aquilo que os economistas keynesianos desde então vêm insistindo para que os países façam: praticar déficits orçamentários e estimular vários setores da economia via aumento de gastos. Ao contrário, prevaleceu a antiquada ideia de que o governo deveria manter a tributação e os gastos em níveis baixos e reduzir a dívida pública.[4]
Esses foram os temas econômicos da gestão presidencial de Warren Harding. Poucos presidentes americanos são mais impopulares entre historiadores do que Harding, que é rotineiramente retratado como um bobo desajeitado que caiu de pára-quedas na presidência. Entretanto, quaisquer que tenham sido suas deficiências intelectuais – e elas foram grotescamente exageradas, como recentes estudiosos vêm admitindo – e quaisquer que tenham sido seus defeitos morais (seu gabinete sofreu acusações de corrupção), ele compreendeu os fundamentos da expansão econômica, da recessão e da recuperação melhor do que qualquer outro presidente do século XX.
Em seu discurso de aceitação após ser confirmado como o candidato Republicano à presidência dos EUA, Harding declarou,
Tentaremos uma deflação inteligente e corajosa, e atacaremos a prática do endividamento governamental, algo que só aumenta o infortúnio e a nocividade, e atacaremos o alto custo do governo com todos os meios e energia inerentes à capacidade republicana. Prometemos o alívio que advirá da interrupção do gasto e da extravagância, e a renovação da prática da economia do setor público, não apenas porque isso irá aliviar o fardo tributário, mas também porque será um exemplo para se estimular a poupança e a economia na esfera privada.
Estimulemos todas as pessoas a poupar e a economizar, a recorrerem ao sacrifício e à renúncia se preciso for, a uma iniciativa nacional contra a extravagância e a magnificência, a um recomprometimento à simplicidade de vida, àquele plano de vida prudente e normal que caracterizam a saúde da república. Desde que a história da humanidade foi escrita pela primeira vez, os efeitos devastadores trazidos pelos gastos e anormalidades de uma guerra só são superados por meio do trabalho e da poupança, da produção e da abnegação – ao passo que a gastança desnecessária e a extravagância insensata foram as responsáveis por todos os declínios na história das nações.
É desnecessário chamar a atenção para o fato de que esse conselho de Harding – que por incrível que pareça foi dito em um discurso em uma convenção política – é o oposto daquele que os supostos especialistas nos recomendam veementemente hoje. Inflação, aumento dos gastos públicos e agressões às poupanças privadas, tudo isso combinado a clamores por mais consumismo pródigo: esse é o programa para uma “recuperação” no século XXI.
Não surpreendentemente, muitos dos atuais economistas que estudaram a depressão de 1920-1921 se mostraram incapazes de explicar como a recuperação foi tão rápida e integral mesmo com o governo federal e o banco central tendo se recusado a aplicar qualquer uma das ferramentas macroeconômicas – gastos em obras públicas, déficits orçamentários e políticas monetárias inflacionistas – que a sabedoria convencional hoje preconiza como sendo a solução para as contrações econômicas. O economista keynesiano Robert A. Gordon admitiu que “as políticas governamentais para moderar a depressão e acelerar a recuperação foram mínimas. As autoridades do Federal Reserve foram amplamente passivas… Apesar da ausência de uma política governamental de estímulo, a recuperação não demorou.”[5]
Outro historiador econômico admitiu que “a economia recuperou-se rapidamente da depressão de 1920-1921 e adentrou um período de crescimento bastante vigoroso”, porém, como a maioria dos historiadores, ele preferiu não tecer mais comentários sobre esse fenômeno e nem extrair dele qualquer aprendizado.[6] “Isso foi em 1921”, escreveu com ares de superioridade Kenneth Weiher, “muito antes do conceito de política anticíclica ter sido aceito ou mesmo compreendido”[7] Pode ser que as pessoas daquela época ainda não tinham “entendido” o conceito de política anticíclica, mas a recuperação veio de todo jeito – e rapidamente.
Um dos mais pervertidos tratamentos do assunto em questão pode ser encontrado nos escritos de dois historiadores do governo Harding, os quais insistem que, caso os governos se recusem a confiscar a maior parte da renda dos cidadãos mais ricos, a economia jamais será estável:
Os cortes de impostos, junto com a ênfase dada ao abatimento da dívida nacional e à redução dos gastos federais, serviram apenas para favorecer os ricos. Muitos economistas concordam que uma das principais causas da Grande Depressão de 1929 foi a desigual distribuição de renda, a qual pareceu ter se acelerado durante a década de 1920, e que foi resultado desse retorno à normalidade. Cinco por cento da população americana detinha mais de 33% da riqueza nacional em 1929. Esse grupo não foi capaz de utilizar sua riqueza responsavelmente… Ao contrário, eles estimularam a perniciosa especulação na bolsa de valores, bem como o crescimento econômico desigual.[8]
Se essa teoria – ou pelo menos essa tentativa absurda de se criar uma – fosse correta, o mundo viveria em um constante estado de depressão. Não havia absolutamente nada de atípico no padrão de riqueza dos EUA nos anos 1920. Disparidades muito maiores já existiram (e existem) em inúmeros lugares e em épocas diferentes, sem que gerassem qualquer distúrbio semelhante.
Com efeito, a Grande Depressão na realidade veio exatamente quando ocorria um dramático aumento na fatia da renda nacional ocupada pelos salários – e uma queda na fatia ocupada por juros, dividendos e renda empresarial.[9] O que prova que, para se obter a prosperidade, não é necessária nenhuma expropriação violenta da renda dos indivíduos.
Entretanto, não basta demonstrar que a prosperidade surge da ausência de estímulos fiscais ou monetários. É preciso entender por que esse resultado é o esperado – em outras palavras, por que a restauração da prosperidade na ausência dos remédios amplamente receitados pelos economistas modernos não foi um fato raro e irrelevante ou um resultado do mero acaso.
Primeiro, é preciso antes de tudo examinar por que a economia de mercado é atormentada pelos ciclos de expansão e recessão. O economista britânico Lionel Robbins fez a seguinte pergunta em seu livro The Great Depression, de 1934: Por que todos empreendedores repentinamente cometem um “conjunto de erros” ao mesmo tempo?
Dado que o mercado, por meio do sistema de lucros e prejuízos, está constantemente eliminando os empreendedores menos competentes, por que é que aqueles relativamente mais capacitados, os quais foram recompensados pelo mercado com lucros e com o controle sobre recursos adicionais, repentinamente cometem erros graves – e todos na mesma direção? Será que algo fora da economia de mercado – ao invés de algo inerente a ela – pode ser o responsável por esse fenômeno?
Ludwig von Mises e F.A. Hayek apontaram a expansão artificial do crédito, normalmente sob os auspícios de um banco central criado pelo governo, como sendo o culpado extramercado. (Hayek ganhou o Prêmio Nobel em 1974 pelo seu trabalho sobre o que é hoje conhecida como a teoria austríaca dos ciclos econômicos.) Quando o banco central expande a oferta monetária – por exemplo, quando ele compra títulos do governo em posse dos bancos -, ele faz isso criando dinheiro essencialmente do nada.
Esse dinheiro vai diretamente para os bancos comerciais (caso os títulos estejam em posse de outra entidade qualquer, o dinheiro vai para essa entidade, que acabará depositando-o em sua conta bancária, fazendo com que o destino final do dinheiro também seja os bancos comerciais). Da mesma forma que o preço de um bem qualquer tende a diminuir quando sua oferta aumenta, o influxo de dinheiro recém-criado causa uma diminuição nas taxas de juros, uma vez que os bancos tiveram um aumento nos seus fundos disponíveis para empréstimos.
As taxas de juros mais baixas estimulam o investimento em projetos de longo prazo, os quais são mais sensíveis aos juros do que os projetos de curto prazo. (Compare os juros que são pagos mensalmente para quitar empréstimos de 30 anos com os juros que são pagos mensalmente para quitar um empréstimo de 2 anos – uma pequena redução nos juros terá um impacto substancial no primeiro caso, mas um impacto desprezível no segundo). Investimentos adicionais em, por exemplo, pesquisa e desenvolvimento (P&D), os quais podem levar anos para produzir resultados, irão repentinamente parecer lucrativos, ao passo que não teria sido lucrativo fazê-los sem esses menores custos de financiamento trazidos pelas taxas de juros mais baixas.
Na estrutura de produção de uma economia (estrutura do capital), dizemos que P&D é um estágio de produção de “ordem mais alta” do que uma loja de varejo que vende chapeus, por exemplo, já que chapeus estão imediatamente disponíveis para os consumidores, ao passo que os resultados comerciais da P&D só estarão disponíveis daqui a um tempo relativamente longo. Quanto mais perto um estágio da produção estiver do produto final a ser comercializado, mais baixo é o estágio que ele ocupa na estrutura de produção.
No livre mercado, as taxas de juros coordenam a produção ao longo do tempo. Elas garantem que a estrutura de produção seja configurada sempre de maneira a estar de acordo com as preferências dos consumidores. Se os consumidores querem que haja mais bens de consumo disponíveis agora, os estágios de ordem mais baixa da estrutura de produção vão se expandir. Se, por outro lado, eles estão dispostos a adiar o consumo atual (consumindo menos, poupando mais), as taxas de juros irão estimular os empreendedores a aproveitar essa oportunidade para empregar seus fatores de produção em projetos que não estão voltados para a satisfação dos desejos imediatos dos consumidores, mas que, tão logo se tornem uma realidade, irão gerar uma maior oferta de bens de consumo no futuro.
Se as taxas de juros mais baixas no nosso exemplo tivessem sido o resultado de uma poupança voluntária da parte do público, e não de uma intervenção do banco central, a diminuição relativa nos gastos em consumo – que é o equivalente a um aumento da poupança – teria liberado recursos para serem utilizados nos estágios de ordem mais alta da estrutura de produção. Em outras palavras, caso haja uma genuína poupança, a demanda por bens de consumo sofre um declínio relativo; as pessoas estão poupando mais e gastando menos do que antes.
As indústrias de bens de consumo, por sua vez, sofrem uma relativa contração em resposta a essa diminuição na demanda por bens de consumo. Os fatores de produção que essas indústrias utilizavam – serviços de transporte de carga, por exemplo – são agora liberados para serem utilizados em estágios mais remotos da estrutura de produção. O mesmo ocorre com a mão-de-obra, aço e outros insumos não específicos.
Quando há alguma interferência na estrutura da taxa de juros – que até então vinha sendo determinada livremente pelo mercado -, essa função coordenadora é perturbada. Um aumento dos investimentos nos estágios de ordem mais alta da estrutura de produção ocorre em um momento em que a demanda por bens de consumo não foi reduzida. A estrutura da produção é distorcida de tal modo que ela não mais corresponde ao padrão temporal determinado pelas demandas dos consumidores. Os consumidores estão demandando bens no presente justamente em um momento em que está havendo um desproporcional aumento nos investimentos para a produção de bens futuros.
Portanto, quando taxas de juros mais baixas são resultado de uma política do banco central, e não de um aumento genuíno na poupança, não houve nenhum recuo na demanda do consumidor. (Na verdade, as taxas mais baixas deixam as pessoas ainda mais propensas a se endividar e gastar). Nesse caso, não houve uma liberação de recursos para que estes sejam usados nos estágios de ordem mais alta. A economia encontra-se, portanto, em um cabo-de-guerra, com recursos sendo disputados entre os estágios de ordem mais alta e os estágios de ordem mais baixa da estrutura de produção.
Com o passar do tempo, os recursos vão se revelando inesperadamente escassos, o que gera um aumento dos custos. Esse aumento dos custos ameaça a lucratividade dos projetos de ordem mais alta. O banco central pode expandir artificialmente o crédito ainda mais, com o intuito de reforçar a posição dos estágios de ordem mais alta nesse cabo-de-guerra. Mas isso irá meramente adiar o inevitável.
Se o padrão de poupança e consumo que foi livremente escolhido pelos indivíduos não estiver dando respaldo a esse desvio de recursos para os estágios de ordem mais alta – mais ainda, se ele estiver na realidade forçando os recursos a voltarem para aquelas empresas que lidam diretamente com bens de consumo finais -, então o banco central está numa guerra contra a realidade. Ele terá que, em algum momento futuro, decidir se – a fim de validar toda a expansão havida nos estágios de ordem mais alta – ele está preparado para expandir o crédito a uma taxa galopante e arriscar a destruição total da moeda, ou se, ao contrário, ele deve diminuir ou mesmo interromper sua expansão monetária e deixar que a economia se ajuste sozinha às condições reais.
É importante observar que o problema não está relacionado a uma insuficiência nos gastos em consumo, como a popular noção keynesiana nos faria crer. No mínimo, o problema advém de um excesso de gastos em consumo, o que impede que haja um suficiente direcionamento de fundos para outros tipos de gasto – a saber, a expansão de estágios de produção de ordem mais alta, os quais não podem ser lucrativamente concluídos porque os recursos necessários para tal estão sendo absorvidos exatamente pela inesperada e relativamente mais robusta demanda por bens de consumo. Estimular os gastos em consumo irá apenas piorar as coisas, pois irá estrangular ainda mais os fundos disponíveis para investimento, deteriorando a já declinante lucratividade dos investimentos nos estágios de ordem mais alta.
Observe também que o fator gerador dos ciclos econômicos não é um fenômeno inerente ao livre mercado. É aintervenção no mercado que gera o ciclo do crescimento insustentável seguido da inevitável recessão.[10] Como o estudioso dos ciclos econômicos Roger Garrison sucintamente coloca, “A poupança nos dá um crescimento genuíno; a expansão do crédito nos dá a expansão seguida da recessão.”[11]
Esse fenômeno antecede todos os grandes ciclos econômicos, incluindo-se aí a crise de 2008 e a depressão de 1920-1921. Os anos anteriores a 1920 foram caracterizados por um aumento maciço na oferta monetária por meio do sistema bancário, com o compulsório dos bancos sendo reduzidos à metade após a criação do Federal Reserve em 1913 e, depois, com a considerável expansão do crédito feita pelos próprios bancos.
O total de depósitos bancários mais que dobrou entre janeiro de 1914, quando o Fed foi inaugurado, e janeiro de 1920. Esse tipo de criação artificial de crédito é que gera os ciclos econômicos. O Fed também manteve sua taxa de redesconto (a taxa que ele cobra por empréstimos feitos diretamente aos bancos) em um nível baixo durante toda a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e por um breve período depois dela. O Fed só começou a adotar uma postura mais contracionista no final de 1919.
O economista Gene Smiley, autor de The American Economy in the Twentieth Century, observa que “A visão mais comum é a de que a política monetária do Fed foi o principal determinante do fim da expansão econômica e da inflação, e do início da subsequente contração econômica e da severa deflação de preços.”[12] Tão logo o crédito começou a se contrair, os agentes de mercado repentinamente começaram a perceber que a estrutura de produção tinha de ser rearranjada, e que as linhas de produção que dependiam do crédito fácil representavam um investimento errôneo que sequer deveria ter sido iniciado – e que agora precisava ser liquidado.
Agora podemos fazer uma avaliação daquelas propostas perenemente em voga, como “estímulos fiscais” e seus vários similares. Pense na situação da economia logo após a expansão econômica artificial. Ela está repleta de desequilíbrios. Recursos em excesso foram empregados nos estágios de produção de ordem mais alta e recursos insuficientes foram empregados nos estágios de produção de ordem mais baixa.
Esses desequilíbrios precisam ser corrigidos por empreendedores que, atraídos por taxas de lucro mais altas nos estágios de ordem mais baixa, retiram recursos daqueles estágios que se expandiram excessivamente e os direcionam para os estágios de ordem mais baixa, onde estão sendo mais demandados. É essencial que haja absoluta liberdade de preços e salários para que essa tarefa possa ser cumprida, uma vez que preços e salários são ingredientes indispensáveis para a avaliação empreendedorial.
À luz dessa descrição da economia do pós-boom, podemos ver o quão inúteis, até mesmo irrelevantes, são os esforços de um estímulo fiscal. O mero ato governamental de se gastar dinheiro em projetos arbitrariamente escolhidos em nada ajuda a corrigir os desequilíbrios que levaram à crise.
Não foi um declínio nos “gastos” per se que causou todo o problema. Foi o descompasso entre, de um lado, o tipo de produção que a estrutura do capital foi erroneamente levada a empreender, e, de outro, o padrão da demanda do consumidor, que é incapaz de sustentar a estrutura da produção como ela está.
E não é incorreto se referir aos recebedores do estímulo fiscal como projetos arbitrários. Dado que o governo não funciona sob o mesmo mecanismo de lucros e prejuízos que guia uma empresa privada, e dado que ele pode adquirir recursos adicionais por meio da expropriação direta do público, ele não tem como saber se está de fato satisfazendo as demandas do consumidor (considerando-se que ele realmente esteja preocupado com isso) ou se o uso que ele está fazendo dos recursos é grotescamente descuidoso e desperdiçador. Não obstante a retórica popular, o governo não pode ser gerido como uma empresa.[13]
Estímulos monetários também não são de nenhuma valia. Ao contrário, eles apenas intensificam o problema. Em Ação Humana, Mises compara uma economia sob a influência de uma expansão artificial do crédito a um mestre-de-obras encarregado de construir uma casa, sendo que (sem que ele saiba) não há tijolos suficientes disponíveis para completá-la. Quanto mais cedo ele descobrir esse erro, melhor. Quanto mais tempo ele insistir nesse projeto insustentável, mais recursos e mais tempo de trabalho serão irremediavelmente desperdiçados. Com isso, no final todos estarão mais pobres, pois capital foi consumido a troco de nada.
Estímulos monetários meramente encorajam os empreendedores a continuarem empreendendo seus projetos insustentáveis. É como se, ao invés de alertarem o mestre-de-obras de que está faltando tijolo, seus subordinados simplesmente escondessem dele esse fato, ludibriando-o a fim de adiar a inevitável descoberta da verdade. Tais medidas não fazem com que a derradeira recessão possa ser evitada – apenas tornam-na mais dolorosa.
Se a visão austríaca estiver correta – e creio que as evidências teóricas e empíricas fortemente indicam que está -, então a melhor abordagem para se estimular a recuperação econômica seria oposta a essas estratégias keynesianas. O orçamento do governo deve ser reduzido, e não aumentado, permitindo assim a liberação de recursos para que agentes privados possam utilizá-los para realinhar a estrutura do capital.
A oferta monetária não deve ser aumentada. Pacotes de socorro a empresas no limiar da falência servem apenas para congelar os erros empreendedoriais, ao invés de permitir que esses recursos sejam transferidos para empreendedores mais aptos a suprir as demandas do consumidor, empreendedores que de fato entendam as condições reais da economia.
Empréstimos de emergência para empresas em dificuldades perpetuam a má alocação de recursos e estendem um favoritismo político para empresas que estão incorrendo em práticas insustentáveis. Da mesma forma que a mencionada acima, esse favoritismo político se dá em detrimento de empresas sólidas que estão preparadas e capacitadas para adquirir esses recursos e direcioná-los para usos mais apropriados.
A experiência de 1920-1921 reforça a argumentação dos genuínos economistas pró-livre mercado de que a intervenção governamental é um obstáculo à recuperação econômica. Os keynesianos costumam dizer que economia americana se recuperou rapidamente da depressão de 1920-1921 apesar da ausência de estímulos fiscais e monetários. Errado. É exatamente porque tais medidas foram evitadas, que ela se recuperou rapidamente.
Leituras recomendadas:
O melhor presidente do século XX
Juros, preferência temporal e ciclos econômicos
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Notas
[1] Sobre a falácia da “prosperidade dos tempos de guerra” trazida pela Segunda Guerra Mundial, ver Robert Higgs, Depression, War, and Cold War (New York: Oxford University Press, 2006).
[2] Kenneth E. Weiher, America’s Search for Economic Stability: Monetary and Fiscal Policy Since 1913 (New York: Twayne, 1992), p. 35.
[3] Sobre o Japão, ver Benjamin M. Anderson, Economics and the Public Welfare: A Financial and Economic History of the United States, 1914-1946 (Indianapolis: Liberty Press, 1979 [1949]), pp. 88-89, 90.
[5] Robert Aaron Gordon, Economic Instability and Growth: The American Record (New York: Harper and Row, 1974), pp. 21-22, citado em Joseph T. Salerno, “An Austrian Taxonomy of Deflation – With Applications to the U.S.,”Quarterly Journal of Austrian Economics 6 (Winter 2003): 89.
[6] Robert A. Degen, The American Monetary System: A Concise Survey of Its Evolution Since 1896 (Lexington, MA: D. C. Heath, 1987), p. 41.
[7] Weiher, America’s Search for Economic Stability, p. 36.
[8] Eugene P. Trani and David L. Wilson, The Presidency of Warren G. Harding (Lawrence, KS: University Press of Kansas, 1977), p. 72.
[9] C. A. Phillips, T. F. McManus, and R. W. Nelson, Banking and the Business Cycle: A Study of the Great Depression in the United States (New York: Macmillan, 1937), p. 76.
[10] A teoria austríaca também se aplica aos casos em que não havia nenhum banco central e a expansão artificial do crédito ocorreu por outros meios. A intervenção governamental também é a culpada. Ver Jesús Huerta de Soto, Money, Bank Credit, and Economic Cycles, trans. Melinda A. Stroup (Auburn, AL: Ludwig von Mises Institute, 2006).
[11] Roger W. Garrison, “The Austrian Theory: A Summary,” in The Austrian Theory of the Trade Cycle and Other Essays, comp. Richard M. Ebeling (Auburn, AL: Ludwig von Mises Institute, 1996), p. 99.
[12] Gene Smiley, “The U.S. Economy in the 1920s,” EH.Net Encyclopedia, ed. Robert Whaples, March 26, 2008.
[13] Ludwig von Mises, Bureaucracy (New Haven, CT: Yale University Press, 1944).