Durante grande parte de 2016, a construção do Dakota Access Pipeline provocou uma série de longos protestos decorrentes de preocupações sobre o impacto do oleoduto nas águas subterrâneas da região. O oleoduto também passou perto da Reserva Indígena Standing Rock, o que provocou a oposição de alguns membros da tribo Sioux, dentre outras. Governos tribais se envolveram e, como resultado, reguladores federais também.
No final de 2016, em meio aos protestos, a equipe de transição de Donald Trump – durante os preparativos pré-posse – sugeriu que poderia dar prosseguimento as iniciativas de “privatizar” terras de reserva indígena como forma de agilizar o processo de construção do oleoduto.[1]
Qual seria o objetivo dessa “privatização”? De acordo com várias fontes dentro da equipe de transição de Trump, a intenção declarada da política de privatização era permitir que os governos tribais contornassem as regulamentações federais dos EUA em favor de uma tomada de decisão mais localizada. Segundo a Reuters:
Agora, um grupo de conselheiros do presidente eleito, Donald Trump, em questões indígenas americanas quer libertar esses recursos do que chamam de uma burocracia federal sufocante, que detém o título de 56 milhões de acres de terras tribais, disseram dois presidentes da coalizão à Reuters em entrevistas exclusivas.
As tribos têm direitos legais de uso da terra, mas não a possuem. Elas podem perfurá-la e colher os lucros, mas apenas sob regulamentações que são muito mais onerosas do que as aplicadas à propriedade privada.
“Devemos tirar as terras tribais da alçada pública”, disse Markwayne Mullin, deputado republicano de Oklahoma e membro da tribo Cherokee que copresidiu a Coalizão de Assuntos Nativos Americanos de Trump. “Enquanto pudermos fazer isso sem consequências não intencionais, acho que teremos amplo apoio em todo o país indígena.”[2]
A ideia aqui era que muitas autoridades e residentes em terras tribais, bem como governos tribais, queriam que o oleoduto fosse adiante, e isso era mais provável de acontecer se o envolvimento federal pudesse ser minimizado.
Nunca ficou muito claro o que a equipe de Trump quis dizer com “privatização”, mas se a privatização nesse contexto significava tirar mais terras das mãos do governo federal dos EUA, então isso é uma coisa boa. Por outro lado, se a privatização significasse a dissolução das reservas indígenas e de outras instituições tribais, isso seria ruim. Se os governos tribais serão ou não reformados, ou dissolvidos deve, é claro, caber às pessoas que vivem em terras tribais. Mas mesmo para os americanos que não são membros de tribos e que não vivem em terras tribais, a soberania tribal tem o potencial de cumprir um papel importante na limitação do poder federal por meio da descentralização política.
Terras tribais devem estar fora do alcance do governo federal
A relação entre os governos tribais e o governo federal dos EUA tem sido complexa. Para simplificar: as tribos indígenas são governos soberanos, e suas relações com o governo dos EUA são regidas por tratados bilaterais. Na prática, no entanto, as tribos são apenas semissoberanas e estão sujeitas à supervisão federal e regulamentação federal. Os tratados que regem as relações federais-tribais podem ser alterados ou desconsiderados unilateralmente pelo governo federal. Na prática, essas “nações soberanas” têm ainda menos controle local do que os estados-membros dos Estados Unidos.
No entanto, as tribos permanecem entidades políticas de jure fora dos estados em que estão localizadas e, portanto, têm uma relação jurídica direta com o governo federal. Pretende-se, assim, que elas gozem de algum grau de independência tanto em relação ao governo federal quanto aos governos estaduais.
Nos últimos anos, alguns progressos foram feitos, pelo menos na área da expansão da soberania tribal em relação aos estados-membros dos EUA. Por exemplo, em 2019, no caso Herrera v. Wyoming, a Suprema Corte dos EUA anulou as conclusões dos tribunais inferiores de que os direitos tribais (estabelecidos em um tratado de 1868 com o governo dos Estados Unidos) em Wyoming haviam cessado quando Wyoming se tornou um estado em 1890. Conforme o resumo do caso:
Em 2014, Wyoming acusou o peticionário Clayvin Herrera de caçar fora de época na Floresta Nacional de Bighorn e ser um cúmplice do mesmo. O tribunal estadual de julgamento rejeitou o argumento de Herrera de que ele tinha o direito protegido de caçar na floresta de acordo com o Tratado de 1868, e um júri o condenou.[3]
O direito de caçar era limitado a terras “desocupadas”, e Herrera argumentou que as terras da Floresta Nacional em que ele estava caçando estavam desocupadas, e que ele tinha o direito de caçar lá devido às estipulações do tratado. O tribunal não decidiu se o lugar específico onde Herrera estava caçando estava ou não “ocupado”, mas se concentrou em se os direitos dos membros tribais continuavam ou não a existir de acordo com um tratado existente. O tribunal considerou que esses direitos ainda existem, mas Herrera ainda pode ser considerado culpado se for comprovado que a terra em que ele estava caçando não é desocupada.
Independentemente de Herrera ser ou não considerado culpado, as conclusões do tribunal são importantes porque potencialmente estabelecem um padrão mais elevado de soberania para os governos tribais do que havia sido admitido anteriormente pelos tribunais.
Afinal, a premissa básica dos tratados entre as tribos e o governo dos EUA – pelo menos conforme comunicado às próprias tribos – era que as tribos eram entidades soberanas que celebravam tratados com outra entidade soberana (ou seja, o governo dos EUA). Com o tempo, o governo americano aproveitou a falta de independência de fato das tribos para reinterpretar os tratados como documentos sujeitos a emendas unilaterais e revogação pelo Congresso. Pior ainda, os governos estaduais nos EUA começaram a afirmar sua própria autoridade sobre as tribos, mesmo que as tribos não fossem partes de nenhum tipo consoante os governos estaduais.
Nas últimas décadas, no entanto, os tribunais começaram lentamente a limitar a jurisdição estadual sobre as tribos, com o efeito de fornecê-las mais autonomia. Talvez a mais famosa entre essas decisões seja o caso California v. Cabazon Band of Mission Indians, de 1987, no qual o tribunal determinou que os governos estaduais não poderiam impedir as tribos de oferecer jogos de azar legais dentro de suas próprias fronteiras (na maioria dos casos). O resultado foi a descentralização política e um maior acesso ao jogo legal para membros não tribais. A subsequente ascensão da indústria de jogos em terras tribais melhorou muito o padrão de vida de muitos índios.
Em Herrera v. Wyoming, o tribunal estabeleceu ainda que os governos estaduais não podem simplesmente se sobrepor à lei tribal estabelecida por tratados sempre que ela se adequar às legislaturas estaduais. Mas este não é o único caso nos últimos anos que fortaleceu a independência tribal. Em março de 2019, a Suprema Corte decidiu a favor da tribo Yakama no Washington State Dept. of Licensing v. Cougar Den, Inc. A Corte considerou que o Tratado da Nação Yakama de 1855 antecipa as tentativas do estado de taxar o combustível comprado por uma corporação tribal para venda a membros tribais. O estado de Washington alegou que poderia taxar o combustível tribal transportado em rodovias estaduais. A Suprema Corte discordou e adotou uma interpretação relativamente ampla das disposições do tratado que garantem o uso das rodovias do estado.
Descentralização e soberania local importam
Estes dois casos, naturalmente, são apenas pequenos passos na direção certa. Na maior parte das vezes, o Congresso ainda pode revogar e alterar tratados por conta própria com pouca influência das próprias tribos. Esses casos recentes ajudam a estabelecer uma maior soberania tribal em face da lei estadual, mas pouco fazem – por si só – para aumentar a soberania tribal quando se trata de legislação federal. Alguns observadores podem interpretar erroneamente essas decisões como ataques à soberania do estado, diminuindo o controle estatal sobre seu próprio território. Isso, no entanto, não se aplica.
Corretamente imaginado, tanto os governos estaduais quanto os governos tribais deveriam ter uma independência muito maior tanto do controle federal, quanto uns dos outros. Na prática, por exemplo, todo o canto nordeste do Arizona, que é principalmente terra tribal Navajo, não deve ser considerado território do Arizona. Também não deve ser considerado território dos EUA.
Por enquanto, porém, o governo federal continua a exercer imensas quantidades de poder regulatório direto sobre as terras tribais, e pode regular os assuntos tribais internos até se as tribos podem ou não legalizar a maconha.
No entanto, o status concedido pelo tratado às tribos constitui um controle sobre o poder do governo federal. Essa ideia foi explorada por Kevin Bourgault, do Center for Indigenous Self-Determination Research. Bourgault escreve:
As tribos são as únicas entidades em nossa sociedade com direitos de tratados estabelecidos… Como nações soberanas, as tribos são entidades políticas equivalentes aos estados em que estão localizadas.
As tribos também estão entre as poucas entidades que têm uma reivindicação imediata de reparação legal e mitigação. Isso significa que as tribos estão posicionadas de forma única para agir rapidamente dentro de um sistema jurídico que está se tornando cada vez mais bizantino e sem resposta às necessidades imediatas….[4]
Bourgault enquadrou o argumento em termos de questões ambientais, mas a questão maior aqui é a da descentralização. Uma vez que os governos tribais são – pelo menos teoricamente – governos soberanos e indiscutivelmente pares do governo dos EUA, eles poderiam potencialmente agir como verdadeiros obstáculos ao poder federal, possivelmente em maior medida do que os governos dos estados-membros dos EUA. Se isso pode ou não ser feito na prática, dependerá das realidades políticas.
Mas os governos tribais são corruptos!
Infelizmente, o conceito de soberania tribal continua a encontrar oposição, muitas vezes devido a preocupações de pessoas de fora sobre a corrupção política dentro desses governos. Alguns críticos apontaram (corretamente) que os governos tribais são muitas vezes corruptos, com funcionários tribais usando seus privilégios para enriquecer às custas de outros membros tribais. Essa corrupção, dizem-nos, é motivo suficiente para o governo federal dissolver esses governos e reformá-los como as autoridades federais acharem melhor.[5]
O apelo à dissolução de governos tribais como meio de combater a corrupção, no entanto, é tão problemático quanto a alegação de que a corrupção em nível estadual ou local do governo é motivo suficiente para o governo federal dissolver esses governos. Claramente, essa seria uma política desastrosa que expandiria enormemente o poder federal.
A posição adequada, é claro, é reconhecer que qualquer esforço para tornar os governos tribais menos corruptos é uma questão para membros tribais e moradores de terras tribais. Assim como os moradores do Texas devem decidir por si mesmos como o governo do Texas funciona, os membros da Nação Navajo também devem decidir como o governo tribal Navajo funciona. O envolvimento federal simplesmente não é necessário. Os não-índios que não desejam se sujeitar ao governo tribal não precisam viver em terras tribais ou viajar através delas.
De fato, a ideia de que o governo federal resolverá o problema da corrupção no governo tribal é completamente duvidosa, dado que a corrupção dos governos tribais tem sido em grande parte um produto do envolvimento federal em assuntos tribais. Historicamente, as autoridades federais são notórias por lançar seus próprios candidatos fantoches em eleições tribais que podem servir como um canal direto entre os governos tribais e os grupos de interesse favorecidos do governo federal.
Os efeitos de ignorar a soberania tribal
As políticas tribais do governo federal têm funcionado principalmente para beneficiar o próprio governo federal. Por exemplo, desde 1880, grande parte da terra que foi removida das mãos tribais soberanas foi simplesmente adicionada às centenas de milhões de acres de terras de propriedade federal. A experiência sugere que abolir as tribos ou seus tratados só converteria terras tribais em terras federais, a serem mantidas por agências do governo federal em perpetuidade. O governo federal já possui 640 milhões de acres, e expandir ainda mais o poder federal sobre vastas áreas de terra só aumentaria e centralizaria ainda mais as instituições políticas nos Estados Unidos.
Afinal, para não pensarmos que podemos confiar nos federais para privatizar essas terras ou concedê-las aos estados, seria bom lembrar que a razão pela qual o governo federal atualmente possui tantas terras em primeiro lugar é porque o governo federal fracassou repetidamente em cumprir as promessas de delimitar ou privatizar terras federais.[6]
A maior parte do Colorado Ocidental, por exemplo, foi terra tribal Ute até 1880. Quando os órgãos federais confiscaram essas terras da tribo, apenas uma parte foi privatizada ou mesmo transferida para estados e governos locais. Em vez disso, a maior parte dessas terras hoje permanece em mãos federais.
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Notas
[1] Valerie Volcovici, “Assessores de Trump pretendem privatizar reservas indígenas ricas em petróleo”, Reuters, 5 de dezembro de 2016, https://www.reuters.com/article/US-usa-trump-tribes-insight-idUSKBN13U1B1.
[2] Ibidem.
[3] Herrera v. Wyoming, No. 17-532, 587 U.S. (2019), https://www.supremecourt.gov/opinions/18pdf/17-532_q86b.pdf.
[4] Kevin Bourgault, “Poder tribal e controle importante sobre a elite governante”, The Register-Guard, 19 de setembro de 2016, http://web.archive.org/web/20200713152505/http://registerguard.com/rg/opinion/34780967-78/tribal-power-an-important- check-on-ruling-elite.html.csp.
[5] Carl Horowitz, “Sem reservas: o argumento para o desmantelamento da burocracia indiana”, Câmara Municipal, 4 de fevereiro de 2011, http://townhall.com/columnists/ carlhorowitz/2011/02/04/no_reservations__the_case_for_dismantling_the_indian_bureaucracy.
[6] Ryan McMaken, “How the Feds Botched the Frontier Homestead Acts”, Mises Wire, 19 de outubro de 2016, https://mises.org/blog/how-feds-botched-frontier-homestead-acts.