Em 2018, legisladores na Islândia propuseram a proibição da circuncisão de meninos. Para os apoiadores, foi uma vitória fácil. Os apoiadores viam a circuncisão como uma forma de abuso infantil, e não havia nenhum lado negativo na legislação.[1]
Para algumas pessoas em minoria, no entanto, a proibição da circuncisão pode trazer danos duradouros em termos de abusos contra os direitos humanos. Por exemplo, a proibição da circuncisão é uma proibição de fato do judaísmo, pelo menos da variedade ortodoxa.
Este fato não é suficiente para dissuadir alguns apoiadores da proibição da circuncisão, e a legislação islandesa “insiste que os ‘direitos da criança’ sempre excedem o ‘direito dos pais de dar orientação aos seus filhos quando se trata de religião’”.
A Islândia não está sozinha em considerar leis que colocam a maioria contra práticas alegadamente bárbaras de um grupo minoritário.[2] Na Holanda, por exemplo, ativistas dos direitos dos animais trabalham arduamente para tentar proibir as carnes kosher e halal.[3] Enquanto isso, em Quebec, os legisladores proibiram o uso de coberturas na cabeça por mulheres – presumivelmente muçulmanas – em certos locais públicos.[4]
O debate sobre a circuncisão também não se limita à Islândia. A circuncisão masculina tem sido questionada legalmente na Alemanha nos últimos anos, onde um tribunal proibiu a prática em 2012.[5] Talvez reconhecendo que proibir o judaísmo poderia não soar bem para as alegações alemãs modernas de “tolerância”, os legisladores intervieram para permitir a prática novamente.
Para os sujeitos deste regulamento, as atividades visadas não são meras preferências. Elas envolvem valores fundamentais e apresentam um claro conflito com outros sistemas de valores. Em casos como estes, em que não há espaço aparente para concessões, quais valores devem prevalecer?
Democracia não resolve disputas culturais
Na maior parte do Ocidente, é claro, todos somos ensinados desde cedo que a democracia fará tudo dar certo. As partes em conflito entrarão em “diálogo”, chegarão a um “meio-termo” e, no final, todos ficarão felizes e em paz.
Mas, não é assim que funciona na vida real. Embora existam algumas áreas de concessão que podem ser encontradas nas margens de questões como valores morais e identidade étnica, o fato é que, no final, as carnes kosher são legais ou não são. A circuncisão ou é legal, ou não é. O aborto ou é legal, ou não é. As cirurgias de “transição” transgênero para crianças ou são legais, ou não são.
Afinal, se um grupo de pessoas acredita que um feto de 3 meses é um parasita que invadiu a mãe, essas pessoas vão encontrar pouco espaço para concessão com um grupo de pessoas que pensam que o mesmo feto é uma pessoa que merece proteção legal.
Dinâmica semelhante está presente em casos envolvendo direitos dos animais, circuncisão e véus no rosto. Um lado acha que seu lado é a única opção aceitável para pessoas virtuosas e racionais. “Virtude”, é claro, pode ser definida de várias maneiras. Alguns estão tão cegos por seus vieses culturais que, de fato, chegam a concluir que nenhuma pessoa “civilizada” poderia acreditar que, digamos, a circuncisão é algo diferente de uma prática bárbara. Aqueles que continuam a acreditar em tais coisas, devem, portanto, ser forçados a vir “para o século XXI” pelo poder coercitivo do estado. Suas crenças religiosas, como Hillary Clinton exigiu em 2015, “precisam ser mudadas”.[6]
De qualquer forma, a democracia não oferece solução para lidar com profundas diferenças culturais entre os residentes de uma única jurisdição política. Quando populações com visões de mundo muito diferentes devem existir sob um único regime, o voto não resolve nada, e um lado acabará impondo suas políticas preferidas ao outro. A desobediência acarretará o uso de todo o peso da lei, da polícia e de todas as instituições coercitivas que o estado frequentemente emprega. Muito provavelmente, a maioria vencerá, e a minoria acabará não tendo poder para resistir.
Esses problemas também existem em todos os tipos de regimes, incluindo regimes autoritários e não democráticos. Mas os antidemocratas muitas vezes admitem abertamente que o estado está usando a força para apoiar um lado em detrimento do outro. Os democratas, por outro lado, muitas vezes preferem crer em ficções reconfortantes e educadamente se abstêm de reconhecer que as democracias podem produzir grupos minoritários descontentes excluídos do poder pela maioria.
Nestes casos, a única resposta justa e pacífica consiste em dividir as jurisdições políticas de modo que os grupos minoritários possam separar-se da maioria e, assim, atingir um maior nível de autogoverno e autodeterminação.
Regra da maioria: conquista e colonialismo por outros meios
Em seu trabalho sobre o nacionalismo, Ludwig von Mises examinou o problema fundamental que surge quando vários grupos com diferentes sistemas de valores vivem sob um único estado unitário. Mesmo quando há certas garantias teóricas para grupos minoritários, a realidade política é que grupos com crenças minoritárias estão à mercê da maioria. Isto é verdade em questões de grupos étnicos e religiões conflitantes, mas também é aplicável a qualquer número de grupos com valores conflitantes.
Joseph Salerno resume o pensamento de Mises:
Mises sustenta que duas ou mais “nações” não podem coexistir pacificamente sob um governo democrático unitário. As minorias nacionais numa democracia são “completamente impotentes politicamente” porque não existe qualquer hipótese de influenciarem pacificamente o grupo linguístico majoritário. Este último representa “um círculo cultural fechado” a nacionalidades minoritárias e cujas ideias políticas são “pensadas, faladas e escritas numa língua que não compreendem”. Mesmo onde prevalece a representação proporcional, a minoria nacional “permanece excluída da colaboração na vida política”. Segundo Mises, como a minoria não tem perspectiva de um dia chegar ao poder, a atividade de seus representantes “permanece limitada desde o início a críticas infrutíferas (…) Isso… não pode levar a nenhum objetivo político.” Assim, conclui Mises, mesmo que o membro da nação minoritária, “conforme a letra da lei, seja um cidadão com plenos direitos (…) Na verdade, ele é politicamente sem direitos, um cidadão de segunda classe, um pária.”
Mises caracteriza o governo majoritário como uma forma de colonialismo do ponto de vista da nação minoritária em um território poliglota: “[Isso] significa algo bem diferente aqui do que em territórios nacionalmente uniformes; aqui, para uma parte do povo, não é regra popular, mas domínio estrangeiro.” O nacionalismo liberal pacífico, portanto, é inevitavelmente sufocado em territórios poliglotas governados por um estado unitário, porque, argumenta Mises: “a democracia parece opressão para a minoria. Onde apenas a única escolha está entre suprimir ou ser suprimido, facilmente se decide pela primeira.” Assim, para Mises, democracia significa para a minoria o mesmo que “subjugação sob o domínio dos outros”.[7]
Quem está do lado vencedor, claro, não vê problema aqui. O que a minoria considera “opressão” é, na verdade, – segundo os vencedores – apenas “modernização”, “progresso”, “decência”, “bom senso” ou simplesmente “a vontade da maioria”. Que a aplicação dessa vontade da maioria se baseia na violência estatal nem sequer chega a ser uma preocupação.
A solução: secessão e descentralização
Historicamente, no entanto, a autonomia local e o autogoverno local têm sido usados por regimes com o propósito de acalmar tensões étnicas, prevenir rebeliões ou incentivar o desenvolvimento econômico. Confederações como a Suíça empregam explicitamente uma estrutura descentralizada para evitar conflitos entre grupos religiosos e linguísticos. No entanto, esta tradição de autogoverno é muito mais profunda na cultura europeia. Por exemplo, durante a Idade Média e o início do período moderno, aos moradores de cidades na Europa era frequentemente concedido o autogoverno separado das populações vizinhas e distritos governados diretamente pelo monarca ou por nobres locais. Isso foi feito por se reconhecer que as populações urbanas possuem interesses bem diferentes das do campo. O reconhecimento dessa separação das cidades se refletiu na chamada “Lei das Cidades Alemãs”. Esses códigos legais separados – também conhecidos como lei de Magdeburgo ou lei de Lübeck – previam o autogoverno em questões de regulação econômica local e todas as ordenanças usuais associadas aos governos municipais. Enquanto essas cidades pagassem seus impostos e não representassem uma ameaça geopolítica para os príncipes dominantes, elas eram deixadas em paz. Muitas vezes, esse autogoverno também assumiu uma característica étnica e linguística, já que muitas dessas cidades eram povoadas na maioria por alemães étnicos que viviam em regiões povoadas em grande parte por outros grupos étnicos.
Arranjos semelhantes também foram frequentemente apreciados pelos judeus na República das Duas Nações do início do período moderno. As comunidades judaicas, conhecidas como kehilot, geralmente recebiam autogoverno, e um parlamento nacional dessas comunidades – o Va’ad Arba’ Aratzot – reunia-se para atender às necessidades das comunidades judaicas em geral. (Notavelmente, à medida que o estado polonês entrou em declínio e deu lugar ao domínio russo, austríaco e prussiano, essas comunidades judaicas autônomas foram controladas.)
A tolerância estendida a esses grupos minoritários não foi necessariamente concedida por motivos iluministas, é claro. Estes foram um reconhecimento da parte de muitos príncipes e governantes de que o autogoverno ajudou a neutralizar o conflito entre maiorias e minorias. Além disso, dado que muitos regimes eram mais voltados para lidar com guerras e outras preocupações geopolíticas, muitas vezes era melhor simplesmente permitir a muitos grupos domésticos a opção de autogoverno, desde que esses grupos não fossem problemáticos para as relações internacionais.
Infelizmente, a prudência e a tolerância subjacentes a esta linha de pensamento perderam-se em grande parte do mundo político moderno, e é agora geralmente aceito que o estado democrático moderno deve aplicar políticas universais a toda uma população nacional. Mises, que era claramente conhecedor da história da Europa Central e Oriental, provavelmente estava bem ciente da longa tradição de autogoverno local e viu seus benefícios.
Mises – que era ele próprio um democrata – entendia que as eleições democráticas não oferecem uma solução real para o problema das minorias políticas. Para Mises, as populações – independentemente de viverem em um sistema democrático ou não – não devem ser forçadas a participar de estados onde nunca poderão exercer a autodeterminação devido à presença de uma maioria mais poderosa. Em um nível prático, então, as populações em regiões, cidades e aldeias dentro dos estados existentes devem ser livres para formar seus próprios estados, se necessário, ou se juntar a outros estados com maiorias mais amigáveis.
Mises reconheceu explicitamente os benefícios disso na manutenção da paz. Em Liberalismo, ele escreve que se “os habitantes de um determinado território” procuram deixar uma jurisdição política e se juntar a outra – ou simplesmente permanecer independentes – “seus desejos devem ser respeitados e cumpridos. Esta é a única forma viável e eficaz de prevenir revoluções e guerras civis e internacionais” (grifo nosso).[8]
De acordo com Mises, sem essa opção de separação pacífica, a minoria permanente – caso deseje progredir em qualquer esforço de autodeterminação – fica com poucas opções a longo prazo além da separação violenta ou rebelião. Além disso, a fim de acomodar as realidades de populações em constante mudança, as fronteiras e limites devem mudar ao longo do tempo, a fim de minimizar o número de pessoas em populações minoritárias com pouca ou nenhuma voz em governos nacionais controlados por maiorias hostis.
Na visão de Mises, não há solução perfeita. Sempre haverá alguns grupos minoritários em desacordo com a maioria governista. Mas, quando os estados são menores, mais numerosos e mais diversos em termos de políticas, as comunidades e os indivíduos possuem mais chances de encontrar um estado em que seus valores correspondam à maioria. Grandes estados unitários, no entanto, oferecem exatamente o oposto: menos escolha, menos diversidade e menos chances de exercer a autodeterminação.
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Notas
[1] Tom Embury-Dennis, “Deputados da Islândia propõem proibição da circuncisão de meninos”, Independent, 1 de fevereiro de 2018, https://www.independent.co.uk/news/world/europe/iceland-circumcision-ban-boys-islam-judaism-religion-medical-reasons-muslim-jewish-a8188701.html.
[2] Catholic News Service, “Alguns católicos chineses veem restrições à medida que novas regras religiosas entram em vigor”, National Catholic Reporter, 8 de fevereiro de 2018, https://www.ncronline.org/news/world/some-chinese-catholics-see-restrictions-new-religion-rules-take-effect. As autoridades comunistas chinesas deram mais um passo ao banir as crianças das igrejas e tomar outras medidas para “impedir que as crianças se juntem a grupos cristãos e participem de atividades religiosas”.
[3] Nina Siegal, “Novas regras de abate colocam as liberdades religiosas holandesas contra os direitos dos animais”, The New York Times, 31 de dezembro de 2017, https://www.nytimes.com/2017/12/31/world/europe/netherlands-kosher-halal-animal- direitos.html.
[4] Vipal Monga, “A lei de Quebec sobre véus faciais alimenta um debate acirrado”, The Wall Street Journal, 25 de janeiro de 2018, https://www.wsj.com/articles/quebecs-law-on- facial-veils-fuels-fierce-debate-1516876200.
[5] Raphael Ahren, “Três meses após a proibição da circuncisão, governo alemão legaliza rito”, The Times of Israel, outubro de 2012, https://www.timesofisrael.com/three-months-after-local-court-banned-circumcisions-german-government- para legalizar-rito/.
[6] Susan Jones, “Clinton: ‘Códigos culturais arraigados, crenças religiosas… Tem que ser mudado’”, CNSNews, 27 de abril de 2015, https://cnsnews.com/news/article/susan-jones/clinton-deep-seated-cultural-codes-religious-beliefshave-be-changed. De acordo com Clinton: “Sim, reduzimos a taxa de mortalidade materna pela metade, mas muitas mulheres ainda não têm acesso crítico a cuidados de saúde reprodutiva e parto seguro. Todas as leis que aprovamos não contam muito se não forem aplicadas. Os direitos têm de existir na prática, não apenas no papel. As leis têm de ser apoiadas com recursos e vontade política. E códigos culturais arraigados, crenças religiosas e preconceitos estruturais precisam ser alterados.”
[7] Joseph T. Salerno, “Mises on Nationalism, the Right of Self-Determination, and the Problem of Immigration”, Mises Wire, 28 de março de 2017, p. https://mises.org/wire/mises-nationalism-right-self-determination-and-problem-immigration.
[8] Ludwig von Mises, Liberalism: A Socio-Economic Exposition (Kansas City, Mo.: Sheed Andrews e McMeel, 1962), p. 109.